O “terceiro lugar” nas Três Lagoas de Flora Thomé

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“El silencio produce ruidos”, Vanessa Alcaíno Pizani

Daura Del Vigna Galvão
Universidade Federal da Grande Dourados-UFGD
dauravigna1@hotmail.com

 

Paulo Bungart Neto
Universidade Federal da Grande Dourados – UFGD
paulobungart@yahoo.com.br

 
 
 

Introdução

 

O atual panorama de globalização caracteriza-se pela produção de uma cultura em constante movimento e pelo surgimento de um cenário de grandes mudanças sociais, culturais, econômicas e geopolíticas. A globalização informa o fluxo transnacional de capital e também de pessoas em espaços sociais e zonas de contato nas quais diferentes perspectivas culturais se encontram, e, inevitavelmente, colidem entre si. A fase transnacional está ligada ao “descentramento” do sujeito e de suas identidades e aos deslocamentos territoriais, conforme aponta Stuart Hall, ao mesmo tempo em que o centro cultural da contemporaneidade está em todo lugar, está também em lugar nenhum (36). Tais deslocamentos supõem a dissolução de fronteiras de interpenetração entre “mundos” e discursos, entre mundo tecnológico e mundo natural, entre “primeiro” e “terceiro” mundo, entre o global e o local, o universal e o regional, metrópoles e aldeias. Dissoluções de fronteiras podem ser claramente observadas na Campanha publicitária “Você sem fronteiras” (http://neogamabbh.com.br/pt#/portfolio/225/1), lançada em 2009 pela empresa de telefonia TIM (Telecom Itália Móbile), veiculada em forma de videoclipe. O comercial dura apenas um minuto, evocando a “rapidez”, defendida por Ítalo Calvino (1990) como uma das propostas para o século XXI, pois em tão pouco tempo consegue mostrar várias transformações ocorridas no panorama mundial. Eis a transcrição do mesmo:

 

É tempo de mente sem fronteiras.

Alguma coisa está acontecendo.

Um homem negro com sobrenome muçulmano

é presidente dos Estados Unidos.

O prêmio de melhor jogador brasileiro do mundo

é de uma jogadora.

O papa está fazendo sermões pela Internet.

O prêmio de MELHOR FILME

foi dado a um filme produzido na Índia.

E qualquer pessoa pode carregar sua própria rede.

As fronteiras estão se abrindo.

É isso que está acontecendo.

E toda banda larga será inútil

Se a mente for estreita.

É tempo de mente sem fronteiras.

TIM, você sem fronteiras.

(NEOGAMA/BBH, 2009)

 

O filme publicitário exibe cenas de fatos marcantes e surpreendentes da atualidade ocorridos em diversas partes do planeta que contribuíram para um mundo mais receptivo à inovação. Atrelados à mensagem escrita, simultaneamente surgem ícones representantes das significativas mudanças pelas quais o mundo tem passado. As fronteiras rompidas são enfatizadas pela imagem de representantes de diferentes segmentos: Barak Obama, representando a política mundial; a jogadora brasileira Marta Vieira da Silva, representando o esporte e a quebra do paradigma de que homens brasileiros são os melhores do mundo no futebol; o papa Bento XVI, representando a religião; um filme indiano (“Quem quer ser um milionário, 2008”), representando a arte, em especial a sétima arte, quebrando o paradigma de que o prêmio de melhor filme fique sempre nas mãos de Hollywood ou do cinema europeu. Muitos aspectos poderiam ser explorados nesse comercial; contudo, destacamos o que pensamos ser a principal mensagem para quem assiste ao comercial: se tantos paradigmas como os demonstrados foram quebrados, também o interlocutor pode romper fronteiras, ultrapassar limites, e é claro, nesse contexto, tornando-se cliente da operadora anunciada.

A fim de melhor disseminar a campanha, a NEOGAMA/BBH – empresa produtora do comercial – lançou mão de recursos típicos das “informações globalizadas” para extrapolar fronteiras de gênero, classe social e etnia recorrendo a canais de TV aberta e fechada, peças sequenciais nas principais revistas semanais, jornais, mídia exterior, cinema, mídias online e alternativas. Alexandre Gama, presidente e diretor geral de criação e planejamento da empresa criadora, declarou:

 

Mais que uma campanha, criamos um percurso para a marca TIM em sintonia com a estratégia da empresa e com a tendência de queda de barreiras de comportamento social, tabus e tudo mais que a Era da Comunicação está modificando. Essa visão é ‘Mente sem Fronteiras’, valor-chave hoje em dia para se viver em sociedade.

(2009, http://neogamabbh.com.br/pt#/news/stories/208)

 

A globalização requer que também o crítico cultural use parâmetros que atravessem fronteiras, línguas e culturas, que possibilitem novos sentidos de conexão, além das modernas conexões cibernéticas, e uma abertura que vá muito além das propostas pelos especialistas em marketing, que buscam impulsionar cada vez mais o consumismo, diferentemente do papel do crítico e intelectual, que deve buscar maneiras de demonstrar que “toda banda larga será inútil se a mente for estreita”, ou seja, não basta a velocidade das informações transmitidas, é preciso que sejam processadas, analisadas, aceitas, repudiadas, contrapostas, negociadas. Diante do fenômeno da globalização, da diluição de fronteiras, o crítico cultural precisa, como sugere Andreas Huyssen “[…] voltar seu foco concreto para localidades específicas, suas histórias, línguas e heranças, ele terá que problematizar a atual definição de globalização, e ainda criar uma forma de cosmopolitismo crítica e autocrítica” (Huyssen 19). Exemplos de teorias que correspondem à preocupação de Huyssen são a teoria da diáspora e a do cosmopolitismo, ambas fruto do fenômeno da globalização. Aderindo à sugestão desse crítico é que, sob o viés da teoria da diáspora e dos estudos da memória, propomos uma reflexão sobre algumas produções intelectuais e poéticas da escritora sul-mato-grossense Flora Egídio Thomé, mais conhecida como Flora Thomé, como será referenciada neste artigo.

 

Flora Thomé: escritora fruto da diáspora

 

A escritora nasceu em 1930 na cidade de Três Lagoas, Estado de Mato Grosso do Sul, Brasil, lugar onde residiu até seu falecimento, a 1º de abril de 2014. Viveu atenta aos meios de comunicações e às artes, não só de sua cidade como de várias partes do mundo. Thomé foi uma amante das viagens. Para ela, viajar é a “união do prazer à curiosidade, a busca de novos horizontes, informações. É conhecer pessoas, lugares, culturas […]. Viajar é um jogo duplo: sair e voltar” (Thomé, Viajar… e viajar 1999). No afã de extrapolar fronteiras e conhecer outras culturas, viajou por diversos países, como Espanha, França, Itália, Portugal, Inglaterra, Estados Unidos, Bélgica, Holanda, Dinamarca, Suécia e Noruega. Mas é no Brasil que seguiu o sagrado ritual de ir ao menos uma vez por ano ao Rio de Janeiro, a “Cidade Maravilhosa”, a fim de assistir a apresentações teatrais, shows de cantores e compositores como Caetano Veloso e Gilberto Gil e outras figuras emblemáticas da música popular brasileira. Apesar do rito, a autora declara a força que a liga a suas raízes treslagoenses: “Aqui como lá, me sinto em casa. Após ter passado algumas semanas na Cidade Maravilhosa, gosto de retornar ao meu chão, às minhas origens e até aos medos e receios, tão meus… tão nossos!” (Thomé, Viajar… e viajar 1999).

Flora Thomé graduou-se em Letras e exerceu o magistério por 42 anos, ministrando aulas no ensino fundamental, médio e superior. Pela identificação que teve com a profissão, um dos poemas de que mais gostava é: “Uma escola passou por minha vida / e por vontade pedi carona / virei quadro-negro e apagador. / virei lição / virei aula” (Thomé, Retratos s/p). Professora, poeta e articulista, a escritora foi membro da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras, ocupando a cadeira 33; foi também membro titular do Clube de Escritores de Piracicaba-SP; fez parte do Conselho Estadual de Cultura (MS). Escreveu crônicas e artigos de cunho político-administrativo, cultural e literário em jornais e revistas de Três Lagoas, como o “Correio do Povo” de Três Lagoas e no Suplemento Cultural do Jornal “Correio do Estado”, de Campo Grande. Fez palestras e participou de debates e mesas-redondas sobre literatura e cultura.

Suas obras publicadas, todas em verso, são: Cirros (1960); Canção desnuda (s/d); 61- e o experimentalismo polivalente na literatura (1974); Antologia dimensional de poetas três-lagoenses (1983); Cantos e recantos (1987); Retratos (1993); Haicais (1999); e Nas águas do tempo (2002).

Cirros, obra que marca o início da produção literária de Flora Thomé, foi publicada pela primeira vez em 1960 e ganhou a segunda edição em 1980. Na primeira edição, Thomé enviou carta e exemplares para poetas reconhecidos e consagrados na literatura brasileira, como os modernistas Cassiano Ricardo, Carlos Drummond de Andrade e Cecília Meireles, dentre outros. Desses, Cecília Meireles e Cassiano Ricardo respondem com comentários que constam na orelha do livro, sobre o qual Cassiano Ricardo declara:

 

Esses versos me revelam (…) uma fina sensibilidade, atenta ao segredo que Deus só conta às crianças e, aos que como os que nascem poetas, se parecem com elas. E embora a autora indague: “que ritmo o meu / se permaneço imóvel / à espera da vida?”. O que está fazendo, em verdade, é imprimir o seu ritmo às coisas que a cercam. É dar novos nomes a essas coisas, graças ao seu delicado e pungente lirismo (Ricardo apud Thomé 1980 s/p).

 

Cecília Meireles escreve à nova escritora que surgia no cenário literário agradecendo pelo exemplar enviado, em tom de poema concreto, brinca poeticamente com palavras que usa para incentivar a nova poetisa:

Agradecendo o exemplar de seu livro, mando-lhe uma resposta breve:

PENSE Prossiga   Pare

PARE   PENSE     Prossiga

PENSE   Pare         PROSSIGA

PENSE   PENSE   Pare

Pare       PENSE     PROSSIGA

Etc.

Com esse método creio que não se arrependerá. Felicito-a cordialmente

(Meireles apud Thomé 1980, s/p) [1]

Flora Thomé é filha de Egídio Thomé e Hassib Thomé, imigrantes libaneses que se conheceram em São Paulo no início dos anos vinte (1920), durante o movimento migratório dos sírios e libaneses para diferentes países da América, e se mudaram para Três Lagoas em busca de uma vida melhor.

As razões que provocaram esse “surto migratório” dos sírios e libaneses são geralmente vinculadas a fatores de natureza econômico-demográfica que desestabilizaram a economia de subsistência de suas aldeias. Segundo Truzzi (317), “a partir das últimas décadas do século XIX, o exemplo de alguns pioneiros bem sucedidos estimulou exponencialmente a emigração”; então, impulsionados pela experiência de seus precursores, outros sírios e libaneses foram impelidos pela grande onda emigratória, como afirma Afif E. Tannous: “Como um ‘fermento possante’, [a emigração] agita todas as aldeias e povoados de nosso campo. Todo mundo está em movimento e ninguém parece disposto a ficar, desde que possa, de um jeito ou de outro, arranjar dinheiro suficiente para a viagem” (apud Truzzi 333). Assim, a oportunidade de melhoria de vida, de ganho supostamente mais rápido influenciou as famílias a enviarem seus filhos temporariamente à América como forma de resolverem seus problemas financeiros. Era a “febre imigratória” contagiando as aldeias.

Os libaneses que chegavam ao Brasil, em geral, advinham de famílias de agricultores e produtores donos de pequenos lotes de terra cultivados por toda a família. Mas, quando esses imigrantes chegavam a São Paulo, deparavam-se com uma estrutura agrária bastante diferente da que conheciam e não tinham recursos financeiros para se tornarem proprietários rurais, tendo, assim, que fixar-se como colonos. Segundo Truzzi, a maioria desses imigrantes “não hesitou em optar por uma atividade que os mantivesse na condição de trabalharem para si próprios, escapando das agruras da condição de colonos ou operários” (321). Como em geral vieram com pouco capital, essa atividade só poderia ser a mascateação. Uma das vantagens que esse ramo comercial oferecia era o pouco investimento financeiro, pois em geral obtinham mercadorias de “patrícios” já estabelecidos na nova terra, os quais lhes adiantavam os produtos e permitiam que o acerto de contas fosse feito após as vendas. Além disso, a falta de domínio da língua portuguesa ia sendo vencida através do contato com os compradores, e o desemprego era um “fantasma” que não os ameaçava. Trabalhando duro e gastando o mínimo para sobreviver, vislumbravam a possibilidade de posteriormente abrirem o seu próprio estabelecimento. Essa foi a trajetória percorrida pelo pai de Flora Thomé, que iniciou suas atividades comerciais como mascate antes de tornar-se proprietário da “Casa Barateira”. Ele faleceu à época do início da Segunda Guerra Mundial, quando “o mundo todo enfrentava extrema situação de penúria” (Thomé, apud Rosa 138). A escritora tinha então nove anos de idade.

Sobre os vínculos culturais familiares, Thomé declara: “Cresci numa família árabe, arraigada às tradições do país de origem, apegada em excesso aos filhos” (apud Rosa 138). A fim de manter a tradição do Mundo oriental, todos os sete filhos do casal receberam nomes típicos de sua tradição: Michel, Monir, Nufo, Magid, Samir, Flora e Sânia. Dona Hassib lutou muito para manter os filhos unidos. Sobre a pobreza da infância, Thomé rememora: “Minha infância foi como a de toda menina pobre, que faz da rua e do quintal seu espaço de liberdade, de correria” (138). Contudo, apesar de todas as dificuldades enfrentadas, ela descreve: “Minha mãe criou os filhos de maneira autêntica, impondo-nos deveres e responsabilidades dentro de um clima de grande liberdade” (138). Como consequência da união de forças da família Egídio, havia metas bem definidas a serem conquistadas: “Tínhamos o compromisso de nos ajudar mutuamente, tanto que trabalhávamos para formar dois irmãos que estudavam, um no Rio e outro em São Paulo” (138). Assim, dos filhos de imigrantes libaneses que passaram por tantos obstáculos, Michel, o primogênito, foi prefeito de Três Lagoas, Monir se tornou médico, Nufo é dentista e Flora, uma respeitada professora, escritora e intelectual, que publicava crônicas de teor crítico em jornais da região e ministrava palestras em eventos culturais e acadêmicos.

 

A imigrante libanesa de olhar esfíngico

 

A produção poética de Flora Thomé é permeada pelo memorialismo, pela tentativa de eternização através da memória, de momentos, pessoas, cenas, lugares que lhes foram caros. É a busca de não deixar o esquecimento se sobrepor à memória.

Em Memória da Cultura e da Educação em Mato Grosso do Sul – Histórias de Vida (1990), Thomé faz uma retrospectiva sobre sua vida pessoal e profissional. Ao recordar-se de sua mãe, a autora assim a descreve:

 

Apesar de imigrante era mulher inteligente, culta, falava bem o português, o inglês, tinha excelente cultura bíblica e uma vontade firme no que tocava à educação dos filhos. Papai nos havia deixado em situação difícil, no início da Segunda Guerra, quando o mundo todo enfrentava extrema penúria. Então mamãe nos ensinou, desde cedo, a sobreviver através do trabalho (Apud Rosa 138, grifo nosso).

Em seu livro de poemas Retratos (1993), Thomé pinta com palavras o quadro de sua mãe, dona Hassib:

Cabelos / mãos / corpo / alma / branca! // Olhos firmes / mansos / bravios / viventes / amenos / esfíngicos / azuis! // Vontade inscrita / no livro da vida, / espírito forte, / e coragem voraz, / era ainda / uma ternura tão terna / como uma eterna manhã! // De gestos definidos / e voz segura, / corria atrás da vida! / Corria! // Sua vida, / uma lição de vida! / Plena! // Hoje sua imagem / é uma garça branca / dentro de mim! (THOMÉ, poema 13)[2].

O poema é rico em metáforas que atestam a força de uma mulher que “Apesar de imigrante era mulher inteligente, culta” e que, além de sua própria língua de origem, ainda falava bem o português e o inglês. Além disso, tinha sabedoria para ensinar aos filhos valores como responsabilidade e liberdade, catapultando-os sabiamente para a vida. A língua árabe fora ensinada aos filhos, como um vínculo entre o país de origem e o país que a recebera. É provável que Dona Hassib tenha sofrido preconceito naqueles tempos, pois era representante de vários tipos de minorias: era imigrante, mulher e viúva, com sete filhos para criar. Apesar dos obstáculos, tinha personalidade forte e destemida, indômita, como descrita no trecho “Olhos firmes / mansos / bravios / viventes / amenos / esfíngicos”.

Do jogo de antíteses usado pela escritora – que demonstram as várias facetas de sua mãe, mulher ao mesmo tempo de olhos amenos, de gestos definidos e voz segura, que correu atrás da vida ensinando aos seus também como fazê-lo –, destacamos a expressão “mulher de olhos esfíngicos”. Na mitologia egípcia, a esfinge é uma imagem icônica, ser híbrido, com corpo de leão e cabeça de falcão ou de uma pessoa. Uma das mais antigas representações dessa figura mitológica é a Esfinge de Gizé, um enigmático monumento que fica ao lado das pirâmides do Egito. Ela tem corpo de leão, patas dianteiras estendidas, e cabeça humana, coberta com uma manta funerária (nemes). A cabeça humana com toucado real ergue-se nove metros acima do corpo de leão, com setenta e dois metros de comprimento, esculpido em sólida rocha. A esfinge tem feições altivas e uma fisionomia serena; tem olhar e sorriso enigmáticos que parecem ultrapassar o Nilo, transcendendo espaço e tempo. O monumento é um exemplo de resistência. A partir dessas informações históricas e mitológicas, associamos as características da esfinge de Gizé à figura de Hassib Thomé. Primeiramente, por ser uma mulher que demonstrou a valentia de uma leoa, pois, mesmo tornando-se viúva tão jovem, usando na cabeça, ainda que invisivelmente, uma manta funerária símbolo de luto, conseguiu tão bem proteger seus filhos. Ao mesmo tempo em que podia ter cabeça de pessoa, racionalizando, inclusive projetando o futuro profissional de seus filhos, também poderia ter cabeça de falcão, em especial do “falcão peregrino” diaspórico, um dos mais velozes seres vivos do planeta, possuidor do mais apurado sentido visual dentre todos os animais, podendo enxergar pequenas presas a mais de um quilômetro e meio de distância. Assim, era ela uma visionária, capaz de ver muito longe, para bem além das Três Lagoas. O olhar esfíngico e azul da mãe de Flora Thomé devia apresentar um ar de nobreza e realeza. Como as esfinges sírias, que possuíam asas, para Thomé, no quadro de sua memória, sua mãe é uma garça branca dentro de si. Em segundo lugar, como sujeito diaspórico, Dona Hassib tornara-se um sujeito portador de características do hibridismo cultural, fruto do deslocamento do Líbano, sua terra natal. Se a Esfinge é a guardiã das pirâmides de Gizé, Dona Hassib fora a guardiã da família Thomé.

 

O mascate e suas quinquilharias: Egídio Thomé

 

Quando chegou ao Brasil, Egídio Thomé iniciou seu trabalho como mascate, mercador ambulante que oferecia mercadorias de “porta em porta”. A distância não era empecilho:

 

Os mascates embrenharam-se sertão adentro, percorrendo fazendas onde eram bem recebidos pelos colonos, que preferiam com eles negociar. As condições de pagamento eram mais tolerantes e as compras fora da venda diminuíam a dependência dos colonos em relação aos fazendeiros (Truzzi 321).

 

Assim, a população da zona rural se constituiu num importante mercado para os mascates, propiciando um intercâmbio de costumes e culturas.

Em sua poética memorialista, Flora Thomé rememora a figura paterna evocando “o mito do mascate”:

 

Todo mascate / ou vendedor ambulante / que à minha porta bate / tem sabor de madrugada/ batendo no peito! / Evocação de um passado que traz sensações sinestésicas. // […] // Roto, ofegante, cansado, / mal chegava,/ já se ia… / Vinha apenas se abastecer / das mesmas quinquilharias! // Era repleto de histórias / e de estórias, / da cidade e do sertão! […] (Thomé poema 12).

 

Thomé rememora com saudades a presença do pai, que provavelmente se levantava de madrugada para viajar com suas malas repletas de produtos, alimentando o sonho de economizar para montar seu comércio em lugar fixo. As visitas dos mascates que então batem à porta da escritora ganham carga sinestésica: têm sabor e batem-lhe no peito. Os mascastes viviam em constante tráfego. Quando retornavam para suas casas, estavam desgastados, cansados, mas eram determinados a atingirem seus objetivos: “Mal chegavam, já se iam”, “vinham se abastecer das mesmas quinquilharias”. Contudo, no pouco tempo em que permaneciam com a família, tinham muita coisa para contar: “Era repleto de histórias / e de estórias, / da cidade e do sertão!”. Nesses versos se evidenciam o trânsito de conhecimentos, a troca cultural, o processo de transculturação que, na visão de Ángel Rama, em obras literárias, pode se realizar em três níveis: linguístico, de estruturação narrativa, e o da cosmovisão (Aguiar e Vasconcelos 88). Os aspectos apontados por Rama são aplicáveis ao contexto com o qual Egídio Thomé se deparava, pois precisava mercadejar com falantes de uma língua diferente da sua, transitando, assim, com o tempo, entre as duas línguas, ao tomar conhecimento de fatos reais e ficcionais que transmitia a sua família.

À época da enunciação desse poema havia distinção no significado das palavras “estória”, relacionada a narrativas fabulosas, ficcionais, e “história”, restrita a fatos reais. As novidades que o pai da escritora trazia para a família eram notícias que circulavam tanto pelo sertão quanto “pela cidade grande”, provavelmente São Paulo. Do transitar contínuo de coisas e ideias que iam e voltavam metamorfoseadas em histórias/estórias, experiências, influências exercidas, influências adotadas, ocorria uma mescla entre o real e o imaginário, o que podemos associar à afirmação de Truzzi:

 

O mascate encarnou uma espécie de mito fundador da etnia. […] Sua figura constitui a única base possível de identidade coletiva de uma colônia fragmentada entre diferentes religiões e regiões de origem. […] Sua perspicaz capacidade de adaptação à nova pátria impressionou a ponto de gerar narrativas onde se confundiram fábula e realidade (Truzzi 333).

 

Dessa forma, o ambulante acabou se tornando um mito porque passou a ser visto como um “integrador e difusor das novidades das capitais pelos sertões do Brasil afora” (Truzzi 334). Através desse mito, a identidade da colônia sírio-libanesa foi sendo negociada, valorizada e “reinventada simbolicamente”.

Segundo Santiago 2008, “Todos os grandes artistas e intelectuais da modernidade ocidental […] passaram pela experiência da Madeleine[3]. Há um passado comum – na maioria dos casos, cosmopolita, aristocrático ou senhorial – que pode ser desentranhado de cada uma das sucessivas autobiografias de variadíssimos autores” (Santiago 47). Flora Thomé também passou pela experiência da madeleine proustiana; a sua advinha das sensações evocadas pelas batidas de mascates na porta: sensações táteis, gustativas, emotivas, pois tinham sabor de madrugada batendo no peito.

 

O “terceiro lugar” em Três lagoas

 

Inicialmente, fizemos uma retomada da origem diaspórica da escritora treslagoense. Partiremos agora para uma visão mais macrocósmica, a fim de refletirmos sobre o hibridismo cultural que se deu na cidade natal de Thomé. Kosalka destaca a importância de “[…] compreender o processo de formação da identidade histórica, primeiro no nível individual e depois no mais amplo” (apud Achugar 223).

O locus de enunciação de Flora Thomé é Três Lagoas, Estado de Mato Grosso do Sul (MS), Brasil. A cidade situa-se em um entroncamento de malhas viária, fluvial e ferroviária; possui acesso privilegiado às regiões Centro-Oeste, Sudeste e Sul do país e a países da América do Sul. A cidade formou-se a partir da intersecção de diversos povos e etnias que ali se estabeleceram em decorrência de movimentos migratórios nacionais e transnacionais.

Em vários momentos de sua produção poética e de suas crônicas culturais escritas para jornais da região, Thomé demonstra preocupar-se com questões referentes à identidade do povo que compõe sua cidade. Logo no início da crônica “Quem somos nós?(2009), ela responde:

 

Uma ponte para atravessar o rio, uma ferrovia para levar pessoas. // Ao redor das três lagoas, mineiros, goianos, paulistas, nordestinos, árabes, portugueses, japoneses, espanhóis e outros se juntaram e formaram a população  do município de  Três Lagoas. O que aqui havia? Areia, muita areia rodeada  de água por todos os lados, sol   e muita possibilidade de   empregos. // Cada um desses “imigrantes” trouxe de suas regiões seus usos e costumes, formas diferentes de expressar e de viver e que o tempo encarregou de alterar em decorrência  da interação  social (Thomé s/p).

 

Quem somos nós? Uma ponte para atravessar o rio, uma ferrovia para levar pessoas? Apenas um ponto de confluência entre malhas pluvial e ferroviária? Em seu desejo de encontrar uma identidade que particularize o “SER ASSIM de Três Lagoas” (Thomé 1993; grifo da autora), a escritora – intelectual, diaspórica e periférica – em relação aos grandes centros culturais brasileiros, busca compreender a identidade de seu povo.

Thomé continua sua circunspecção retomando a passagem do tempo e a evolução pela qual a cidade passou. Contudo, mantém uma preocupação: é preciso avaliar, julgar como se construiu o passado para se poder “corrigir/ ‘armar’ a memória. […] A memória que postula uma zona intermediária, um equilíbrio instável entre passado, presente e futuro” (Achugar 222), como podemos associar ao fragmento abaixo:

 

O tempo passou… a cidade cresceu… Para onde caminhamos? Antes de mirarmos o futuro, necessário se faz aquilatar o que trouxemos do ontem. Quais nossas raízes? O que nos identifica como três-lagoenses?  Qual a nossa marca registrada? À procura de respostas a estas indagações fui em busca de nossa memória cultural. Por onde começar? Por festas populares e religiosas, clubes sociais, cinemas, artes, esporte, pessoas, lugares e expressões. Informações coletadas, restava extrair a essência  de todo esse amálgama, para enfim, termos o nosso próprio registro cultural (Thomé, Quem somos nós, s/p).

 

A crônica é permeada pelo “dever de memória”, proposto por Paul Ricoeur, que destaca a busca do entendimento da memória ligado à ideia de obrigação, o dever de memória, que vai de encontro ao esquecimento (99-104). A escritora tem consciência da importância do “direito de memória” que envolve a reconsideração do passado, o “aquilatar” de fatos, a fim de que seja arquivada a memória coletiva de sua cidade a partir de uma releitura, da reconstrução de narrativas não consideradas “memória oficial, homogeneizadora”, mas contadas sob a perspectiva dos que não têm garantido seu espaço de enunciação, das várias vozes silenciadas, dos tantos “planetas sem boca” (Achugar) que se estabeleceram em Três Lagoas, lugar que se transformou numa verdadeira “zona de contato”, que, segundo Mary Louise Pratt, “são os espaços sociais onde culturas díspares se encontram, se chocam, se entrelaçam uma com a outra. Frequentemente em relações assimétricas de dominação e subordinação” (Pratt 27).

Para ressaltar a posição estratégica de sua cidade como uma zona de fronteira no sentido geográfico que, por conseguinte, acabou se tornando em “zona de contato”, Thomé enfatiza: “Três Lagoas é uma cidade atípica, está tão perto de São Paulo que o povo vai fazer suas compras em Andradina” (apud Rosa 130). Ela narra que, com a construção da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil (1912), “[…] o contato com São Paulo, de cuja margem distamos apenas sete quilômetros, tornou-se mais acentuado. Passamos a assimilar a cultura paulista, além da mineira”. Como decorrência da implantação da Noroeste do Brasil, muitos paulistas se mudaram para Três Lagoas à procura de emprego. Presumimos que alguns desses trabalhadores acabaram se submetendo a condições de trabalho não tão dignas quanto as aspiradas, confirmando-se as relações assimétricas de dominação e subordinação apontadas por Pratt.

Thomé conta que a aproximação entre treslagoenses e paulistas foi se estreitando, principalmente no que tange à linguagem e que: “Existe assim um padrão de uniformidade cultural entre Três Lagoas e São Paulo, principalmente na região da Noroeste do Brasil, que vai das coisas mais rotineiras, como a comida, o trabalho da dona-de-casa, às construções artesanais” (apud Rosa 140). Nos anos vinte e trinta, a cidade recebeu uma grande e variada leva de imigrantes: portugueses, árabes e japoneses. Na década de 1960, a instalação da Barragem de Jupiá trouxe novo impacto econômico sobre o lugar: “Com a construção da usina sobre o rio Paraná, o trânsito de veículos através do asfalto para São Paulo mudou a fisionomia da região” (Thomé apud Rosa 140).

A crônica “Quem somos nós” (2009) é permeada pela constante preocupação da autora com o seu “dever de memória”. Ela reconhece que, se no passado já não era fácil fazer um “tombamento” da diversidade cultural de sua cidade e de sua identidade, maiores seriam as dificuldades em tempo de globalização, tempo de maior fragmentação e descentramento do sujeito:

 

Se nos primórdios  de nossa formação, além da imprensa, sempre  presente no registro  de nossa história, o rádio  era nosso único contato com  o que acontecia “lá fora” e, mesmo assim,  não tivemos  características  próprias  que  realmente nos identificassem (…), imaginem  hoje com TV, celular, computador, satélites, etc., etc. Quando há um vocabulário  universal que possibilita a comunicação com os outros povos e civilizações. Neste mundo globalizado, este levantamento de  informações constitui, pois,  apenas registros de  comportamentos e idéias, enfoques  e observações que supomos ser os principais  sobre usos  costumes e vivências da cidade fundada pelo Ilustre Antonio Trajano (Thomé, 2009 s/p).

 

No início do capítulo “Sobre relatos, memórias, esquecimentos e ouvidos – permanências e mudanças na cultura latino-americana”, o crítico uruguaio Hugo Achugar faz algumas reflexões sobre o tema da identidade ou da identificação com as quais podemos relacionar os questionamentos de Thomé, sujeito feminino, filha da diáspora, escritora do interior do Mato Grosso do Sul, com os de um “planeta sem boca” que procura construir com orgulho o seu “balbucio” nesta “miopia global”:

 

[…] nossos raros balbuciantes escritos ou nossas balbuciantes falas, por sermos nós mesmos, e não o que querem que sejamos. Mas é claro, uma vez mais ressurge a pergunta: Quem somos nós? Não há uma única resposta, pois “nós” é heterogêneo, deslocado, em constante mudança e, sobretudo, não é nem deve falar com uma única, autoritária, solitária voz. A dificuldade reside no fato de que os planetas têm / temos músicas diversas e “prestar atenção (a suas estranhas ‘outridades’) é algo realmente escandaloso” (Achugar 23; grifo nosso).

 

Achugar esclarece que balbuciar não é uma carência, mas uma afirmação, pois mesmo um balbucio é uma voz que pode reivindicar o próprio. O balbucio de Thomé é o de alguém que se preocupa com questões existenciais tais como: “De onde viemos? Para onde vamos? Para onde caminhamos? Qual a nossa identidade, nossa marca diferenciadora?” (Thomé, 2009 s/p). Ao tentar fazer um levantamento de informações, registros de comportamentos e ideias, além de exercer seu “direito à memória”, a autora garante também seu “lugar” na construção identitária de uma comunidade que sabe o valor e a necessidade de seu “balbucio” para a consolidação do processo de formação cultural e histórica do estado de Mato Grosso do Sul e região.

 

Considerações finais

 

A diáspora é uma via de mão dupla, que traz transformações tanto para o sujeito migrante em relação à sua vida diária, sua história e seu comportamento, quanto para a sociedade que ele adota. Por isso, a imigração está diretamente ligada ao fenômeno da transculturação, que é o resultado do encontro de diferentes povos e suas diferentes culturas. Dessa forma, os movimentos migratórios trazem transformações tanto para os que saem de sua terra quanto para os que os recebem, pois, “valores materiais e simbólicos, os diferentes padrões de comportamento e culturais se cruzam, provocando a desagregação dos elementos ‘autênticos’ associados à origem” (Hall 31). Como não perder a autenticidade em um espaço onde regras, costumes, linguagens e até indumentárias são diferentes? Como não se anular, perdendo a própria identidade nas “zonas de contato”, lugares que invocam a presença espacial e temporal de indivíduos anteriormente desconhecidos cujas trajetórias agora se cruzam?

Com a existência de sujeitos nas “zonas de contato” e nos “entre-lugares” (Santiago 2000), é imprescindível a busca de estratégias de negociações que visem a co-presença, a coexistência e a interação, entendimentos e práticas interligadas que amenizem os impactos resultantes dos cruzamentos de indivíduos cujas identidades foram diferentemente formadas de acordo com suas culturas específicas. Para Stelamaris Coser, Homi Bhabha “[…] abandona a visão da sociedade e da cultura entrincheirada em dicotomias e posições antagônicas para defender um terceiro espaço ambivalente e fluido, onde identidades e relações seriam construídas” (Coser 173; grifo da autora). As relações instauradas no “terceiro espaço” constituiriam uma “experiência intersticial”, o que abriria possibilidades para que grupos minoritários construíssem suas próprias “visões de comunidade” e suas próprias versões de “memória histórica” […] (Bhabha 69).

Num lugar constituído como “terceiro espaço”, há que se preocupar com o intercâmbio de valores, significados e prioridades, que devem procurar ser colaborativos e dialógicos. Há que se respeitar a diversidade, sem, contudo, permitir que uma “zona de contato” se transforme em uma zona de cultura amorfa, inexpressiva por perder a diversidade cultural daqueles que a compõem, pois o âmbito global não pode sufocar o local, tornando culturas heterogêneas numa massa uniforme e homogênea. É nas “zonas de contato” que é negociada a existência do “novo ambiente” que se cria a partir do “antigo ambiente”, pré-existente aos processos migratórios. Assim, as fronteiras culturais são redesenhadas, como propaga a campanha publicitária da TIM, “Mente sem fronteiras” (2009): “As fronteiras estão se abrindo. É isso que está acontecendo”. Não adianta recorrermos à fuga através da negação, pois a globalização trouxe mudanças irrevogáveis. Entretanto, “toda banda larga será inútil / Se a mente for estreita”; precisamos, pois, ficar atentos às transformações de um tempo de estreitamento de fronteiras: “É tempo de mente sem fronteiras”.

Ao recorrer ao fenômeno mnemônico, buscando resgatar, além das figuras paternas, as de pessoas simples ou ilustres de sua cidade, a escritora Flora Thomé garante o “direito de memória” dos vários tipos que a compuseram, como explicita na obra Retratos:

 

Nesse trabalho tentamos capturar imagens/mitos que representaram e representam as diversas categorias humanas e sociais de nossa aldeia. (…) São imagens/ mitos que estão no mundo, não como modelos ou exemplos, mas seres ativos, perceptíveis na memória de quase todos. Importância da memória individual e da memória coletiva (Thomé s/p).

 

Dessa maneira, Thomé ultrapassa as fronteiras do tempo ao lançar-se em busca da memória coletiva de sua cidade. Segundo Maurice Halbwachs: “De todas as interferências coletivas que correspondem à vida dos grupos, a lembrança é como a fronteira e o limite: ela está na interseção de muitas correntes do pensamento coletivo” (13). Às vezes, o que resta é a “floresta de signos” (Baudelaire), diante da qual “nos encontramos sempre na encruzilhada, com nossas histórias e memórias (…)” (Hall 27-28).

Mencionamos anteriormente a “febre migratória” que tomou conta dos libaneses, impulsionando-os para a diáspora que os conduziu a uma distante e antes impensável América. Entretanto, quando sujeitos diaspóricos conseguem retornar à terra de origem, encontram dificuldades para se readaptarem, por sentir falta do ritmo de vida ao qual haviam se aclimatado. Muitos sentem que o ponto de partida tornou-se irreconhecível. O estranhamento também ocorre na ótica dos conterrâneos que permaneceram em sua própria terra, pois percebem que perderam os elos naturais e espontâneos relativos à cultura que possuíam. É o paradoxo da diáspora contemporânea: os que voltam sentem-se felizes por estarem novamente “em casa”, mas deslocados, como pássaros que estiveram muito tempo longe do ninho, uma vez que sofreram os reveses da história, que, de alguma forma, “interveio irrevogavelmente”. Hall tenta explicar o paradoxo: “Talvez todos nós sejamos, nos tempos modernos […] o que o filósofo Heidegger chamou de unheimlichkeit – literalmente, ‘não estamos em casa”.

Stuart Hall considera que as pessoas podem ser “forçadas”, impelidas a migrarem, “Mas cada disseminação carrega consigo a promessa do retorno redentor” (Hall 28). Uma das implicações da diáspora, além da hibridização cultural efetuada através de zonas de contato, está no desejo de querer regressar ao “ponto zero”, seja por um processo consciente ou inconsciente. A descendente de libaneses Flora Thomé parece refletir sobre tais implicações ao reconhecer a transitoriedade da vida e a busca pela compreensão dos processos de deslocamento a partir de seu locus de enunciação: “Sobre a terra todos nós somos turistas. […] A vida é uma grande viagem… precisamos apenas ocupar nossos lugares”. Prossegue, na mesma crônica de 1999, intitulada “Viajar… e viajar”:

 

Viajar nem sempre significa correr mundo afora. Significa também percorrer, caminhar e conhecer estradas interiores. Penetrar dentro de nós e tentar conhecer-nos um pouco, para melhor conhecermos o próximo. Isto não é, em absoluto, jornada fácil ou linear; é adequar a imaginação à realidade sem muita fantasia ou ilusões. É missão às vezes espinhosa, que requer atenção, vontade e muita disposição, pois a todo instante, curvas e labirintos nos desafiam provocando idas e vindas, erros e acertos (Thomé 1999 s/p).

 

Idas e vindas, erros e acertos que a levam à extrema autocrítica e sinceridade poética, a ponto de admitir – ao falar de Três Lagoas na abertura de seu livro de haicais Nas águas do tempo – a intencionalidade de um “(…) olhar sem fronteiras” que, “(…) fértil, se multiplica a cada instante…” (Thomé, 2002 s/p).

Flora Thomé soube fazer de sua poesia uma constante busca pelos espaços da memória, não apenas de lembranças relacionadas a Três Lagoas, seu locus de enunciação, mas, sobretudo dos deslocamentos territoriais vivenciados por seus ascendentes, ressignificados de acordo com aquilo que Stuart Hall classificaria como “[…] uma relação ‘pós-moderna’ ou diaspórica com a identidade” (Hall 416), pois, para além do “estrangeiro” que aparenta ter uma “alma diaspórica” e um olhar que transcende fronteiras, impõe-se uma voz que vive a sensação onírica da passagem por diversas terras, do constante deslocamento (em direção a um “terceiro lugar”), a imprimir a marca da memória, da diáspora e da compreensão da necessidade de interrogar o passado para conhecer, enfim, sedutoras “estradas interiores”.

 

Referências bibliográficas

 

AGUIAR, Flávio; VASCONCELOS, Sandra Guardini. O conceito de transculturação na obra de Ángel Rama. In: ABDALA JUNIOR, Benjamim (Org.). Margens da cultura: mestiçagem, hibridismo & outras misturas. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 87-98.

BHABHA, Homi, K. O local da cultura. Tradução de Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis e Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998.

CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o próximo milênio. Tradução de Ivo Cardoso. São Paulo: Companhia da Letras, 1990.

COSER, Stelamaris. Híbrido, hibridismo e hibridação. In: FIGUEIREDO, Eurídice (Org.). Conceitos de Literatura e Cultura. 2 ed. Juiz de Fora: UFJF; Niterói: UFF, 2012, p. 163-188.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Tradução de Beatriz Sidou. São Paulo: Centauro, 2006.

HALL, Stuart. Da Diáspora: identidade e mediações culturais. Org. Liv Sovik; Tradução de Adelaide La Guardia Resende… et all. Belo Horizonte: Editora UFMG; Brasília: Representação da UNESCO no Brasil, 2003.

HUYSSEN, Andreas. Literatura e cultura no contexto global. In: MARQUES, Reinaldo; VILELA, Lúcia Helena (Orgs.). Valores: arte, mercado, política. Belo Horizonte: Ed. UFMG/ ABRALIC, 2002, p. 15-35.

NEOGAMA, BBH. NEOGAMA/BBH cria campanha de reposicionamento para TIM. 09/03/2009. Mente sem fronteiras-Campanha publicitária. 2009. Disponível em: http://neogamabbh.com.br/pt#/news/stories/208. Acesso em 13 nov. 2011.

PRATT, Mary Louise. Os olhos do império: relatos de viagem e transculturação. Bauru-SP: EDUSC, 1999.

PROUST, Marcel. No caminho de Swann. Tradução: Mario Quintana. Porto Alegre: Editora Globo, 1948.

ROSA, Maria da Glória Sá. Memória da cultura e da educação em Mato Grosso do Sul: histórias de vida. Campo Grande: UFMS, 1990.

SANTIAGO, Silviano. O entre-lugar do discurso latino-americano. In: Uma literatura nos trópicos: ensaios sobre dependência cultural. 2 ed. São Paulo: Perspectiva, 2000, p. 9-26.

THOMÉ, Flora. Retratos. Três Lagoas: Fotolitos e Arte Final, 1993.

THOMÉ. Flora. Viajar… e viajar. (Crônica). In: Jornal do Povo. Outubro de 1999.

THOMÉ, Flora. Nas águas do tempo. Araçatuba-SP, Gráfica araçatubense LTDA. 2002.

THOMÉ, Flora. Tenho esperança nesta cidade (Poema). [S.l], [S.n]. Outubro de 2008.

THOMÉ, Flora. Quem somos nós? In: Jornal Do Povo De Três Lagoas. Disponível em <http://www.jptl.com.br/?pag=ver_colunistas&id=8 > Acesso em 08 abr. 2009.

TRUZZI, Osvaldo, M.S. Sírios e libaneses e seus descendentes na sociedade paulista. In: Fazer a América. Boris Fausto (org.). 1999. 2ª Ed: São Paulo. EDUSP. Disponível em:

<http://books.google.com.br/books?id=sFEuUUyJrSEC&printsec=frontcover&dq=fazer+a+america+a+imigra%C3%A7%C3%A3o+em+massa&hl=pt>. Acesso em: 03 dez. 2011.

 

[1] Mantivemos a transcrição do poema em sua disposição original, diferentemente da maneira geralmente adotada (versos entre barras), com a finalidade de acentuar a peculiaridade da forma do poema, em que ressaltam aspectos relacionados à técnica de composição e disposição gráfica típicas da poesia concreta.

[2] A obra Retratos (1993) não é paginada, por isso, quando nos referirmos aos poemas dessa obra, utilizaremos o número que a autora atribuiu a cada um deles. Nas demais obras de Thomé, geralmente não paginadas também, optamos pelo uso da expressão “s/p” para indicar que o poema em questão não possui identificação de página.

[3] Madeleine: Ver em PROUST, Marcel, No caminho de Swann, 1ª parte do roman-fleuve Em busca do tempo perdido, o famoso “episódio da madeleine”, no qual o narrador Marcel, já adulto, após molhar, em um dia de inverno, o bolinho conhecido como “madeleine” em uma infusão de chá e experimentá-lo, involuntariamente se recorda das férias passadas, durante sua infância, no interior da França (Combray), em visitas frequentes à casa de sua tia Leonie, onde experimentara o bolo pela primeira vez: “E de súbito a lembrança me apareceu. Aquele gosto era o do pedaço de madalena que nos domingos de manhã em Combray (pois nos domingos eu não saía antes da hora da missa) minha tia Leôncia me oferecia, depois de o ter mergulhado no seu chá da Índia ou de tília, quando ia cumprimentá-la em seu quarto. (…) tudo isso que toma forma e solidez, saiu, cidade e jardim, da minha taça de chá” (PROUST 1948, 47).

 

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