Maria Fernanda Novo
University of São Paulo, USP
Resumo: Este artigo mobiliza categorias e noções presentes nos trabalhos teórico-críticos da racialidade que apresentam intervenções nos textos da ciência moderna e nos apontamentos sobre a criação de espaços de segregação que servem ao regime colonial. Assim, a produção científica e o domínio do espaço revelam os laços coloniais entre política e epistemologia. Tal combinação se torna um vestígio para analisar as formas prolongadas do apartheid que inspira a produção de zonas de exclusão. Enquanto fio condutor do trânsito epistêmico-político, o sujeito racial aparece numa jornada de invenção um mundo comum compartilhado pela posição crítica às formas de dominação e a proposição de projetos de reparação.
Palavras-chave: Modernidade. Crítica racial. Colonização. Necropolítica. Reparação.
Everthing for all: raciality, territory and reparation
Abstract: This article mobilizes categories and notions present in the theoretical-critical thesis on raciality that present interventions in the texts of modern science and observations on the creation of spaces of segregation that serve the colonial regime. Thus, scientific production and the domination of space reveal the colonial connection between politics and epistemology. This combination becomes a trace for analyzing the prolonged forms of apartheid that inspire the production of zones of exclusion. As the guiding thread of epistemic-political transit, the racial subject appears on a journey of inventing a common world shared by the critical position of the forms of domination and the proposition of reparation projects.
Keywords: Modernity. Racial criticism. Colonization. Necropolitics. Reparation.
Houve uma guerra no Rio
Pra quem não soube um delírio
Produto de alucinação
Houve uma ação contra o morro
Armada e genocida
Que regeu aquelas colinas
De sangue de baixo acima
Ação de “Código Penal”
De impotência social
De esbirros e malfeitores
Arrogante e prepotente
Que atirou toda a gente
Num terror irrespondível
Houve gritos e choros
Que a cidade surda
Rapidamente esqueceu
E foi no Corcovado
No quilombo onde já aconteceu
Em algum tempo da história
Que na memória feneceu
Jamais foi contado
Pois lá era a mesma gente
E o país urgentemente
Apagou da mente
A verdade que passou
Mas não é passado é presente
Pra que repetição?
É necessário que abafes
O ruído das sirenes
Que perturbam o ambiente
Dividindo os homens
Entre bons e maus
Entre nós e eles
Entre vivos e mortos.
Beatriz Nascimento, “Transgressão” 47.
O destino e o lugar das pessoas negras ou racializadas foram desenhados junto com a cartografia das rotas de exploração colonial. Neste mundo, que é um só – em referência à noção Tout-monde, de Édouard Glissant –, a história da primeira escravidão coincide com a da colonização do continente africano no século XIX, ambas ancoradas na exploração e em violências às quais as populações têm sido submetidas. Nesse sentido, pessoas negras habitantes do continente americano (a diáspora atlântica) e do continente africano vivem sob uma mesma ordem de razão. Ordem esta que corresponde a um tipo de consciência comum, unidade possível pela qual as populações africanas e diaspóricas se levantam contra a colonização e as formas de dominação (Fanon, Les damnés 587-612). Aproximar essas populações, separadas por um oceano, não é uma simples manobra teórica.
Coloco-me o desafio de colaborar com a construção de uma cosmopolítica projetada para o futuro, uma cosmopolítica da territorialidade, que entende que a criação de territórios de autonomia só será possível com a desconstrução dos territórios de segregação. Onde pisar se o chão das certezas teóricas não está mais aqui, bem embaixo dos nossos pés? Quais caminhos traçar? Quais são as respostas para as diversas perguntas ignoradas em nome da produção do sujeito universal em sua subjetividade particular, que se autopromove desde os limites da Europa?
Glissant, com seu “pensamento do traço” (Glissant, Philosophie 80), pode nos ajudar a responder essas perguntas, porque as linhas que as escrevem não são contínuas tampouco completas. São compostas de traços que pretendem conectar razão e sensibilidade, as quais, na verdade, nunca estiveram separadas se levarmos em consideração certos corpos, para quem essa separação não faz o menor sentido. Tais traços rompem com métodos propagadores da especialização, com a cartilha da metafísica ocidental e com a autorregulação de teorias que fazem da diferença um trunfo da neutralidade, a qual serve para defender o complexo teórico da modernidade, que classifica o inclassificável, estratifica o contínuo e hierarquiza a equivalência.
Tomo parte na tarefa de seguir os passos daqueles e daquelas que estão dispostos a viver e compartilhar uma outra humanidade, um entendimento do humano inédito, porque combina as formas do passado e as forças do futuro que convocam à sobrevivência do planeta e da sociabilidade entre os sujeitos. Minha proposta neste texto é mostrar como a crítica racial e sua teorização são inerentes à uma intervenção radical nos textos da ciência e na noção de espaço, igualmente central para a racionalidade colonial. Esse caminho será traçado com o objetivo de evidenciar como a racialidade, a colonialidade e seus dispositivos de violência promovem a criação de territórios de segregação. Por fim, a pergunta pela saída desse estado insuportável de coisas (e desconstrução da ordem racional hegemônica) para as pessoas racializadas nos leva a pensar a reparação como categoria indispensável que permite reconduzir a história de um só mundo para todos/as/es.
Autores e autoras que circulam pelo amplo espectro da crítica da racialidade têm apontado que as leituras da modernidade e da futuridade negras são, apesar das diferenças, compartilhadas na tradição do pensamento negro (africano, caribenho, latino-americano) e dos black studies, e que o texto moderno coincide com a racionalização do terror. A tradição do pensamento negro é mostrar em cada tese e argumento que o terror racial é central para manter a exploração capitalista, justificada por uma filosofia guiada por ontologias da depredação e do extrativismo. Ao identificar racionalização da violência e modernidade, torna-se possível percorrer uma história da modernidade em nada gloriosa; na verdade, uma modernidade que não serve para ser exibida no mercado mundial do fetiche do progresso, mas que precisa constranger sujeitos e povos para forjá-los única e exclusivamente nos moldes de sua gramática.
A re/posição da lógica racial
Os ideais universalistas da ciência moderna inauguraram um processo de dissolução das cadeias que constroem, ao mesmo tempo, corpo e natureza. O preconceito contra povos não ocidentais em relação aos seus conhecimentos sobre a natureza e sobre si mesmos os subordinaram aos ideais de um progresso inaugurado pelos próprios europeus. Tudo o que era diferente dos traços hegemônicos desse modelo de civilização foi submetido ao julgamento de primitivista, ingênuo, atrasado, selvagem.
A política justificou o controle territorial para além do continente europeu, formalizada por tratados reais que por muito tempo foram a base das filosofias do direito – especialmente pelo Tratado do Atlântico Negro, que instaurou o escravismo moderno, sintomaticamente obliterado pelas filosofias do direito. A invasão das Américas é o maior resultado do uso político do etnocentrismo: decretar a propriedade privada de terras; posse para uns, despossessão para outros. Os povos não europeus dos continentes africano e americano foram escravizados para produzir e concentrar riquezas para os colonizadores. Os resultados da produção em série do etnocentrismo são muitos, constituindo-se como armadilhas que obstruem a saída desse grande mal-estar em que nos encontramos.
O darwinismo social, por exemplo, é a tentativa de suprimir toda a diversidade entre as culturas para cumprir a meta de um suposto progresso. Esta noção considera as etapas de desenvolvimento e acúmulos que levariam a uma só solução genérica para as desigualdades criadas por essa mesma razão das ciências do homem. Diferentes modos de organização e reprodução sociais são considerados como estágios de um desenvolvimento progressivo e único, o qual deve triunfar em nome de um modo de vida ideal que não é igualmente distribuído.
As políticas higienistas não escondem suas raízes. Muito próximo do evolucionismo enquanto organização social, o positivismo científico inaugura o passo decisivo para o capitalismo: a industrialização em escala planetária. A ciência do positivismo se manteve a serviço da exploração dos recursos naturais em benefício de sua ideia de progresso. As noções de mecanicismo extraídas dessa ciência incutiram no fazer científico o princípio de decomposição. Decompõe-se a complexidade para chegar ao elemento mais simples, o que o torna passível de manipulação. Essa lógica consiste no encadeamento de processos básicos cumulativos, onde epistemologia e política se misturam sem se diluírem. As investigações sobre as leis naturais ecoam na fundamentação das ciências humanas, subordinando as dinâmicas de seus campos de atuação ao pensamento viciado na regularidade e na previsibilidade. A fé cega nas leis imutáveis se combina com o etnocentrismo de teorias científicas racialistas, como as teorias eugenistas, criadas para justificar a expansão colonial europeia.
Contudo, entre as muitas maneiras de contar a história das ciências como um tipo de discurso epistemológico, pode-se narrá-la a partir dos momentos disruptivos, cuja síntese se encontra num complexo cruzamento não cristalizado de tendências teóricas e empíricas. Tomo como exemplo as matrizes que disputaram a noção de indivíduo na modernidade, pensada a partir do circuito científico. As fontes de definição do sujeito moderno possuem uma matriz comum. O mecanicismo operado pela metafísica ao longo do século XVII compôs uma articulação profunda o suficiente para marcar todos os referenciais da metafísica à ciência que se desenvolveram a partir deste modelo. Basicamente, as teorias mecanicistas do século XVIII sustentariam três postulados pelos quais se organizou uma suposta unidade discursiva coerente sobre o indivíduo: 1. cada sistema material que compreende um ser vivo se compõe de partículas notadamente distintas, como os átomos, feitos eles mesmos de partículas subatômicas; 2. tais elementos são submetidos a causas elementares que nunca se alteram, ou seja, as forças elementares imutáveis; 3. um processo material é uma sequência de estados distintos, que, portanto, são configurações diferentes de partículas materiais, as quais são perfeitamente previsíveis, já que tais elementos obedecem tão somente a forças elementares invariáveis. Estes postulados supõem que, por um lado, o sujeito considerado como um ser da natureza é resolúvel logicamente em conceitos abstratos, como é o modelo taxonômico aristotélico.
A compreensão do indivíduo a partir da estabilidade postulada nas leis da física influencia, evidentemente, as mais diversas proposições a respeito do ser humano na modernidade, que esquentou os debates metafísicos entre monismo e dualismo, empírico e transcendente, analítico e dialético. O fato é que as proposições acerca do indivíduo no século XVIII ganham uma importante contribuição das ciências da natureza, e o estabelecimento das ciências da vida foi fundamental para a construção de outras perspectivas sobre o humano, os não humanos, a natureza e toda a cadeia de relações que se estabelece entre essas coisas. As ciências da vida certamente têm um papel central na inspiração das investigações sobre o sujeito. Isso significa que a multiplicação dos discursos acerca dos processos biológicos proporcionou também uma interferência na abordagem dos discursos não científicos, e em outras vezes a conexão entre os tipos de discurso, fazendo aparecer um discurso científico inédito, capaz de redirecionar o olhar sobre o indivíduo.
Denise Ferreira da Silva chama a atenção para o arsenal ontoepistemológico que permitiu o interseccionamento entre as noções de vida e razão. É nesse momento de inflexão filosófica sobre o conceito de vida que os efeitos do mecanicismo aparecem: a lógica do seccionamento dos corpos, a taxonomia, a separação que faz da vida uma versão, dessa vez orgânica, porque é orientada pela observação dos indivíduos a partir de seus processos biológicos vitais. Em Homo modernus, a filósofa descreve essa proposta filosófico-científica como a produção de um novo nomos que regulamenta o que entra ou não como categoria descritora do humano. Para a autora, a noção de vida refere-se à autossuficiência, entendida como aquilo que oferece eficácia e um efeito sobre o que é vida. A autossuficiência permitiu que as ciências biológicas no século XIX desenhassem o modo como os estudos científicos e depois os filosóficos a respeito do humano possibilitariam que a raça se tornasse um fato científico per se.
Quando o corpo humano e o social são finalmente compreendidos na universalidade científica, a regulação e a representação, isto é, os poderes da razão universal são resolvidos através de uma narrativa que aborda precisamente o que teve que ser adiado para que não minasse o que marcava o texto da intimidade da mente com o logos escrito pelo pensamento moderno. (Silva, Homo 215)
Esta operatoriedade do discurso científico sobre a vida, com as espécies, os humanos e as raças, é denominada por Silva como estratégia de engolfamento, que garante que as definições científicas e filosóficas se tornem fontes cruciais do que será a analítica da racialidade. Por conseguinte, parece estar em jogo para a filósofa o problema da representação, que confina o humano na exterioridade de si, limitando-o a criar uma moldura em torno da realidade, concebida sobretudo como espelho da razão científica acerca do mundo. No fim, a estratégia de engolfamento anuncia o reforço do dualismo cartesiano, que, apesar das notáveis disputas metafísicas, parece nunca ter abalado a estrutura da sua verdade, assentada na separação entre pensamento e existência, que servirá de modelo para as ciências da vida e posteriormente para a antropologia e a sociologia a partir das proposições sobre indivíduo e sociedade.
A produção do nomos no pós-iluminismo depende, portanto, dos critérios estabelecidos pelo princípio da razão suficiente na sua versão kantiana, o que vincula as proposições sobre os postulados da verdade a um movimento especulativo da lógica. Ao mesmo tempo, Kant redefine os objetos da representação, posicionando o humano como exterior à sua própria razão. Neste sentido, é importante notar que os limites da razão são os limites da representação. Disso pode-se depreender que aquilo que não é humano ou não cabe na representação do sujeito transcendental kantiano seria subrepresentado pela razão.
Charles Mills indica um caminho para compreensão deste princípio pós-iluminista da razão ao destacar a noção de subperson (subpessoa), vinculada ao termo alemão Untermensch, que indica uma existência humana ou individual deslocada dos parâmetros estabelecidos por uma moral comunitária. Acontece que isso não explica completamente a ideia de subpessoa, porque, na verdade, ela está saturada de uma carga corpórea e não apenas moral.
. . . o status peculiar de uma subpessoa é que ela é uma entidade que, por causa do fenótipo, parece (a partir, é claro, da perspectiva do categorizador) humana em alguns aspectos, mas não em outros. É um humano (ou, se esta palavra já parece normativamente carregada, um humanóide) que, embora adulto, não é totalmente uma pessoa. (Mills, Blackness 6)
Ou seja, a razão moderna pós-iluminista não subrepresenta apenas o que não é humano na sua face antropocêntrica, mas também outros humanos, na face da supremacia racial branca. A noção de subpessoa está implícita no uso das ciências biológicas para justificar a maquinaria colonial, com seus pesados investimentos para generalizar a exploração racial. Em outras palavras, tal uso é evidente na exploração da negritude e na instauração da economia de plantation nas terras além dos limites da Europa.
Portanto, o nomos produtivo sobre a vida recalca o que não faz parte da representação do sujeito moderno, conferindo-lhe dois principais papéis, ambos derivados da lógica de exploração monetária: o trabalho dos escravizados e o seu próprio estatuto de mercadoria (fungibilidade) (Hartman), o que ao mesmo tempo garante os princípios orientadores da representação pós-iluminista que confere à subpessoa a validade do sujeito moderno pós-iluminista, cujo modelo se baseia na representação tal como operada pela razão transcendental.
Estamos diante dos problemas das generalizações, e é assim que a filosofia moderna silencia, a partir da taxonomia, a noção de raça para postular diferenças humanas. Silêncio este evidenciado pelos projetos de Mills e de Silva, que, de forma distinta, investigaram detidamente os motivos e consequências para a formação de modelos filosóficos alheios à questão racial. “Portanto, o resultado é um silêncio, um silêncio não de inclusão tácita, mas de exclusão: a experiência negra não é subsumida sob estas abstrações filosóficas, apesar de sua suposta generalidade” (Mills Blackness 3). É necessário um investimento teórico minucioso para incluir no percurso da formação do sujeito racial uma cadeia de significação que possa dizer sobre a experiência vivida do negro, como expressa Fanon.
Paul Gilroy, no livro Entre Campos: nações, culturas e o fascínio da raça, constrói uma arqueologia dos estudos raciais modernos, nomeados também como raciologia, e assim denuncia a manutenção de traços da colonização, ou colonialidade, para justificar estruturas e formas sociais que alimentam o racismo científico, presente desde os estudos das tipologias raciais no século XVIII. Ao descrever o caso de Henrietta Lacks, Gilroy nos informa sobre o prolongamento da racialidade nas ciências do século XX. Na década de 1950, Lacks, mulher afro-americana que lutava contra um câncer, sofreu uma intervenção clínica de um médico que retirou células sem o seu consentimento para cultivá-las e utilizá-las em diversos experimentos. Esse conjunto celular, resultado da primeira linhagem de células cancerígenas cultivadas com sucesso em laboratório, alimenta até hoje o mercado da pesquisa em torno desse material. Não precisamos nos ocupar dos detalhes da operação científica nem de seus resultados para entender que, como aponta Gilroy (Entre Campos 38):
. . . o caso Lacks levanta questões importantes sobre o quanto um material desse tipo, extraído de um corpo, pode ser considerado tecido humano e o ponto que deve ser identificado alternativamente como uma forma de propriedade pertencente não à pessoa em cujo corpo teve origem, mas aos interesses comerciais ocupados em vendê-los com fins lucrativos.
A lição de biopolítica apresentada por Gilroy desmascara as formas lucrativas da genética que se apresenta como uma ciência construída com base na linha evolutiva, para o “bem da humanidade”. A manutenção do Estado-capital depende do controle dos corpos e continua fazendo dos corpos negros seus recursos, fontes de extração de valor; uma relação na qual o sujeito é reduzido a uma equação econômica. Destaca-se mais uma vez a exibição, que atravessa os tempos, do signo negro como coisa, como homem-mercadoria, homem-metal e homem-moeda (Mbembe, Crítica 310). Então, as práticas que organizam os conhecimentos sobre o mundo se mantêm racializadas, e o caso de Lacks é a expressão de um contínuo que impõe aos usos do biopoder um acento primordial na raça.
Veremos adiante que a generalização da racionalidade econômica não é suficiente para interpretar e compreender as formas contemporâneas de controle das populações, da destruição de vidas e da criação de “mundos de morte” aos quais os povos racializados estão submetidos. Formas como essas são produzidas por um modelo de Estado que atualiza o racismo enquanto fonte da instrumentalização generalizada da existência humana na criação de territórios da exclusão (Gilmore, Golden Gulag).
A travessia conceitual proposta pela tradição negra faz aparecer as combinações de epistemologia e política que têm conduzido a re/posição do racial. Em outras palavras, vivemos hoje, sob vários aspectos, sejam eles epistemológicos ou jurídicos, a reabilitação da lógica racial. O século XXI promove a diferença e a identidade essencialista com a consolidação das tecnologias de segurança/vigilância e do controle de corpos e fronteiras (Mbembe, Crítica).
Império racial global, espaços de segregação e ontologias de depredação
Mbembe afirma que: “a ‘modernidade’ é na realidade outro nome para o projeto europeu de expansão ilimitada que foi implementado durante os últimos anos do século XVIII” (Crítica 105). Isso implica, segundo o autor, na dependência do liberalismo nascente naquele momento das posições racialistas e do que viria a ser seu arcabouço teórico, de Bentham a Kant. Os modelos econômicos e políticos em disputa devem fazer parte das convenções do projeto moderno europeu. Nesse caso, capitalismo, colonização e racismo são termos contínuos, sem os quais toda análise que se queira fazer a partir das ciências humanas será deficitária no seu vínculo com a realidade histórica e social. Os sentidos que nascem com a ideia de capturar pessoas no período da colonização escravista ultrapassam os limites do corpo negro como objeto e fundamentam a invenção do negro como signo e imagem da exploração. A racialização e seu efeito randômico atingem globalmente populações vulneráveis e as submetem à máxima exploração.
A naturalização dos sujeitos sem direito, dos “homens-coisas”, alastra a representação ambígua da raça negra. A mesma meia-humanidade que a modernidade forjou para as populações racializadas tornou-se um problema, cuja solução jamais será encontrada enquanto a raça não sustentar todas as análises sobre o capitalismo global e suas formas de reprodução (Crítica 13):
Ao reduzir o corpo e o ser vivo a uma questão de aparência, de pele e de cor, outorgando à pele e à cor o estatuto de uma ficção de cariz biológico, os mundos euro-americanos em particular fizeram do negro e da raça duas versões de uma única e mesma figura: a da loucura codificada. Funcionando simultaneamente como categoria originária, material e fantasmática, a raça teria sido no decorrer dos séculos precedentes a origem de inúmeras catástrofes, tendo sido a causa de devastações psíquicas assombrosas e de inumeráveis crimes e massacres.
Ao descrever esse mundo dividido, o autor apresenta três referenciais que mobilizaram diferentes momentos da colonização. O primeiro se deve à formação dos Estados-nação europeus, projeto no qual os cristãos se viam impelidos a civilizar o mundo: “Confundindo ‘a civilização’ com a própria Europa, [as nações europeias] estavam convencidas de que esta era o centro da Terra” (Mbembe, Crítica 110). Em seguida, com o interesse pelos povos e pelas terras estrangeiras, os Estados europeus aderiram ao argumento científico das raças, apostando numa hierarquia racial que justificava todo tipo de exploração.
Junto com a escravidão e o colonialismo, o apartheid foi a continuidade da fórmula mágica que a modernidade lançou sobre os negros. Essa noção comporta as implicações de uma recombinação de forças sublinhada pelo capitalismo neocolonialista, seja pelo aperfeiçoamento do racismo estrutural e institucional, latitudinal, seja pela interdição dos povos racializados na condução de seu próprio destino. O apartheid teve seu modelo exemplar na África do Sul e conferiu ao colonizador um poder de “super-homem” apossado de um gênio superior, predestinado a governar o mundo. Esse regime de segregação, além de reiterar a manutenção da tipificação racial de cunho científico, também se enredou numa justificativa que transferiu os argumentos biológicos para os culturais, utilizados pelo Estado sul-africano a partir de 1948.
A passagem do biológico para o cultural não se deu de uma vez, mas foi se desenhando a partir de manobras políticas que incidiram sobre os negros da África do Sul, obstruindo sua participação na vida pública e criando uma cisão territorial que fez dessa população aquela que deveria ser, antes de tudo, controlada por sua incapacidade de lidar com a “grandeza” do pensamento europeu, expresso no modelo da burocracia colonial. A disputa a que o apartheid submeteu os negros se constituiu por uma mistura do logos ou razão, campo onde se daria a diferença cultural, com a epiderme, de cunho biológico. Esse modelo foi exportado para o mundo, prolongando a racionalização do terror e criando diversas formas de apartheid, sempre de base racial. Assim compreende Mbembe (Crítica 157):
Mais tarde, o Estado colonial utilizaria os costumes, isto é, o princípio da diferença e da desigualdade, para fins de segregação. Seriam produzidas formas de saber específicas (a ciência colonial) com o objetivo de documentar a diferença, de eliminar a pluralidade e a ambivalência e de fixá-la num cânone. O paradoxo deste processo de abstração e de reificação é que, por um lado, tem a aparência de reconhecimento; por outro, constitui por si um juízo de moralidade, uma vez que o costume, afinal, é apenas singularizado para melhor indicar a que ponto o mundo do nativo, em sua naturalidade, em nada coincide com o nosso; em suma, não faz parte do nosso mundo e, por isso, não poderia servir de base à experiência de uma cidadania comum.
Essa é a raiz da virtualização do Estado colonial, que continua orientando as diferenças culturais para que elas mesmas impeçam o reconhecimento de um mundo comum. A precariedade do acesso ao Estado, a manutenção da lógica da concentração de riquezas e a criação de territórios de segregação reforçam que a diferença, em vez de permitir a redistribuição, concentra. Em outras palavras, o racismo também é a acumulação dos poderes do Estado nas mãos da plantocracia que se apoia na colonização, na escravidão e no apartheid (Mbembe, Crítica 38), na criação das fronteiras, territórios de segregação e espaços de exclusão.
O espaço como categoria da colonialidade tem sido mobilizado no contexto global para a imposição de formas de dominação econômica ou cultural. Frantz Fanon, em Condenados da Terra, afirma que o mundo colonial é compartimentado. A colonização é a racionalização do espaço, e o apartheid é a forma exemplar de como a dominação geográfica sustenta a dominação política, jurídica, econômica, epistemológica etc. Para Fanon, a disposição geográfica da colonização “permite delimitar as arestas a partir das quais se torna possível uma sociedade descolonizada” (Fanon, Les Damnés 453). O espaço está no centro da violência colonial; é por meio dele que nas sociedades colonizadas o policial, o soldado e interventores vigiam as zonas bem definidas: “as zonas habitadas pelos colonizados não são complementares à zona habitada pelos colonizadores. As duas zonas se opõem ao serviço de uma unidade superior” (Fanon, Les Damnés 453). A violência é que o sustenta essa unidade superior, como força primeira da colonização que, segundo Fanon, permite a destruição mais ampla dos modos de vida nativos, dos hábitos, da economia, bem como a criação de dois tipos distintos de humanidade: os colonizadores e os colonizados. O espaço e o território surgem como categorias que permitem à colonização triunfar como um projeto de reordenamento das terras nativas, e como tentativa de destruição do modo de vida nativo ou dos modos da diáspora.
Para o pensamento ocidental, o espaço sempre foi uma importante categoria, cuja instrumentalização acompanha a formação do Ocidente. Os exemplos são repetidos à exaustão pela filosofia, desde Euclides, que busca definir o espaço como função reguladora da ordenação, função de generalizar, de tornar abstrato o que é concreto, passando por Zenão na sua tentativa de regular o tempo pelo espaço, até Aristóteles e o topos como limite que envolve o que está contido em um lugar.
A partir do século XV o espaço passa ser uma ferramenta para generalização do humano, e consequentemente sua objetificação. Uma vez homogeneizado pelos modernos, torna-se um espaço da separabilidade, e é neste momento que o político se submete às estratégias visuais/oculares de reconhecimento de territórios, coisas e pessoas. A engenharia e a contabilidade coloniais dependem de reduzir o mundo conhecido ao espaço tornado homogêneo e ao sistema ocular.
Espaço de segregação, de apartheid, zona de exclusão: todos esses termos informam que o espaço foi usado como métrica da colonização. Ao traçar uma longa trajetória da ideia de espaço para o Ocidente colonial, Muniz Sodré não deixa dúvidas a esse respeito:
O triunfo da doutrina da humanidade absoluta deu-se a partir de uma ordenação espacial centrada na Europa. Dessa maneira, o humano universal criado por um conceito de cultura que espelhava as realidades do universo burguês europeu, gerava necessariamente um “inumano universal”, outra face da mesma moeda capaz de abrigar todas as qualidades atinentes ao não-homem: selvagens bárbaros, negros. (Sodré 31)
Portanto, é a partir da ideia de espaço abstrato, divisível, que se consolida a homogeneização do outro não europeu, ao transformá-lo em elemento acessório do espaço vazio além-mar, da terra livre a ser “conquistada”. Quero chamar a atenção aqui para a simultaneidade da criação da ideia jurídica de terra livre a ser conquistada e do humano-coisa que é expulso ou levado como acessório e mercadoria. No espaço abstrato da colonização reside um esvaziamento das interações entre espaço e seus conviveres. Mas o espaço também é um sistema de relações, portanto, ele escapa à abstração quando é entendido na interação entre o território e as relações que este comporta.
Milton Santos explica a complexidade que distingue espaço na raiz moderna abstrata de território, onde acontecem as interações histórico-culturais, que definem por sua vez a identidade de seus membros. Para o autor, a configuração territorial se compõe das relações sociais que, em certo sentido, materializam a ocupação de um espaço. Nesta perspectiva, o território é um conjunto de existências naturais, de materialidades e de vida que o animam, que se completam na presença das relações sociais e naturais. “A configuração territorial, ou configuração geográfica, tem, pois, uma existência material própria, mas sua existência social, isto é, sua existência real, somente lhe é dada pelo fato das relações sociais.” (Santos, 62).
Mas então como entender a lógica da segregação? A existência de um território instaura relações de produção e uma dinâmica de exploração na criação das plantations. Dessa maneira, a compartimentação do território introduz a capacidade de criar riquezas e mercadorias a serem exploradas à exaustão, estabelecendo a economia extrativista moderna.
No Brasil, a divisão de terras foi o primeiro trunfo da colonização e da introdução de uma lógica de ocupação estranha aos sistemas de interação social e natural pré-existentes, cenário que se aprofunda no período pós-abolição, com a consolidação das normas de segregação espacial. Para a população negra e nativa cujo estatuto jurídico-civil foi alterado de escravos ou tutelados para libertos e autônomos, a liberdade não significou acesso à terra ou o controle dela. Sem terra, sem qualquer garantia de direitos constitucionais, o Brasil pós-abolição se tornaria um eterno exílio para as pessoas negras e originárias. A segregação é fundadora da sociedade brasileira pós-abolição tanto quanto a lógica escravista de subjugação racial, que conferia à supremacia branca seu domínio sobre todas as terras e formas de existência.
O apartheid implicou uma recombinação de forças sublinhada pelo capitalismo racial. Achille Mbembe chama de recalibragem da raça os eventos raciais que no século XX reforçaram o aprisionamento do negro na imagem de uma humanidade precária, esvaziada dos atributos humanos. A noção de recalibragem permite reconhecer a centralidade da raça no século do extermínio e das guerras. De fato, o século XX, a partir das instituições de segregação – como as Leis Jim Crow, o apartheid, a criminalização da cultura e das práticas sociais negro-africanas, e o modelo colonial de exploração de grupos inferiorizados, de imigrantes e despossuídos – transforma a população negra num tipo de laboratório global da ordem capitalista neoliberal. Nota-se que os eventos raciais do século XX se prolongam e se transpõem em estruturas de racialização e na recomposição das figuras do inimigo.
A recalibragem assume diversas faces que se adaptam às transformações do modo de produção capitalista, servindo de engrenagem para a atualização da raça como elemento central para a política de controle da vida. Tal noção compõe um programa geral de reconfiguração das formas de controle que faz da raça seu maior combustível, permeando as agendas de tecnologia, políticas de segurança, imigração e informação. Cabe destacar que a esfera tecnológica do fluxo de dados tem se consolidado como meio de adaptação do modelo colonial no capitalismo, pois, a partir da combinação entre público e privado, atualiza o extrativismo como força motriz para coleta e gestão de dados a fim de assegurar a produção de valor e a vigilância em massa.
Ao observar as ações de Israel sobre a Palestina, Mbembe (Necropolítica) descreve como a lógica de redistribuição dos espaços organizados pela dominação colonial cria territórios de exclusão e impõe aos palestinos uma rotina de violências executadas sob os mais sofisticados aparatos da tecnologia de guerra. O necropoder não é apenas a reformulação máxima da biopolítica – que diz sobre as vidas descartáveis em prol da manutenção do Estado liberal –, mas também a morte tornada recurso, fonte de extração de valor que se disfarça de aparato tecnológico e militar. A necropolítica, enquanto submissão da vida ao poder da morte, se apresenta como realização de um projeto político “bem-sucedido”. Tal sucesso revela-se na eficácia do controle da população submetida às estruturas e operações de violência produzidas pelo Estado contra os declarados inimigos, estejam eles dentro ou fora dos limites da fronteira.
A noção de necropolítica deve ser entendida a partir de três variáveis: territorialidade, guerra de baixa intensidade e lógica da sobrevivência. A primeira molda os espaços urbanos em favor da execução de políticas de segurança. Nesse sentido, a geolocalização da ação policial demonstra a organização do Estado para controle da população, ou seja, a estratificação dos territórios urbanos é definida entre áreas onde a população branca é preservada da presença de negros e áreas onde a população negra é exposta a variadas práticas de violência. Tal dinâmica está expressa na guerra às drogas, nos parcos recursos para sanar problemas de saúde, educação, saneamento e moradia, que tornam as condições de vida nesses territórios muito diferentes daquelas dos bairros brancos de classe média.
A segunda variável, a guerra de baixa intensidade, difere das guerras declaradas nos moldes da soberania moderna, que seriam deflagradas em defesa do território nacional. A guerra de baixa intensidade se traduz pelo controle dos corpos negros através de tecnologias de morte mais eficientes, por serem táteis, anatômicas, projetadas para execuções menos espetaculares e mais silenciosas. Além disso, a circulação crescente de armas (entre civis e agentes do Estado) gera uma insegurança que aprofunda a desigualdade entre quem tem armas ou não.
A terceira variável da necropolítica instaura na dinâmica social a lógica da sobrevivência. Para Mbembe (Necropolítica 62), “o sobrevivente é aquele que, tendo percorrido o caminho da morte, sabendo dos extermínios e permanecendo entre os que caíram ainda está vivo”. São os sobreviventes que gritam pelo fim do racismo, que resistem ao estado de insegurança criado com a circulação de armas e aparatos militares, que querem viver livres da dominação econômica ou militar.
As periferias das cidades brasileiras constituem mais uma ilustração na cena do capitalismo global que se metamorfoseia pela re/posição do racismo. O que define as pessoas que vivem nesses territórios como alvos da ação genocida do Estado? Uma das estratégias do capital global é reduzir à diferença cultural as reivindicações que estão dentro de uma equação jurídico-econômica. Nesse sentido, é possível afirmar que as pautas de denúncia e combate à violência contra a população negra e periférica por parte dos movimentos sociais nunca foram recebidas como prioridade pelo Estado-capital, já que a violência é instrumento estrutural de sua engrenagem predatória. Nessa perspectiva, a morte de pessoas negras, nativas, imigrantes e refugiadas não instaura uma crise ética, porque para o Estado-capital essas pessoas são ninguém.
Denise Ferreira da Silva demonstra que o Estado de direito não é incompatível com o genocídio dos jovens negros nas periferias brasileiras, já que promove uma territorialidade constituída pela criação e manutenção dos territórios de segregação (“Ninguém”). Portanto, o chamado Estado de exceção não explica a continuidade no tempo da violência que acomete tais populações; esta é uma noção inadequada para pensar a realidade dos Estados cuja política é informada pelo controle racial e territorial. Ao invés de exceção, vê-se regra:
A designação desse modo de operação da violência racial do Estado a distingue de momentos de uso dos braços violentos do Estado, os quais ou necessitam de mecanismos de administração da justiça, ou demandam que o Estado, mediante a indicação dos inimigos, justifique por que esses mecanismos são desnecessários. A assinalação dos inimigos, nesses casos, se torna desnecessária porque, nesses territórios ocupados, a racialidade institui uma (in)diferença entre as tarefas de proteção e de autopreservação do Estado, o que põe por terra o momento da administração da justiça na/para a aplicação da lei, sendo o recurso ao direito à autopreservação capaz de anular demandas por condenação ética e reparação legal. (Silva, “Ninguém” 105)
O princípio de autopreservação do Estado é evidente no caso brasileiro; por exemplo, quando a polícia civil do Rio de Janeiro impôs um sigilo de cinco anos sobre os documentos que relatam a ação policial que culminou em 28 mortes na chacina do Jacarezinho, em maio de 2021. Os sigilos sancionados arbitrariamente, como também o auto de resistência e a justiça criminal de maneira geral, seja ela civil ou militar, têm escancarado a vocação do Estado brasileiro em matar pessoas negras, transformando vítimas do terrorismo estatal em inimigos da nação. Esses expedientes revelam a cumplicidade do sistema jurídico no qual se sustentam as políticas de segurança pública que, por sua vez, reafirmam o princípio de autodefesa do Estado. A fim de preservar seus interesses, este impõe a racialidade como diferença para eleger seus ditos inimigos.
No Brasil das elites escravistas, das polícias e milícias, o interesse também é pela guerra interna, alimentada pela insegurança, pelas formas de manutenção da subjugação racial, pela atualização do sistema econômico através de um sistema político que historicamente beneficia os mesmos grupos. A seletividade racial, expressa nos dispositivos legais e nas políticas de segurança pública, transforma o Estado em uma máquina muito eficiente para matar pessoas negras. O Estado brasileiro cria um mundo antinegro letal, mortífero, sem precedentes.
“Tudo para todos” como crítica da reparação
Tudo está se deteriorando com uma rapidez vertiginosa. É impossível não perceber o avançado processo de degradação das noções jurídico-econômicas, das condições ambientais, da falsa simetria do “convívio” de classes e da “cordialidade” que permitem a extração e expropriação do ambiente e dos sujeitos racializados que nele habitam. Tudo parece estar se desfazendo, menos a repetição e o prolongamento da duração do evento racial. Vivemos a repetição de um tempo morto, sufocante, irrespirável. Neste mundo agonizante, mobilizado por crises, a única que não está na lista das prioridades é justamente a crise ética instaurada pela violência total que tira a vida de milhares de jovens negros sob as mãos da polícia, que encarcera, criminaliza, subjuga e condena a existência negra a uma cisão psíquica irrecuperável, para lembrar Fanon, em Pele negra, máscaras brancas.
Em Reading the dead, uma leitura feminista negra do capital global, Denise mobiliza o mundo dos mortos apagando as fronteiras do binarismo razão/sentimento, objetivo/subjetivo, dentro/fora, concreto/abstrato. No entanto, nada é tão simples assim que possa ser refeito com o apagamento destes limites. O mundo dos mortos exige a radicalidade de um outro entendimento: tudo para todos. Esta é a força ética que a leitura crítica revela. O mundo dos mortos participa da composição de tudo que, como matéria, “nutre os instrumentos de produção, trabalho e o próprio capital. Isso é como os mortos escravos/nativos vivem no/como capital” (43). Como adentrar neste mundo? Como redistribuir as potências e forças presentes no mundo invisível, desconhecido? A autora responde com outra pergunta:
Como apreender o mundo novo sem separabilidade, determinabilidade e sequencialidade presumidos nas categorias e conceitos – isto é, a forma do sujeito – que ainda são nossas ferramentas críticas e matéria-prima? Abstração e reflexão têm que partir. Este é um trabalho para a intuição. (Silva, Reading 43)
É com Hortense Spillers que Denise persegue uma ética da carne, que faz aparecer o corpo e o solo expropriados pelo regime de exploração do capitalismo global.
. . . a práxis da poética negra feminista procura contribuir para uma visão de justiça baseada na perspectiva de que a única resposta aceitável para a chamada radical para descolonização é a demanda por nada menos que o retorno/reparação do valor total expropriado e rentabilizado na capacidade produtiva das terras nativas e corpos escravizados. (Silva, Reading 40)
Ao abordar a reconstrução histórica da negridade, Silva aponta os riscos de uma saída essencialista histórica ou biológica que reiteraria a ideia do sujeito deficitário, dependente de uma humanidade incompleta. Por isso sua aposta deságua na emancipação do que pode ser conhecido do negro a partir de uma racionalidade unilateral, que bloqueia todas as fontes que não sejam estritamente o pensamento (A dívida 97); é preciso ver o mundo como o corpo negro o sente.
Outras perguntas abundam sobre a necessidade de criação de um mundo habitável: “Como pertencer de pleno direito a este mundo que nos é comum? Como passar do estatuto de ‘sem-partes’ ao de ‘parte interessada’? Como tomar parte da constituição deste mundo e na sua partilha?” (Mbembe, Crítica 304). As possibilidades de futuro apontam um começo, um ponto de partida para a investigação. De saída, indica-se que a reparação é um assunto incontornável. Para cada uma das três ocorrências históricas que marcam a vida das populações negras (colonização, escravidão e apartheid), ou diante do que faz prolongar o evento racial, existe um conjunto de reparações imprescindíveis caso se deseje uma ocupação comum do mundo.
Enquanto a hierarquia racial existir, sem que haja uma redefinição das estruturas e relações, as reivindicações por reparação serão legítimas e necessárias, mas nunca suficientes. É importante notar que os destinos e impactos sobre as populações racializadas são múltiplos, produzidos em diferentes geografias, territorialidades que culminaram em experiências heterogêneas de pertencimento negro-africanas, afrodescendentes e nativas. Nesse sentido, as políticas de reparação devem corresponder às experiências diversas dessas populações. Isso não elimina a possibilidade de um entendimento comum sobre o que deve ser restituído.
As teorias canônicas da justiça constroem proposições adequadas para sociedades fechadas, promovendo um tipo de déficit espacial, porque são pensadas para uma sociedade sem relações geopolíticas, como se as fronteiras e os territórios de exclusão não estivessem no centro do problema das desigualdades. A crítica a esse modelo de justiça foi feita por Olúfémi Táíwò, para quem a reparação deve ser elaborada considerando o que o autor nomeia como império racial global – que, como vimos, tem início com a colonização, no século XV, e define o destino de milhares de pessoas racializadas em todo o mundo.
O império racial global é tanto um processo cumulativo de recursos que perpetua privilégios econômicos, sociais e existenciais, quanto a efetivação da fronteira como categoria de controle que possibilita a exploração global em escala local. Situada em diferentes territórios, essa fronteira determina a distribuição desigual de recursos, promovendo violências de caráter racial independentemente de onde estiverem situadas as populações racializadas. O argumento de Táíwò (Reconsidering reparations) esclarece que a criação das fronteiras não isola a violência, mas a promove: “Fronteiras são características da superestrutura internacional através do fluxo de bens e direitos e deveres e violência; elas têm efeitos sobre esses fluxos, mas nunca funcionam como muros de contenção que isolam microssistemas” (101).
A reparação para além do fator financeiro é modelada por uma visão de justiça social ancorada no processo de acumulação negativa que recai sobre as populações racializadas. Trata-se de uma reparação para a reconstrução da subjetividade num domínio maior do que o individual, e começa com a distribuição de recursos que garantam a manutenção de existência, do poder econômico e da agência política para tais populações. Isso está presente na história da Revolução dos Malês em Salvador, no ano de 1835, quando um grupo organizado de africanos e descendentes livres e escravizados se insurgiram contra o Estado brasileiro, recém-declarado independente do domínio português. A Revolta dos Malês, que Táíwò celebra, é um recurso da história da resistência negra projetada como cosmopolítica do futuro; uma noção de reparação que está sendo construída há muito tempo, cujo compromisso hoje é responder a essa longa história.
Para que o racismo deixe de operar na mediação das relações do espaço, a razão e a sensibilidade devem ser reorientadas. Isso significa que a produção de conhecimento e a práxis devem ser construídas com a participação de ideias muito mais amplas do que o modelo de escassez e empobrecimento teórico que a hegemonia moderna-colonial produziu. Na prática, a questão é superar a cultura da simulação da justiça social e reconhecer que as lacunas de um conhecimento precário sobre o racial, a raça, a racialização e o racismo continuam causando prejuízos e injustiças.
À guisa de conclusão, como ainda não é possível ver este mundo sem raça no horizonte, o trabalho continua sendo criticar o que possibilitou ao racial fundar os sistemas de exploração que aprisionam o mundo todo numa modernidade sem saída. Nesses termos, a crítica à colonialidade dependerá também de um tipo de abolicionismo epistêmico praticado pela tradição do pensamento negro e dos black studies, que têm fornecido um conjunto de teorias transdisciplinares para lidar com os problemas que um dia foram obliterados pela filosofia política. O abolicionismo epistêmico a que me refiro opera na esfera da metanarrativa da história do capitalismo a fim de descortinar uma interpretação que coincida com a realidade vivida pelas populações racializadas, abordagem esta que corresponde ao projeto de teorização do capitalismo racial de Cedric Robinson. Os acúmulos das epistemologias contra-hegemônicas se somam aos das lutas ao longo de séculos de dominação escravista e colonial, e, quando combinados, se transformam num legado que aponta para uma nova racionalidade e ordenação material onde o sujeito negro não seja reduzido à sombra do fantasma colonial.
Os diversos referenciais teóricos produzidos pela crítica da racialidade e da colonialidade nas últimas décadas permitem a criação de roteiros teóricos implicados na produção de leituras de um mundo comum. Ao mesmo tempo, é necessário ressaltar que os dois eixos centrais dessa crítica se articulam nas ciências e na manutenção de territórios segregação, exclusão e despossessão. Estes eixos estão articulados na crítica da racialidade, e colocá-los em conjunto permite esclarecer que eles agem sistemicamente em todas as esferas das vidas negras, nativas e dos despossuídos. A chance de expor a conexão entre epistemologia e política reorienta a percepção sobre o que eleger como um problema real, que não precisa responder às fantasias metafísicas.
Entre os passos possíveis, sugiro livrarmo-nos da linearidade que tem conduzido a produção filosófica como uma descrição da realidade empobrecida pelo debate em torno do “clube do cânone”, criado para dar sobrevida àquilo que já não oferece mais consistência para o pensamento. Outros problemas aparecem quando a crítica da racialidade transforma a razão de ser da teorização, demonstrando que sair do regime de violências que organiza o Estado-capital e a ordem de razões do mundo compartimentado em territórios de exclusão e exploração das forças humanas e ambientais exige mobilizar todos os esforços em todos os espaços.
REFERÊNCIAS
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