A figura do bode expiatório em Samuel Rawet. O “desejo mimético” e a destruição do corpo adversário.

Karina Marques

Universidade Rennes 2

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RESUMO

Este artigo versa sobre a temática da violência na obra rawetiana, observando a figura do bode expiatório como tópos literário e o “desejo mimético”, segundo o conceito de René Girard, na sua gênese. Como corpus, serão estudados alguns contos de suas coletâneas publicadas entre 1956 e 1981, nas quais os temas do holocausto, da xenofobia, dos regimes ditatoriais brasileiros, da desigualdade racial e social e da discriminação sexual são abordados.

PALAVRAS-CHAVE

Samuel Rawet; violência; corpo; bode expiatório; desejo mimético

ABSTRACT

This article deals with the subject of violence in the rawetian work, through the scapegoat figure as literary topos and the “mimetic desire”, according to the concept of René Girard, in its genesis. Short stories from his collection published between 1956 and 1981 will be used as corpus, in which the themes of the Holocaust, xenophobia, Brazilian dictatorial regimes, racial and social inequality, and sexual discrimination are addressed.

KEYWORDS

Samuel Rawet; violence; body: scapegoat; mimetic desire

 

Introdução

 Seu ódio deve ter adquirido a consistência das coisas permanentes. […] Incorporara-se-lhe” (Rawet 211-212). Esta frase simbólica condensa o espírito da obra rawetiana, permitindo-nos um primeiro contato com o processo de somatização da violência psíquica sofrida pelos seus personagens. Samuel Urys Rawet (1929-1984), escritor brasileiro de origem judaica, nasceu na Polônia, tendo emigrado para o Brasil em 1936. Ainda que o abandono de seu vilarejo natal, Klimontów, não tenha sido motivado pelo antissemitismo que assolava a Europa, o fantasma da violência nunca deixou de assombrar a obra do autor, escrita inteiramente na língua de seu país de adoção. Nesses textos viscerais, o Outro, percebido como concorrente, torna-se tão Próximo, nos seus anseios e vilezas, que o atrito é quase incontornável. O ódio somatizado transforma-se, então, em força pessoal autodestrutiva ou é dirigido contra o corpo rival, na conquista de um objeto comum, dentro do mesmo espaço social. Eis aqui uma dimensão proxêmica diferente daquela que, normalmente, é apontada nos estudos sobre a obra do autor.

Se temas como o judaísmo, o exílio e a homossexualidade são abundantemente explorados nos estudos sobre a obra rawetiana, parece-nos, no entanto, que eles estão subordinados a uma temática maior – negligenciada ou subvalorizada – que é aquela da violência. Omnipresente na obra rawetiana desde o seu primeiro livro, Contos do Imigrante (1956), até o último, Que os Mortos Enterrem seus Mortos (1981), a violência atinge várias esferas: étnico-religiosa, política, social e sexual. Da violência do holocausto àquela das ditaduras brasileiras, passando pelos conflitos sociais estruturais entre raças e classes, adentrando no núcleo familiar, tocando mesmo questões íntimas relativas à sexualidade, tudo passa pela escolha de um bode expiatório como meio de expurgação de tensões.

 René Girard interpreta o bode expiatório como o desejo de focalização natural do ódio humano sobre um indivíduo concorrente, contrariando a sua ligação com o sagrado proposta por Marcel Mauss e Henri Hubert. Segundo Girard, o bode expiatório é “uma verdadeira operação de transferência coletiva que se efetua em detrimento da vítima e que se relaciona com as tensões internas, os rancores, as rivalidades, todas as veleidades recíprocas de agressão no seio da comunidade”1 (“La violence et le sacré” 18-19). Esta operação de transferência ocorre em momentos de crise coletiva aguda, quando acontece, em termos girardianos, um estado de “eclipse do cultural”, de indiferenciação social, no qual os indivíduos perdem ou temem perder o seu espaço e papel sociais. Tal estado social está na origem de perseguições coletivas, como aquelas perpetradas contra os judeus durante a Segunda Guerra Mundial, episódio que marca tanto a biografia de Rawet, como aquela de alguns de seus personagens de origem judaica. No entanto, a sociedade brasileira rawetiana é também retratada como um espaço social caótico, possuindo uma história passada e presente de violência e usurpação e um futuro incerto. Nela, a proximidade nas relações humanas entre indivíduos literalmente desgovernados provoca trocas hostis, contrariamente à imagem de fraternidade multicultural associada ao Brasil. Tal realidade social é geradora de tensões, explícitas ou veladas, propícias à criação de bodes expiatórios, escolhidos entre as minorias sociais, raciais ou sexuais. Girard explica que, nesses tipos de sociedade,  

são as relações humanas que estão caindo aos pedaços e os sujeitos dessas relações não poderiam ser completamente alheios ao fenômeno. Mas, ao invés deles mesmos se culparem, tendem, inevitavelmente, a culparem a sociedade como um todo, o que não os compromete com nada, ou a culparem outros indivíduos que lhes parecem particularmente prejudiciais por razões fáceis de se detectar ( Le bouc émissaire 26)2.

Assim, segundo Girard, não é a divergência de pensamentos que justifica a necessidade de um bode expiatório para apaziguar os conflitos, mas a vileza humana que nos é comum, aflorada dentro de um contexto de disfuncionamento da ordem cultural. É pela designação da vítima, o bode expiatório, que se refaz a unidade do grupo dominante, a diferenciação da ordem cultural, pondo fim ao caos coletivo. No entanto, para que o sacrifício cumpra essa função restauradora, que se encontra no cerne da própria mitologia do sagrado, o grupo deve ignorar a inocência da vítima.

 O conceito girardiano de “desejo mimético” (Girard, “Mensonge romantique et vérité romanesque” 28) procura ainda compreender aquilo que faz com que os seres partilhando o mesmo espaço social rivalizem pelo mesmo objeto e pela mesma glória. Assim sendo, a violência não seria fundamentalmente causada por diferenças de raça, classe, posicionamento político ou orientação sexual, utilizadas como pretexto para camuflar um interesse maior: a conquista de um objeto de desejo comum. Tendo criado a sua teoria a partir de um corpus literário, esse filósofo acredita ser impossível compreender um personagem de forma individual, pois a rivalidade mimética é uma constante no universo ficcional, enquanto representação das relações sociais.

Guiando-nos pelo pensamento girardiano, a obra rawetiana não nos parece apontar a divergência de pensamento ou a diversidade humana como causa fundamental da violência, mas sim o “desejo mimético” entre os homens. O sentimento de ameaça não se explicaria pela identidade – individual/étnica/racial/religiosa/social/de gênero -, mas pelo objetivo humano comum. Não nos parece ser também a distância ou o isolamento, enquanto consequências, as chaves de interpretação da poética do tormento rawetiana, tão constantemente utilizadas pela crítica. Ao contrário, a distância é vista predominantemente como um atenuador de conflitos, ainda que cause dor; enquanto que a coabitação, verdadeira causa de tensões, revela-se impossível. Nesse sentido, a designação de um bode expiatório nada mais seria do que a necessidade de eliminação de um concorrente social, seja ele o “Gringuinho”, o “Profeta”, o negro Crispim, a mulher judia suburbana, o homossexual assumido ou enrustido, ou um cidadão vulgar. Todos os pretextos são válidos. Nosso artigo propõe, portanto, um estudo da violência na obra rawetiana, observando o tópos literário do bode expiatório em seus contos, estando o “desejo mimético” entre os personagens na sua gênese.

Bullying e xenofobia: o vestido da professora rasgado e a descoberta do corpo social

Quando criança, Rawet viveu em bairros da Leopoldina, zona periférica do Rio de Janeiro, lugar que o marcou profundamente. Em entrevista concedida a Flávio Moreira da Costa, em 1969, ele declara: “sou fundamentalmente suburbano. O subúrbio está muito ligado a mim. Aprendi português na rua, apanhando e falando errado” (Seffrin 10). Talvez daí a necessidade de representar a experiência precoce da violência vivenciada pela criança, contra a imagem idílica frequentemente associada à infância. Violência esta que faz da criança um forte rival, movida por um “desejo mimético” ainda sem freios.

Belo exemplo disso é o conto “Gringuinho” de Contos do Imigrante (1956), incluído na coletânea Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século. Nesse conto, que aqui chamaremos de “narrativa de formação” – no intuito de alargar o gênero para além dos limites estruturais do romance -, o amadurecimento precoce do personagem principal, menino judeu recém-chegado ao Brasil, é provocado pela violência por parte de seus colegas. Como cenário, temos a escola, lócus da “violência sistêmica” ou “objetiva”, que, de acordo com Slavoj Žižek, está “ligada às engrenagens bem lubrificadas de nossos sistemas político-econômicos dos quais ela traduz os efeitos devastadores”3 (8). No conto, essa instituição é fomentadora de um outro tipo de violência, “a violência subjetiva”, “imediatamente visível e exercida por um agente claramente identificável”4 (7), explica ainda este mesmo autor. Essa instituição nacional opressora, incitadora de rivalidades, é encarnada pela figura da professora: “Fala Gringuinho. Viera de trás a voz grossa, de alguém mais velho. Fala Gringuinho. Insistia. Ao girar o pescoço na descoberta da fonte fora surpreendido pela ordem da leitura. […] Explicar-lhe? Como?” (Rawet 44).

 É nesse ambiente de disputa constante pela aceitação pessoal, vislumbrando uma integração social futura, que se insere Gringuinho. O bullying do qual é vítima, ultrapassa os muros da escola, alcançando o terreno de futebol, microcosmos da nação e de seus valores. Dois campos são claramente definidos, autóctones contra alóctones, rivais nessa partida por um lugar ao sol no eldorado tropical. Como bode expiatório do grupo, sobre ele os alunos aliviam toda as suas pressões e frustrações:

Gargalhada maciça em contraponto aos titubeios da boca, olhos e mão.

Ontem rolava na vala com Caetano após a discussão. Atrapalhou o jogo. O negrinho cresceu em sua frente no ímpeto de derrubá-lo.

– Gringuinho burro! (43)

O apelido injurioso “Gringuinho” remete-nos ainda a um outro tipo de “violência objetiva”, definida por Žižek: a “violência simbólica”, “encarnada na linguagem e nas suas formas, o que Heidegger chamava de ʽa casa do serʼ”5 (Žižek 8). Fechando a “porta de casa”, ou seja, usando um termo linguístico pejorativo do português coloquial para se referir ao colega estrangeiro, em uma língua que este não domina, os meninos brasileiros excluem-no simbolicamente do corpo social do país. Eles preservam, portanto, o seu território face à concorrência de um rival. Assim, os meninos funcionam como mediadores do desejo pela professora, ou melhor, pela sua estima. E, metonimicamente, pela terra-mãe por ela representada. Ainda que o conto apresente um personagem principal judeu e estrangeiro, Gringuinho não é diferente de seus colegas em algo que é humanamente essencial: a necessidade de aceitação. Por isso, ele teme perder o “compasso”, ser “surpreendido pela ordem da leitura”, “não compreender as “histórias estranhas para ele” (44). Enfim, não se trata aqui de reivindicar a alteridade, mas de almejar a igualdade. Gringuinho quer fazer igual a todos.

Girard fala de um “desejo triangular” (“Mensonge romantique et vérité romanesque” 11), uma relação na qual o desejo de um indivíduo por um objeto em questão nasce da consciência de que este objeto já é desejado por alguém percebido como mais apto ou virtuoso. Sentindo-se incapaz tanto de ser admirado pela professora como de eliminar os seus concorrentes, seu ódio volta-se contra o objeto do seu desejo, transformando-o num adversário. É, assim, pela “violência subjetiva” que Gringuinho, num ato desesperado, tenta possuir o objeto desejado. Enquanto a “violência subjetiva” do garoto, por seu caráter explícito, insubordinado e imprevisível, é recriminada, a “violência sistêmica” da mestre é percebida como normativa: “quando a velha principiou a amassar-lhe a palma da mão com a régua negra e elástica, não se conteve e esmurrou-lhe o peito rasgando o vestido.” (45). Segundo Žižek, a “violência subjetiva”, exerce sobre nós uma atração fascinante. É certamente mais fácil o julgamento sobre a imagem faiscante do ato praticado, do que a análise da “matéria negra”6 (Žižek  9) de fundo. 

A imagem do vestido da professora rasgado é uma cena de tal forma impactante por sua beleza cênica, misto de horror e de sedução, que ela condensa o drama central do conto, em torno do qual circundam o começo e o fim da narrativa. É no rasgar do pano e no descobrir do corpo social, encarnado metonimicamente por essa autoridade feminina, que assistimos ao amadurecimento precoce do personagem: “Quando atravessou o portão acelerou a marcha impelido pelo desejo de ser homem já.” (45). Uma tentativa clara de se equiparar com o seu rival no futebol: o negrinho que “cresceu” em sua frente. Pois é o “negrinho”, como estereótipo do homem brasileiro, e não o “Gringuinho”, o estrangeiro, que ganha a partida e domina o terreno: no futebol, na escola, na vida.

O estrangeiro como bode expiatório: preservação do corpo de classe

O conto “O Profeta” da mesma coletânea é um texto também circular. Uma história de começo-fim, partida-chegada, composta por um grande flash-back da história de exílio frustrada do personagem principal, cujo verdadeiro nome desconhecemos. O navio de partida é a imagem mais pungente dessa narrativa, que une as duas pontas do texto e da vida desse judeu errante. Não é, todavia, a ideia de movimento que esse navio sugere, mas a de uma volta ao mesmo, um regresso à dor original, tal uma barca de Caronte. As imagens da violência sofrida pelo personagem, sobrevivente do holocausto, corroboram essa ideia: “As formas na penumbra do quarto (dormia com o neto) compunham cenas que não esperava rever. Madrugadas horríveis e ossadas. Rostos de angústia e preces evolando das cinzas humanas” (29).

Os abundantes estudos que se têm feito sobre esse conto reduzem o perfil do personagem principal ao papel de vítima do holocausto, da xenofobia da sociedade brasileira e da insensibilidade dos seus. Não obstante a pertinência dessas análises, parece-nos que o personagem do profeta é muito mais forte do que alguns indícios mais aparentes nos levam a acreditar. Não sem razão, ele é percebido pelo genro, enquanto usurpador da riqueza da família, como um rival. Se o irmão superou a miséria, vencendo no eldorado tropical, o Profeta venceu o Holocausto e concorre agora, também, a um lugar ao sol: “Soube ser recente a fortuna do irmão. Numa pausa contara-lhe os anos de luta e de subúrbio, e triunfante, em gestos largos, concluía pela segurança atual. Mais que as outras sensações essa ecoou fundo.” (29). O Profeta, apesar de sua frustração ao se comparar com o irmão, não se põe como seu concorrente. Ao contrário, é apenas com ele e com sua mulher que ele consegue se comunicar, apesar das diferenças: “Com o tempo, arrefecidos os entusiasmos e a curiosidade, ficara só com o irmão. Falar mesmo só com este ou a mulher […] Os outros não o entendiam […] muito menos o genro por quem começava a nutrir antipatia” (27). A rivalidade se estabelece, portanto, não entre o Profeta e seu irmão, mas entre o Profeta e o genro, pois na percepção deste, o estrangeiro é um forte candidato à predileção do irmão e, por consequência, à sua fortuna.

Compreendendo a força de seu concorrente, o genro exerce uma “violência simbólica” pela alcunha “o Profeta”: “- Aí vem o “Profeta”! Mal abrira a porta, a frase e o riso debochado do genro surpreenderam-no” (27). A relação de opressão dá-se, portanto, pela força de palavra do genro contra a impossibilidade de expressão do estrangeiro. O genro é, ainda, a personificação de um modelo capitalista desumanizado, desvalorizando a tradição: “E as unhas tratadas e os anéis, e o corpo roliço e o riso estúpido e a inutilidade. […] Risada canalha. Carteado. Cifras.” (28, 29). Assim como ao Gringuinho, ao Profeta, enquanto estrangeiro, cabe, portanto, o papel de bode expiatório do grupo, dessa nova família surgida graças à fortuna do irmão e que teme pela manutenção do seu status quo.

“Natal sem Cristo” da segunda coletânea de contos do autor, Diálogo (1963), apresenta ainda um personagem principal judeu, mas desta vez já bem integrado em solo brasileiro. A narrativa confronta dois bodes expiatórios históricos: o judeu, percebido como traidor (figura de Judas Iscariotes), e Jesus Cristo, que “pagou pelos pecados do mundo”.  O texto começa in medias res por um sacrifício, a crucificação simbólica de um homem comum, Nehemias Goldenberg, que, sentado à mesa de um apartamento situado no bairro nobre carioca da Urca, é vítima da agressão dos outros convivas: “erga-se-lhe o rosto criminoso como estigma definido por não se sabe que hábitos” (123). Temos aqui uma alusão aos sacrifícios rituais antigos, nos quais a força dos hábitos se impunha sobre as razões concretas. As imagens do cálice, do vinho e da carne cortada corroboram essa ideia. Há ainda uma cena que se constrói de forma nítida: aquela da última ceia de Cristo, estando Nehemias, como o traidor Judas, cercado pelo clã cristão.

No entanto, algumas linhas à frente, percebemos uma rivalidade objetiva, movida por forças ligadas muito mais ao universo profano do que sagrado. Luís, “político de primeira eleição ganha” (124), filho da matriarca, Nani, exprime com sarcasmo a sua percepção sobre os judeus: “- São muito simpáticos os judeus, muito simpáticos. E um senso político extraordinário. Marx e Rotschild, Disraeli e Bernard Baruch… Senso político extraordinário. Têm o mundo nas mãos.” (126). Ao citar nomes de judeus célebres no universo político e econômico, Luís mostra conhecer bem a força de seu concorrente. Mas é a adolescente Lenita, na sua espontaneidade, que confirma a hostilidade do grupo com relação ao convidado: “- Mas não foram os judeus que mataram Cristo, papai?” (idem).

 É mais uma vez a disputa por poder econômico e social que está em jogo na escolha de Nehemias como bode expiatório do grupo, o que Girard explica: “percebemos rapidamente que ele [o sacrifício] não é efetivamente estranho a nenhum aspecto da existência humana, nem mesmo à prosperidade material”7 (“La violence et le sacré” 19). Ao olhar o crucifixo na parede, Nehemias tece um diálogo com o seu par ancestral, sob a forma de um monólogo interior: “Tu e eu vivemos a perpétua morte e ressurreição pelos séculos afora […] vivemos marginais, odiados e temidos.” (129). É o despertar da consciência sobre a equivalência de seus papéis enquanto bodes expiatórios, denunciando a manipulação do discurso histórico e religioso. No pensamento girardiano, Jesus é aquele que confrontou o homem à sua própria violência, revelando o mecanismo vitimário: “os Evangelhos dizem […] que Jesus está no mesmo lugar que todas as vítimas passadas, presentes e futuras.”8 (Le bouc émissaire 189-190).

Violência sistêmica e a figura do bode expiatório político no contexto da Ditadura Militar e do Estado Novo

Se a figura do bode expiatório associada ao imigrante judeu está presente em muitas narrativas rawetianas, o autor não deixou, no entanto, de associá-la, mais diretamente, à gente e ao contexto político de sua terra de acolhida. Ainda que apenas duas passagens em toda a sua obra esbocem mais diretamente uma denúncia contra a arbitrariedade dos regimes ditatoriais brasileiros, o autor não estava alheio à opressão que o circundava, nem às mazelas de seu povo. Assim, vemos em “A Reinvenção de Lázaro” de O Terreno de uma Polegada Quadrada (1969), um personagem vítima do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), órgão histórico de repressão aos movimentos sociais e populares, centro de tortura durante a ditadura do Estado Novo (1937-1945), retomando essa prática durante a Ditadura Militar (1964-1985): “Zupa, que era Raimundo, foi na conversa de uns comunistas e acabou moído pela turma do DOPS.” (311).

Quem nos dá a conhecer este personagem é um de seus amigos, Lázaro, que, tal como ele, é bode expiatório na sociedade brasileira, não por pretextos de ordem política, mas para a manutenção da estrutura hierárquica nacional, pois Lázaro é um operário explorado, escultor de túmulos num cemitério de alto padrão. Toma-se, assim, a “violência subjetiva”, na sua espetacularidade, como simples sinônimo de violência. Enquanto isso, a “violência objetiva” gangrena as relações humanas, desvalorizando até mesmo a morte de uns em relação àquela de outros.

Alguns anos mais tarde, em “O Riso do Rato” de Que os Mortos Enterrem seus Mortos (1981), assistimos a um resgate da memória específica dos anos de repressão do Estado Novo: “A mãe estava presa e mandara um recado para os parentes. Na polícia viu-a no meio de um grupo de mulheres do mangue esbravejando […]. No caminho ela não fez outra coisa a não ser repetir que estava apenas passando pelo lugar quando foi envolvida na confusão” (348). Pouco antes desta passagem, podemos situar o contexto no qual esta ação repressiva está inserida pela frase: “Derrubaram Getúlio. Teve a impressão de que desde que a guerra acabara, há alguns meses, já ouvira esse boato algumas vezes.” (idem). Duas observações fazem-se importantes sobre este trecho: a confusão da mãe, judia, com as mulheres do manguezal, sinal da generalização da violência e da arbitrariedade da escolha do bode expiatório; o fato dessa cena surgir na memória de Eliezer Kugelman, personagem de origem judaica acusado de violar seu próprio irmão, seu rival na família e nos negócios. Como se ninguém estivesse imune a uma “violência sistêmica” por parte do Estado, engendrando as minorias numa espiral de violência; e como se a violência pudesse se somatizar transgeracionalmente, manifestando-se sob a forma de distúrbios psíquicos e patologias sociais.

A vingança das minorias: corpo liberto ou autodestruído?

O conto “O Jogo de Damas” de Diálogo (1963) gira em torno de uma partida de damas entre Crispim e Galego, sendo que os apelidos pejorativos associados à raça dos competidores condizem com a cor das peças que movem no tabuleiro. É, portanto, uma dicotomia bicolor que rege toda a narrativa, remetendo-nos à hierarquia social racializada da sociedade brasileira. Crispim, negro, é determinado socialmente como habitante de uma favela, paisagem que lhe vem à mente a cada lance. Assim, os flancos da morro também dividem os terrenos dos adversários. Nessa concorrência desleal, a conquista do jogo é a conquista da vida. Face à vitória constante de seu adversário, Crispim apercebesse que jamais poderá alcançá-lo:

Que faltava a ele e sobrava no outro? Os dias de rotina na fábrica, a lustrar sempre as mesmas peças, as idas e vindas diárias […] E agora vinha Galego, ganhando há três dias, uma após a outra, todas as partidas. (118).

 Sendo o jogo uma metáfora da vida, é desta incapacidade de realizar uma performance social equiparada ao seu rival, que advém o espírito de vingança de Crispim. Se, como negro, este personagem seria o bode expiatório por excelência do jogo social brasileiro,  é o seu “desejo mimético” de ganhar, impossível de ser realizado por vias meritocráticas, que o faz encontrar estratégias compensatórias pela “violência subjetiva”. A palavra  “saque”, no próximo trecho, esclarece a “violência sistêmica” na gênese da passagem ao ato de Crispim, remetendo-nos à história da escravidão no Brasil:

Galego recolhe o produto do saque do campo devastado. E ao enfileirá-los vagarosamente sobre a mesa, vê o brilho de uma lâmina à altura do peito, antes de fechar os olhos no grito de dor. Crispim dobrado sobre a mesa sustenta-lhe o corpo com a ponta de aço. (idem)

O corpo de Galego é o troféu de Crispim, é o troféu de todos os seus: negros, favelados, oprimidos. A navalha de Crispim assume a imagem do punhal ritual, não como objeto sagrado, mas como aquele usado para expurgar o mal histórico causado. Nesse sentido, Girard explica: “é a comunidade inteira que o sacrifício protege de sua própria violência, é a comunidade inteira que o sacrifício desvia em direção às vítimas que lhe são exteriores”9 (Girard, La Violence et le Sacré 18). Graças à passagem ao ato, Crispim “joga”, finalmente, como os brancos.

  No texto “O Casamento de Bluma Schwartz” de Que os Mortos Enterrem seus Mortos (1981), é a vingança de outra minoria que se exprime: aquela das mulheres. É também uma inversão de bodes expiatórios que vemos no conto. Se, à primeira vista, Bluma é o estereótipo da mulher judia gananciosa, percebemos, aprofundando a leitura, que ela é, sobretudo, a sofrida suburbana brasileira. É uma lógica robin hoodiana que domina este conto, na imagem da vingadora que deseja tomar dos homens abastados o dinheiro e o respeito que eles usurpam das mulheres pobres. Casando por interesse, ela vinga no presente a violência e a miséria de seu passado: “Com quase dois meses de doença do marido, conseguia pouco a pouco controlar os gerentes das cincos filiais e assumir o controle do escritório que administrava seus próprios imóveis e outros interesses” (351). Em flash-back, escutamos a sua história de vida inicial: “Trabalhava num pequeno escritório na zona industrial suburbana […] Passou quase quinze anos tentando recuperar alguma coisa que perdera com o primeiro homem que a envolvera, alguma coisa que perdera com o aborto forçado” (idem). O atual marido é, portanto, o bode expiatório da violência cometida por outro homem sobre Bluma: “Durante um mês manteve relações diárias com outros homens […] No mês seguinte anunciou-lhe a gravidez e o casamento foi marcado. Quarenta e poucos dias de casados lhe deram tempo suficiente para reduzi-lo a um trapo entregue a um grupo de psiquiatras.” (352). Depois deste trecho, uma enumeração de drogas dadas ao marido parecem entorpecer simultaneamente os sentidos do leitor, fazendo-nos hesitar entre associar a imagem metálica à campainha da empregada ou ao punhal ritual, sugerido mais adiante: “a ilusão, ainda de alguma coisa perdida, ao ver a empregada aparecer ao mesmo tempo em que envolvia com os dedos a campainha” (idem).

É também entre a ambiguidade da dor e do gozo que se situa o texto, num tom extremamente sadomasoquista. Se as primeiras linhas do conto, associadas ao título “casamento”, induziam-nos a pensar num ato sexual – “ouviu os gemidos do quarto sem dar grande importância. Encontrava-se na posição que mais lhe agradava depois do casamento.” (350) – as linhas finais retomam a mesma cena, sugerindo um outro ato consumado “O frio da prata e da voz. A cerimônia do casamento se processara no mais perfeito esquema ritual” (353). Assassinato imediato ou morte induzida, é o sacrifício do marido que prevalece a fim de expurgar todo o mal cometido contra Bluma e, de forma mais ampla, contra todas as mulheres exploradas e vítimas de violência.

E o corpo sedutor e jubilante da viúva negra expõe-se como um troféu aos olhos do leitor: “em frente do espelho grande ocupando um quarto da parede da sala” (350). Espelho este que sugere a subversão da tradição judaica de cobrir os espelhos após a morte de alguém, para que a beleza e ornamentação do corpo dos vivos não seja exposta face à decomposição daquele dos mortos. Mas a beleza felina de Bluma, vaidosa e voluptuosa, triunfa sobre o corpo de sua presa. Vitória conjunta por suas duas identidades: enquanto judia, oprimida pela força coerciva da religião, e enquanto suburbana brasileira, excluída pelo seu gênero e condição econômica. Seguindo subversivamente os ensinamentos dos seus, o sacrifício cometido é a aliança simbólica reafirmada. Uma aliança entre marginais e transgressores, em que os fins mais nobres justificam os meios mais perversos.

A mesma associação entre sexualidade e hierarquia social está presente no conto “O Encontro de Os Sete Sonhos (1967). Nele, podemos observar a imagem de uma luta encarnada na metáfora da caça:

Inútil adiar o instante. Olhou mais uma vez pela janela, viu no mesmo lugar o tipo baixo e magro, encolhido na própria espera e aparente distração, mediu-lhe o grau de ódio pelo aspecto surrado da camisa e pelas calças rotas […]. Passou rente ao tipo numa nítida sugestão de caçada. […] Sentiu-se seguido. (155)

 Nesta passagem, o cliente escolhe um jovem prostituto como um animal selvagem a sua presa. Há aqui uma associação clara entre o jogo erótico e a violência, como afirma Georges Bataille: “essencialmente o domínio do erotismo é o domínio da violência, o domínio da violação”10 (Bataille 18). Este mesmo filósofo, utilizando-se, também, da metáfora da presa e do predador, relaciona o desejo erótico ao desejo capitalista de economia de recursos e autopreservação:

A passagem do estado normal àquele de desejo erótico supõe em nós a dissolução relativa do ser constituído dentro da ordem do descontínuo. […] O desejo de produzir com poucos gastos é pobremente humano. É ainda próprio da humanidade  o princípio estreito do capitalismo, aquele do administrador da “sociedade”.11 (19, 65)

É nesse jogo, entre o se entregar ao outro e o querer preservar o seu próprio corpo e a sua posição social, que se situa o conto. A imagem da caçada sugere um fim trágico para o prostituto, na sua aparência de animal frágil e nas suas vestes rasgadas de miserável. Ele é o bode expiatório perfeito da frustração sentimental do cliente, rival na conquista por parceiros sexuais. O cliente faz questão de marcar a superioridade do seu poder sexual e econômico sobre o seu parceiro, como podemos ver pela imagem de seu falo em ereção, associada àquela das notas que tombam sobre a mesa: 

O membro erecto, o corpo em tensão. […] Principiou a tirar o dinheiro que pusera no bolso da camisa, e a soltar as notas uma a uma. Percebia pelas pausas dos passos que o seguiam que o tipo se abaixava para recolhê-las. (156- 158).

Sedentos da mesma necessidade de superioridade tanto sexual quanto econômica, é mais uma vez o pretenso bode expiatório que reverte o jogo social. É, ainda, a imagem da lâmina do justiceiro que se esboça ao leitor. No entanto, a arma não fere apenas a vítima, mas também o algoz: “Foi então que ele deixou cair o último maço de notas […]. E se aproximou do tipo que o esperava tendo já na mão o brilho de uma faca, lâmina larga de dois gumes, e ainda conseguiu abraçá-lo e beijá-lo antes que um reflexo de prata e sangue lhe atingisse os olhos.” (158). A faca de dois gumes indica que, desta vez, o bode expiatório não pode mais expurgar o seu mal ou aquele de seu grupo, pois este lhe é intrínseco. O cliente nada mais é do que a sua projeção narcísica, o seu lado unheimlich (Freud 222), essa estranheza tão familiar que o constitui, enquanto ser marcado pelo estigma da homossexualidade. O prostituto é, assim, portador de um auto-ódio recorrentemente retratado na obra rawetiana, sentimento profundamente arraigado contra o qual não há compensação social possível.

Considerações finais

 A figura do bode expiatório, tão fortemente presente na obra rawetiana, ultrapassa, portanto, qualquer interpretação simplista de vitimização ou associação a uma herança judaica ancestral. Ela pode ser compreendida, na sua complexidade, por meio do conceito girardiano de “desejo mimético”, unindo os personagens numa competição mesquinha, propriamente humana, pela satisfação de um objeto de desejo comum. Nesse sentido, o Outro, adversário, é também o Próximo, semelhante em anseios e vilezas. Esta guerra de duplos revela-se, portanto, altamente suicidária, pois a destruição do Próximo sempre nos atinge com os seus estilhaços.

A figura do bode expiatório, na obra rawetiana, remete-nos, portanto, à representação de um corpo que somatiza e semiotiza uma história de violência criada em torno de um “desejo triangular”, ainda nos termos de Girard. Impossível, assim, analisá-la de forma individualizada, sem considerar os personagens existentes em seu entorno e a ânsia que partilham.  

Os textos rawetianos ressaltam, ainda, um pano de fundo comum no qual estão envolvidos os seus personagens: a presença de uma lógica capitalista nas instituições sociais de base – tal como a escola, o trabalho e a família – fazendo de seus membros eternos concorrentes em busca de poder econômico e social, numa competição cuja violência normatizada nos leva a confundir causas e efeitos, desviando-nos da fonte dos conflitos e mesclando bodes expiatórios a seus algozes.

Notas:

  • Todas as traduções deste artigo foram feitas pelo próprio autor: “une véritable opération de transfert collectif qui s’effectue aux dépens de la victime et qui porte sur les tensions internes, les rancunes, les rivalités, toutes les velléités réciproques d’agression au sein de la communauté”.
  • “ce sont les rapports humains qui se désagrègent et les sujets de ces rapports ne sauraient être complètement étrangers au phénomène. Mais plutôt qu’à se blâmer eux-mêmes, les individus ont forcément tendance à blâmer soit la société dans son ensemble, ce qui ne les engagent à rien, soit d’autres individus qui leur paraissent particulièrement nocifs pour des raisons faciles à déceler”.
  • “liée aux rouages bien huilés de nos systèmes politico-économiques dont elle traduit les effets dévastateurs”.
  • “immédiatement visible et exercée par un agent clairement identifiable”.
  • “incarnée dans le langage et ses formes, ce que Heidegger appelait ʽla maison de l’êtreʼ”.
  • “matière noire”
  • “on s’aperçoit vite qu’il [le sacrifice] n’est pas vraiment étranger à aucun aspect de l’existence humaine, pas même à la prospérité matérielle”
  • “Les Évangiles disent […] que Jésus est à la même place que toutes les victimes passés présentes et futures”.
  • “C’est la communauté entière que le sacrifice protège de sa propre violence, c’est la communauté entière que le sacrifice détourne vers des victimes qui lui sont extérieures”.
  • “essentiellement le domaine de l’érotisme est le domaine de la violence, le domaine de la violation”.
  • “le passage de l’état normal à celui de désir érotique suppose en nous la dissolution relative de l’être constitué dans l’ordre discontinu. […] Le désir de produire à peu de frais est pauvrement humain. Encore est-il dans l’humanité le principe étroit du capitaliste, celui de l’administrateur de la ʽsociétéʼ”.

Biografia:

Bataille, Georges. L’Érotisme. Les Éditions de Minuit, 2011.

Freud, Sigmund. L’inquiétante étrangeté et autres essais. Éditions Gallimard, 1985.

Girard, René. Le bouc émissaire. Éditions Grasset et Fasquelle, 1982.

 __________. La violence et le sacré. Hachette/ Pluriel, 1998.

 __________. Mensonge romantique et vérité romanesque. Fayard/Pluriel, 2011.

Mauss, Marcel e Hubert, Henri. “Essai sur la nature et la fonction du sacrifice”.  L’année sociologique, n. 2, 1899, pp. 29-138.

Moriconi, Italo (Org.). Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século. Objetiva, 2000.

Rawet, Samuel. Samuel Rawet. Contos e Novelas Reunidos. Civilização Brasileira, 2004.

Seffrin, André. “Samuel Rawet: Fiel a Si Mesmo”. Samuel Rawet. Contos e Novelas Reunidos. Civilização Brasileira, 2004, pp. 9-15.

Žižek, Slavoj. Violence: la Violence n’est pas un accident de nos systèmes, elle en est la cause. Au Diable Vauvert, 2012.

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