Homem cordial da casa e homem mascarado da rua

Yi Liu
Brown University
 
 
Quer por acaso, quer pela providência, se pode constatar uma ligação secreta, senão decifrável, entre a geografia e a história dum país, o que já foi notado por o autor renomado mexicano – Octavio Paz. Escreve ele: a Índia “é um cone invertido, uma árvore cujas raízes penetram o céu. (…) A China é um ventre, umbigo e sexo do cosmos”. E “A geografia do México tende à forma piramidal como se existisse uma relação, secreta mas evidente, entre o espaço natural e a geometria simbólica, e entre esta e o que chamei a nossa história invisível.” (Paz, 242). Então, se a China parece uma folha de lótus, a Índia um cone invertido e o México uma pirâmide, a que o Brasil sabe? Já nos deu a resposta Villa Lobos por proclamar que “o Brasil tem a forma de um coração”.

Sim, o Brasil é um coração, e o brasileiro, antes que o “resultado de três raças, condicionado pelo meio físico, cordial, pacífico, tolerante, altruísta, apegado ao passado europeu e português, religioso mas sem profundidade, emotivo, mais coração que razão, resignado, imitador de estrangeiro, mestiço, afetivo, apegado ao maternal, machista, sensual, apático, patriota, saudosista, colecionador de títulos, amante de vaidades, hospitaleiro, boa-vida, malandro, conciliador, moreno, misto de Jeca-Tatu-Macunaíma-e-Pedro-Malasartes (…)”(Ribeiro, 15), trata-se do homem cordial, termo criado pelo escritor Ribeiro Couto e valorizado pelo historiador Sérgio Buarque de Holanda, o qual não é necessariamente cortês, afável e cordato. Cumpre ainda acrescentar que essa cordialidade, estranha, por um lado, a todo formalismo e convencionalismo social, não abrange, por outro, apenas e obrigatoriamente, sentimentos positivos e de concórdia. A inimizade bem pode ser tão cordial como a amizade, nisto que uma e outra nascem do coração, procedem, assim da esfera do íntimo, do familiar, do privado (Holanda, 205), mas absolutamente pulsional, movido pelos impulsos elementares e contraditórios do coração, a simpatia e antipatia, o amor e o ódio, a receptividade e o hermetismo (Kujawski, 93). Tendo em conta o significado original da palavra “cordial” cujo étimo latino – cordialis – significa coração, não será difícil inferir que o homem cordial provém do homem de cor-ação que baseia a sua ação no cor, ou seja, que toma iniciativa e age de acordo com o coração em lugar da cabeça. Neste caso, é quase um corolário encontrar-se no homem cordial o triunfo do impulso sobre o raciocínio, da sensibilidade sobre a racionalidade, do aditivo sobre o pensativo e da emoção sobre o juízo. Fornece Sérgio Buarque de Holanda, sem reserva, a este ponto de vista seus apoios: “A lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade (…) representam, com efeito, um traço definido do caráter brasileiro, na medida, ao menos, em que permanece ativa e fecunda a influência ancestral dos padrões de convívio humano, informados no meio rural e patriarcal. Seria engano supor que essas virtudes possam significar “boas maneiras”, civilidade. São antes de tudo expressões legítimas de um fundo emotivo extremamente rico e transbordante.” (Holanda, 146-47) e continua: “(…) a repulsa firme a todas as modalidades de racionalização e, por conseguinte, de despersonalização tem sido, até aos nossos dias, um dos traços mais constantes dos povos de estirpe ibérica.” (Holanda, 133)

No entanto, não é razoável nem convincente julgar o povo brasileiro através da forma do seu país, o que parece ridículo. E, também não é seguro chegar sem fundamentos históricos à conclusão que o homem cordial tipifica os brasileiros porque estes têm a cordialidade como o seu carácter nacional. A razão é assim: o “carácter nacional” é um termo perigoso, visto que muito embora seja possível para ele representar umas linhas mais destacantes duma cultura, se pode induzir também à generalização dum grupo dos indivíduos (ora uma raça ora uma nação), o que resulta na demolição de outras características individuais que seriam fundamentais e mais importantes e na negação da evolucionalidade duma entidade (raça, nação ou país). Eis o motivo de Onésimo Almeida a citar no seu ensaio “On distinguishing cultural identity from national character” o exemplo de Richard Sennett, a well-known Professor of Humanities at New York University, in an article entitled “The myth of identity”, answering in The New York Times to Sheldon Hackney, President of the National Endowment for the Humanities, stated that “Mr. Hackney is the latest of a long line of Americans who have sought to counter society’s fissures by discovering a national identity or national character. These phrases, however, merely display the gentlemanly face of nationalism.” (Almeida, 1)

Então, onde é a origem do homem cordial, ou seja, quais são as raízes históricas dele? Há séculos que tem persistido um debate intenso e constante entre estudiosos sobre os factores que determinam a índole individual, entre os quais se sublinham a genética e a cultura, isto é, cada um ser humano é, no sentido um pouco simplificado, bi-facetado que tem a sua individualidade e generalidade (commoness), ou seja, a sua alteridade e a mesmidade. No processo de se modelar a natureza humana participam e funcionam simultaneamente, embora não obrigatoriamente em proporção igual, factores tanto inatos como pós-natais, isto é, factores do nascimento e da educação. Aqui, a educação, além do significado de ensinamento da sabedoria, tem um sentido mais abrangente que indica os contactos do ser humano com o meio ambiente em seu torno. Na expressão de Teixeira de Pascoaes, isto significa a paisagem que “representa um grande papel na nossa existência; tem sobre nós como que um poder de herança.” (Pascoaes, 71) Por isso, não obstante a indistinguibilidade da razão dos efeitos da nascimento em relação à paisagem na formação da índole individual, é irrazoável e impreciso radicalizar o processo, maximizando-se um e minimizando-se o outro. Por exemplo:   na secção de Aversão Às Virtudes Econômicas do seu Raízes do Brasil, Sérgio Buarque de Holanda cometeu um erro deste tipo por frisar demasiado o “carácter nacional” (neste caso, o português vago e impreciso – expressão de Gilberto Freire), afirmando o seguinte:

as qualidades morais que requer naturalmente a vida de negócios distinguem-se das virtudes ideais da classe nobre nisto que respondem, em primeiro lugar, à necessidade de crédito, não à de glória e de fama. São virtudes antes de tudo lucrativas, que à honra cavalheiresca e palaciana procuram sobrepor a simples honorabilidade profissional, e aos vínculos pessoais e diretos, a crescente racionalização da vida. (Holanda, 133).

De facto, os títulos de fidalgo, cavalheiro ou nobre não são só para se gabar e se ostentar, implicando, ao mesmo tempo, grandes interesses económicos. Tanto no reino português como no Brasil colonial, gozaram a camada de nobreza assim como do clero de privilégios como a isenção ou dedução dos impostos cujo grau de dispensa, muitas vezes, varia em conformidade com a posição hierárquica dos envolvidos na pirâmide social e eclesiástica. Assim, se se conseguisse um título mais “decente”, se poderia adquirir uma regalia correspondentemente maior. Ademais, a fidalguia, no período colonial, representou um passaporte que possibilitou e facilitou o acesso às entidades administrativas e instituições políticas. Como todos sabem, os desígnio políticos, afinal, servem para os interesses económicos e não é muito difícil de imaginar que num sistema político colonial muito corrupto, como o caso do Brasil, fosse muitíssimo elevada a recompensa económica para os esforços empreendidos para se obter uma posse administrativa (por exemplo, vereador). Portanto, A procura ansiosa pelos títulos e famas não auferiu unicamente da paixão pela glória e vanglória, mas faz parte da busca de ganho substancial também.1

A modelação do homem cordial também não foge à regra que o homem é um resultado ou um produto fabricado pela interação entreo sujectivo e o objectivo num determinado período histórico. Por consequência, ele deve ser um portador da estirpe hereditária, de marcas cunhadas pelo meio ambiente em que ele se encontra inserido e da silhueta da sua época.

Então, o que constitui a raíz histórica do homem cordial? É a Coroa de Portugal que continuamente explorou esta terra muitíssimo rica em recursos naturais? É a Igreja que mandou missionários para cá iluminar e baptizar o Brasil? Gilberto Freire, Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto de mello Kujawski estão unânimos em responder a esta pergunta cuja resposta é, sem dúvida, a família patriarcal.2 “A família, sob a forma patriarcal ou tutelar, tem sido no Brasil uma dessas ‘grandes forças permanentes’. Em torno dela é que os principais acontecimentos brasileiros giraram, durante quatro séculos; e não em torno dos reis ou dos bispos, de chefes de Estado ou de chefes da Igreja (Freire, Sobrados 71) escreve o antropólogo, e continua: “a casa-grande, completada pela senzala, representa todo um sistema econômico, social político: de produção (a monocultura latifundiária); de trabalho (a escravidão); de transporte (o carro de boi, o banguê, a rede, o cavalo); de religião (o catolicismo de família, com capelão subordinado ao pater familias, culto dos mortos, etc); de vida sexual e de família (o patriarcalismo polígamo); de higiene do corpo e da casa (…); de política (o compadrismo).” (Freire, Casa 73). Assim, o latifúndio constituiu o microcosmo da sociedade brasileira naquele tempo. Para compreender o Brasil, é necessário conhecer o homem cordial e para conhecer este, é obrigatório saber a família patriarcal de que nasce e se nutre o homem cordial. “Patriarcado foi o núcleo formador de nossa realidade histórica e social, o centro de convergência da vida brasileira e a chave para entender sua formação e suas transformações no curso do tempo.” (Kujawski, 113)

Antes de tudo, eu queria diferenciar o personalismo do homem cordial do individualismo que prevalece nos Estados Unidos. Enquanto este último se assenta na crença da importância primária dos indivíduos, auto-dependência, independência pessoal assim como a prioridade do interesse individual sobre o do Estado, o primeiro fica baseado nos postulados, muitas vezes, contrários aos do último. A meu ver, o personalismo possuído pelo homem cordial, antes que a auto-valorização, é um auto-reconhecimento e depois, o reconhecimento das suas contrapartidas à sua volta, com que o homem cordial forma “comunidade” e se demarcam dos outros considerados alheios ou seja fora de núcleo. Não vejo nada de aplicabilidade da teoria do personalismo derivado da nobreza portuguesa na Idade Média (De facto, ainda duvido da veracidade deste personalismo proposto por Sérgio Buarque, visto que sob a égide da mesma religião e causa comum, ao longo da Reconquista deviam formar os portugueses cristãos entre eles uma solidariedade ao invés do personalismo) à sociedade brasileira, porque creio que o personalismo brasileiro é mais um tipo de interpersonalismo ou relacionalismo que a enfatização da singularidade pessoal. Rodeados pela intimidade, familiaridade, e cordialidade com suas coteries e sob a influência da subjectividade desenfreada, os homens cordiais, por um lado, formam ciclos fechados (“Endogamy, with cousins marrying cousins, and uncles marrying nieces, was frequently practiced in both Portugal and Brazil among the upper classes. This custom greatly contributed to the formation of a closely inter-married Brazilian landed aristocracy” (Boxer, 310) e emThe Portuguese empire, 1415-1808: a world on the move, Russell-Wood escreve que os donos latifundiários brasileiros preferiram mandar suas filhas para conventos de Portugal a casá-las com homens de classes inferiores. Destes dois exemplos, podemos constatar, muito contrária à plasticidade social aclamada por Sérgio Buarque, a existência e até a persistência da impermealidade no Brasil das camadas de baixo para as de cima,3 á que faltam os espíritos da justiça, “fraternidade universal”4 e igualitarismo vis-à-vis os outsiders (estranhos) e por outro, actuou como um Spiderman que tece incessantemente uma rede grande visada a cobrir a maior esfera e mais pessoas possível a fim de expandir o seu domínio de relacionamento –a casa ( expressão de Roberto DaMatta)– por meio de familiarizar o estranho, personalizar o público e privatizar o Estado. É dupla a influência deste processo de expansão da casa: primeiro, ele acompanha a divulgação das características caseiras (“in Brazil we have the domain of the home where ethic is based on generosity, hospitality, tolerance, and love” [DaMatta, 252]); segundo, ele implica a transgressão e, depois, o “englobamento” de áreas públicas –Rua– que deviam ser desinteressadas pela parte da casa.

Agora, vejamos as consequências da multiplicação dos homens cordiais e a expansão da esfera caseira.  Sérgio Buarque de Holanda debate do modo seguinte:

Para o funcionário “patrimonial”, a própria gestão política apresenta-se como assunto de seu interesse particular; as funções, os empregos e os benefícios que deles aufere relacionam-se a direitos pessoais do funcionário e náo a interesses objetivos. (…) é possível acompanhar, ao longo de nossa história, o predomínio constante das vontades particulares que encontram seu ambiente próprio em círculos fechdos e pouco acessíveis a uma ordenação impessoal. E um dos efeitos decisivos da supremacia incontestável, absorvente, do núcleo familiar- a esfera, por excelência dos chamados ‘contatos primários’, dos laços de sangue e de coração – está em que as relações que se criam na vida doméstica sempre forneceram o modelo obrigatório de qualquer composição social entre nós.” (Holanda, 146)

Pois, em combates entre o geral e o particular, o abstracto e o concreto, o igualitarismo e o favorismo assim como a lei e a afeição, sempre venceram os últimos. Eis uma das razões por que se conseguiram prosperar rapidamente entre os homens cordiais o nepotismo e o favorismo enraízdos na aproveitação mútua e o utilitarismo recíproco, quer afectivamente quer materialmente, o que se dirigiria  ao arraigado paroquialismo em termos ideológicos, ao provincialismo e ao regionalismo no âmbito sócio-económico e ao clientelismo na esfera política.

O Brasil que se encontrou sob o controlo das forças da casa revelou-se como um país oligárquico e plutocrático. Os homens cordiais que deviam ficar no período colonial iriam fazer de tudo para não se retirarem do palco histórico e para tentar desesperadamente a arrastar o Brasil para junto do mundo arcaico onde se encontram as suas raízes.  Felizmente, hoje em dia, a maior parte do Brasil já é urbana e “com a progressiva urbanização, que não consiste apenas no desenvolvimento das metrópoles, mas ainda e sobretudo na incorporação de áreas cada vez mais extensas à esfera da influência metropolitana, o homem cordial se acha fadado provavelmente a desaparecer, onde aida não desapareceu de todo.” (Holanda, 204-5).
 
Homem Mascarado da Rua

Ao passo de urbanizada a área rural e desvanecido o patriarcalismo, o homem cordial fica cada vez mais substituído pelo homem mascarado, termo que eu inventei para caracterizar funcionários públicos, ou seja, criados civis e os que têm poder outorgado ou dependente do Estado. O homem mascarado constitui um outro tipo cuja natureza se opôs mas ao mesmo tempo complementar a do homem cordial. Isto não quer dizer que o homem mascarado não possui as qualidades, como a cordialidade, a subjectividade, assim com a afectividade muitas entre outras, gabadas pelo homem cordial. Bem pelo contrário, ele, no instinto e íntimo, pode ser tudo e compartilhar todas as características do homem cordial. E, embora o homem mascarado por is não tenha nenhum sentido negativo e até um pouco positivo, a sua evolução, porém, está a andar na direcção preocupante.

Primeiro, como todos os poderes do homem mascarado provém do Estado, é necessário prevenir o abuso destes privilégios pela parte do seu detentor. Pertence ao domínio público a esfera onde o homem mascarado se encontra inserido, portanto o comportamento do homem mascarado deve obrigatoriamente difere em todo do do homem cordial. À luz do postulado de “vai para donde vem”, o homem mascarado deve dedicar todo seu poder à promoção do Bem Comum da rua em vez de dar um jeitinho ou ser um pistolão de alguém familiar como faz o homem cordial. A máscara deve ser um tipo de ferramenta para manter a justiça social e igualdade, dado o facto de que com uma máscara cobrida em cara, os funcionários públicos apresentarão para todo o mundo o mesmo rosto (expressão facial), quer sejam familiares, parenteses e amigos, quer sejam estranhos, fulanos e inimigos, quer os ricos quer os pobres, quer famosos quer obscuros, quer seus proponentes quer seus oponentes. Todos têm uma mesma identidade que é cidadão brasileiro, porque a cidadanização em si necessita da  universalização ou deshierarquização da identidade. Contudo,  “não era fácil aos detentores das posições públicas de responsabilidade, formados por tal ambiente [histórico patriarcal], compreenderem a distinção fundamental entre os domínios do privado e do público” (Holanda, 145), noutra palavra, entre a casa e a rua. Pese embora o contínuo enfraquecimento da influência do patriarcalismo rural, não é nada fácil de cortar os alicerces patrimoniais e é formidável a pressão da História e o passado: “political powers remained in the hands of rural oligarchies, even when their representatives lived in the city.” (Bacelar, 86)

Segundo, não menos danoso à edificação dum Estado democrático e justo do que o primeiro fenómeno acima referido é que o homem mascarado costuma, ora por amnésia ora de propósito, incorporar-se à sua máscara, tentando tornar-se, a ver dos outros (sobretudo para a arraia-miúda), indistinguível entre o homem e a máscara, ou seja, entre o que originalmente era e o que parece que é, assim, encarnando o cetro e usurpando poderes do Estado e do povo, o que me lembra que os ladrões quando roubam um banco ou uma ourivesaria, usam de costume as máscaras (comparado com os homens mascarados, tratam-se de uns ladrinhos aqueles ladrões que roubam bancos, porque o que o homem mascarado rouba é uma cidade [se ele for um presidente de camara municipal], um estado [se for um governador] e até um país [se for um ditador]).5 No Brasil de hoje, a máscara que devia ser tratada como uma égide contra corrupção e favorismo transforma-se numa camuflagem sob a qual os homens mascarados desescrupulosamente furtam, em vez de desenvolver, o Bem Comum e poderes do povo e do Estado.

O uso habitual da máscara faz com que ela se substitua às nossas feições verdadeiras. O mascarado passa a identificar-se com a própria máscara, com sua persona, em termos junguianos. O funcionário se investe pessoalmente do cargo, o homem e a mulher abonados perdem a individualidade e se confundem com sua classe superior, e o profissional se imbui até a medula de sua especialidade. Essa é a origem do famoso ‘Sabe com quem está falando?’, tão típico em nosso meio (…)” (Kujawski, 111-2).

Em geral, o contexto em que se dá este famoso “Sabe com quem está falando” é que algum indivíduo encarregado dum posto público, muitas vezes bem menor, tenta a aplicar aos homens mascarados uma regra universal como respeitar o código da estrada ou presentar cartão de identidade no ingresso a alguns lugares públicos, o que os irrita.

Podemos simultaneamente extrair desta frase quatro sentidos ou um sentido quádruplo: em primeiro lugar, o falante adopta uma atitude de superioridade, senão desdém, vis-à-vis o ouvinte, isto é, antes de dizer a frase, ele já efectua entre ele próprio e o ouvinte uma avaliação de posição social cuja conclusão é em favor do falante. Segundo, ao falar isso, o falante considera que lhe são inferiores todos os que se devem sujeitar a esta regra universal, visto que esta regra já constitui um divisor de águas entre diferentes grupos sociais: os privilegiados e o plebeu (o plebeu aqui não necessariamente possui o significado definido na Roma antiga mas simboliza aqueles sujeitos a alguma regra, portanto o divisor entre os privilegiados e o plebeu não se trata duma linha fixada mas uma que move sempre de acordo com respectivas posições sociais, poderes e capacidades financeiras dos envolvidos). Terceiro, “Sabe com quem está falando” é uma frase inacabada a ser continuada. A frase deve ser assim: “Sabe com que está falando? Sou bla bla bla (títulos de poderio).” , com a segunda metada da frase sendo a justificação da primeira. Acima já falámos que a cidadanização se trata dum meio para contrariar o homem cordial, o que quer dizer que no contexto público (rua), domínio que deve ser impessoal, substituem-se as identidades pessoais e familiares, como pais, filhos, irmões, parentes, amigos, muitos entre outros, por uma identidade única que é cidadão – unidade básica do Estado- que tem seus direitos e, ao mesmo tempo, deveres. Mas para os homens mascarados (falantes da famosa frase), a sua máscara passa a ser a sua identidade principal, senão única, na rua a qual é reconhecida em detrimento/vez da cidadania. A máscara não só indevidamente aumenta os direitos do mascarado como também lhe dispensa os deveres básicos implicados pela cidadania (Do ponto de vista administrativo, tratava-se de fazer com que os servidores públicos se considerassem cidadãos a serviço de outros cidadãos, em lugar de funcionários do aparelho estatal. [Chauí, 12]). Neste sentido, é mais preciso lhe chamar a máscara humana do que o homem mascarado. E, o último que é mais uma consequência que sentido. Como a máscara é um objecto que tem “emprestabilidade”, isto é, o poder mágico da máscara é contagioso ou transmisível dentro do meio particular (casa) do homem mascarado. Qualquer um membro familiar e até amigos do homem mascarado pode dizer “Sabe com quem está falando? Sou pai/tio/irmão/primo/cunhado/sobrinho/filho etc do homem mascarado” (filho de algo–fidalgo). Com o homem mascarado sendo o miolo, forma-se um núcleo em redor dele. A diferença entre ciclos formados em volta do homem cordial e do homem mascarado é que o do primeiro é estabelecido por laços de sangue e coração e o último pela magia do poder gerado por máscaras. O homem mascarado engendra uns outros homens que podem beneficiar da sombra incidida pela máscara, assim, criando casas além-caseiros na rua numa forma radial com o poder sendo o centro.

Por causa da existência universal do fenómeno do homem mascarado, “no Brasil, fica a cada dia mais difícil distinguir o país oficial do país real. O público do privado. Os direitos dos privilégios. O social do estatal. O mercado das especulações. A autoridade do autoritarismo. O que é certo do politicamente correto. I igualdade do nivelamento por baixo. O nacional do nacionalismo. A liberdade da ditatura das minorias. O sagrado do profano. A cultura da indústria cultural. O popular do boçal. O fato do factóide. A obra idônea da obra superfaturada. Tudo, mas tudo, está mascarado, maquiado, confundido e falsificado.” E a sociedade transforma-se num  “frenético baile de máscaras, no qual já não se distingue a realidade dos seus disfarces, jã não se sabe quem é quem e mal se pode esconder que ninguém é ninguém.”(Kujawski, 42). Por conseguinte, o que domina no Brasil é o poder que se trata de uma das poucas regras de ouro no comportamento social e de um divisor de águas que separa os homens mascarados e seus beneficiários do poder de máscara do povo. Aos olhos dos homens mascarados, todos os códigos, regulamentos e leis disponíveis na rua são para a arraia-miúda que necessita da orientação6 e direção. A preponderância de expressões como “sabe com quem está falando” e “você não sabe o seu lugar” na sociedade brasileira não só reflete que em termos politico-econômicos o Estado transforma-se nume regime em que a minoria poderosa sobre as regras reina a maioria sob as regras, como também que no sentido línguístico a noção da superiordade da elite já penetra na língua vernacular que transporta consigo uma cultura a favor dos homens mascarados. Portanto, o problema do Brasil é duplo: por um lado se pode verificar a existência do anacronismo que o Brasil oscila entre o mundo arcaico e o novo milénio e por outro, do ana-spacialismo que o homem cordial abre a porta e sai da casa para a rua (expansão da casa) enquanto o homem mascarado torna cada vez mais a rua numa parte da casa (corrosão da rua). “Do ponto de vista dos direitos sociais, há um encolhimento do público; do ponto de vista dos interesses econômicos, um alargamento do privado.” (Chauí, 14)

É multifacetada a causa do anacronismo e anaspacialismo do Brasil. Aqui eu  não queria ser exaustivo, enumerando só duas delas. Primeiro, “o panorama social no tempo do Império, da Primeira República e na maior parte da Segunda República permaneceu, no fundo, inalterado. As rédeas do poder continuaram nas mãos dos grandes proprietários de terras e dos políticos às suas ordens. Democracia, liberalismo, capitalismo? Estas são as máscaras atrás das quais se oculta um sociedade pré-democrática, pré-liberal e pré-capitalista.” (Kujawski, 45). Segundo, “após a separação da metrópole, cada uma das novas nações teve, no dia seguinte à independência, uma constituição mais ou menos (quase sempre menos) liberal e democrática. Na Europa e nos Estados Unidos, essas leis correspondem a uma realidade hisórica: eram a expressão da ascensão da burguesia, a consequência da revolução industrial e da destruição do antigo regime. Na América hispânica, só serviam para vestir à modernda as sobrevivências do sistema colonial.” (Paz, 112)

Por último, segundo Eduardo Lourenço em O Labirínto da Saudade, o Estado não deve ser representado por uma classe tecnocrático-burocrática de aleatório saber mas sim pela totalidade do povo consciente e responsabilizado na prática a todos os níveis o qual se caracteriza por auto-determinação e auto-reflexão. A situação actual no Brasil, porém, é que “a sociedade brasileira … está polarizada entre a carência absoluta das camadas populares e o privilégio absoluto das camadas dominantes e dirigentes.” (Chauí, 14) No Brasil falta um intermediário entre o honrado e o humilhado, o rico e o pobre  e o poderoso e o impotente (o carnaval será o melhor exemplo em que “the weak become strong, the anonymous person gains a reputation” e “who are destitue and poor appear as god and nobleman” [DaMatta, 260]) com todo o mundo, quer beneficiários quer vítimas da bi-polaridade social, ambicionando indevido poderio e gozo de privilégios em vez do Bem Comum ou igualdade universal, o que é, no meu entender, o mais danoso à edificação duma sociedade justa, democrática e imparcial.
 
 
Notas

1 Outra injustiça que Sérgio Buarque de Holand fez aos portugueses é a sua alegação que as cidades construídas na América pelos portugueses são consequências do capricho e descuidado (desleixo, na dicção do escritor Aubrey Bell) em vez de produtos mentais e de trabalho intelectual e que comparado com o espanhol, o português “cuidou menos em construir, planejar ou plantar alicerces, do que em feitorizar uma riqueza fácil e quase ao alcance da mão” (Raízes do Brasil, p.95). Nesta declaração, Sérgio Buarque voltou a sobresimplificar a problemática por meio de exagerar motivos subjectivos e subestimar condições objectivas, omitindo as prováveis influências derivadas da grande diferença demográfica entre Portugal e Espanha sobre maneiras de comportar deles nas respectivas colônias (ainda é de notar que os portugueses, só depois do colapso do seu império asiático, começaram a vira a sua atenção focal para a sua colônia americana, ficando mutios anos mais atrasados que os espanhóis.) Roberta Marx Delson emNew Towns for Colonial Brazil também refuta o ponto de vista de Sérgio Buarque, afirmando que o planejamento de vilas e cidades no Brasil representou o absolutismo da Coroa portuguesa em controlar as zonas mineiras.

2 Neste ensaio, não obstante ter sentidos diferenciados, a “família patriarcal”, a “casa grande”, e o “latifúndio” são usados como sinónimos.

3 Considero irrazoável a afirmação da “extraordinária plasticidade social” de Sérgio Buarque no Brasil, visto que apoia-se a tese de Sérgio Buarque que a sociedade brasileira se pode gabar da sua plasticidade no facto de que os portugueses que transmitiram esta virtude aos brasileiros puderam ascender duma maneira bem livre às classes mais altas, mas ele omitiu a distinção entre os ambientes onde se inserem os portugueses e os brasileiros respectivamente. A plasticidade portuguesa deu-se no decorrer da Reconquista e dos Descobrimentos, épocas que necessitam da expansão, criação e desenvolvimento, numa palavra —a mobilidade social, enquanto a sociedade brasileira rural, despida das aventuras dos caçadores portugueses que intencionaram recolher frutos sem plantar árvores, se situa no fundamento construído pelos latifúndios para que se privilegiam mais a estabilidade e sedentariedade, porque a fortuna não depende da ousadia mas do trabalho. Deste modo, esteriliza-se o solo para a desconstrução da hierarquia social e elimina-se a oportunidade da ascenção livre no Brasil, para não falar no atraso ou a falta da revolução capitalista. Embora eu admite que houve várias excepções, não podemos, porém, generalizar os acasos, somente baseando na existência de alguns Lulas.

4 Vianna Moog no seu Bandeirantes e Pioneiros defende que “segundo a Igreja , cada um é livre de escolher entre o bem e o mal, para ser julgado” (66), por isso deve existir uma fraternidade universal entre os católicos. Mas, a meu ver, o caso no Brasil não pareceu assim. Além do exemplo do homem cordial, C.R.Boxer deu um outro para ilustrar por que os brasileiros, mesmo que fossem católicos, não possuíram a fraternidade universal: “as a Paulista slave-raider retorted to a Spanish Jesuit missionary, who threatened him with God’s vengeance for killing one of his Christianized Amerindians in 1629: ‘I shall be saved in spite of God, for I am a baptized Christian and believe in Christ, even though I have done no good deeds.’” (Boxer, 317)

5 Vise Padre António Vieira, “Sermão do Bom Ladrão”

6 Vise Paulo Freire, Educação como Prática da Liberdade.
 
 
Bibliografia

Almeida, Onésimo T. “On distinguishing cultural identity from national character”. Memory, History and Critique: European Identity at the Millenium. Eds. Frank Brinkhuis & Sascha Talmor. Proceedings of the Fifth Conference of the International Society for the Studyof European Ideas, University for Humanist Studies, Utrecht, The Netherlands. agosto. 19-24, 1996. CD-rom.

Bacelar, Jeferson. “Blacks in Salvador: Racial Paths” Black Brazil: Culture, Identity and Social Mobilization. Eds. Larry Crook and Randal Johnson. Los Angeles: University of California, 1999.

Boxer, Charles R. The Portuguese Seaborne Empire 1415-1825. Alfred. A. Knopf. 1969

Chauí, Marilena. “Política Cultural, Cultura Política: Reflexões sobre uma experiência governamental na cidade de São Paulo – 1989-1992”. Brasil/Brazil, nº 13. 1995

DaMatta, Roberto. “The Ethic of Umbanda and the Spirit of Messianism: Reflections on the Brazilian Model.” Em: Bruneau, T. C. & Faucher, P., eds. Authoritarian capitalism. Boulder.1981

Delson, Roberta Marx. New Towns for Colonial Brazil: spatial and social planning of the eighteenth century. Ann Arbor. University Microfilms International. 1979

Freire, Gilberto. Casa-grande e Senzala. Rio de Janeiro: José Olympio. 1964

————. Sobrados e mucambos (3ª ed.) Rio de Janeiro: José Olympio. 1961

Freire, Paulo. Educação como Prática da Liberdade. Paz e Terra. 1967

Holanda, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil (26ª ed). Companhia das Letras. 2003

Kujawski, Gilberto de Mello. Idéia do Brasil: A Arquitetura Imperfeita. São Paulo: Senac Editora. 2001

Lourenço, Eduardo. O Labirinto da Saudade: psicanálise mítica do destino português. Lisboa: Publicações Dom Quixote. 1982

Moog, Vianna. Bandeirantes e Pioneiros: Parelelo entre Duas Culturas (19ªed.). Graphia. 2000.

Pascoaes, Teixeira de. Arte de Ser Português. Edições Roger Delraux. 1978.

Paz, Octavio. O Lavirinto da Solidão e Post-Scriptum (2ª ed). Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1984

Ribeiro, Hélcion. A Identidade do Brasileiro: “Capado, Sangrado” e Festeiro. Vozes. 1994.

Russell-Wood, A. J. R. The Portuguese empire, 1415-1808: a world on the move. Baltimore: Johns Hopkins University Press. 1998

Vieira, António. “Sermão do Bom Ladrão”. Editoração eletrônica: Verônica Ribas Cúrcio. 18 de setembro de 2005.  <http://www.cce.ufsc.br/~nupill/literatura/BT2803039.html>

 
 

'Homem cordial da casa e homem mascarado da rua' has no comments

Be the first to comment this post!

Would you like to share your thoughts?

Your email address will not be published.

Images are for demo purposes only and are properties of their respective owners.
Old Paper by ThunderThemes.net

Skip to toolbar