A las puertas del cielo de Jacinto Benavente: um diálogo filosófico-teológico em cena

Rodrigo Conçole Lage

UNIFSJ/UNISUL

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Resumo

O objetivo deste artigo é apresentar um estudo da peça A las puertas del cielo, de Jacinto Benavente. Para isso, dividimos nosso trabalho em quatro parte. Na primeira, tratamos do gênero diálogo, discutindo sua origem, características e o caráter teatral das obras de Platão. Na segunda, examinamos alguns elementos filosóficos, da obra de Platão, presentes na peça. Na terceira, analisamos de que forma o método socrático foi utilizado para estruturar a peça. Por fim, abordamos o modo como o autor utiliza a teologia cristã e a doutrina espírita, comicamente, para a construção de uma crítica ao cristianismo.

Palavras-chave

Jacinto Benavente, Diálogos platônicos, Platonismo, Cristianismo, Espiritismo.

Abstract

The objective of this article is to present a study of the play A las puertas del cielo by Jacinto Benavente. For this purpose, we divide our work into three parts. In the first, We take of the dialogue genre, discussing their origin, characteristics and the theatrical character of Plato’s works. In the second, examining some philosophical elements, of the work of Plato, present at the play. In the third, we analyze how the Socratic method was used to structuring the play. Finally, we approach such as the author uses the Christian theology and the Spiritist Doctrine, comically, for the construction of a critique of the Christianity.

Keywords

Jacinto Benavente. Platonic dialogue. Platonism. Christianism. Spiritism.

Introdução

A las puertas del cielo, de 1927, é uma das peças do dramaturgo espanhol Jacinto Benavente, prêmio Nobel de Literatura de 1922. Mesmo sendo um dos mais importantes dramaturgos espanhóis do século XX, a valorização de sua produção tem ocorrido de forma muito lenta. Segundo José Luis Ocasar Ariza (56): “O papel que Benavente desempenhou no desenvolvimento de nosso teatro vai sendo reconhecido pouco a pouco, superando uma crítica negativa que, baseando-se nos inegáveis defeitos das obras benaventianas, negou também seus aspectos inovadores”. Ao mesmo tempo, ele foi um autor do seu tempo. Sobre a dramaturgia espanhola do período em que a obra foi encenada, afirma John Gassner que:

O teatro espanhol entre 1890 e 1935 se contentou em extrair bom senso, moderação e ambientes realistas do realismo europeu, e em adotar uma atitude moderadamente liberal no que tange à moralidade. A realidade e o romantismo sempre estiveram em luta na vida e nas artes da Espanha. O moderno drama espanhol simplesmente efetuou um compromisso entre as duas forças. Em sua melhor forma, o resultado foi uma atraente espécie de drama, agradavelmente sentimental quando escrito pelos irmãos Quinteros e por Martinez Sierra, inteligente e sutil quando saído da pena de Benavente, ganhador do Nobel (88).

O que não quer dizer que todas as suas obras se enquadram nesse critério. No que diz respeito a peça aqui estudada, ela foi publicada no volume trigésimo segundo do Teatro, juntamente com La mariposa que voló sobre el mar e El hijo de Polichinela. A las puertas del cielo narra a chegada de uma boa alma às portas do paraíso e seu encontro com São Pedro, seu guardião. Eles dialogam, pois o santo precisa descobrir se ela está ou não apta para entrar no paraíso. Apesar da didascália se referir a uma alma, sabemos que é a de um homem porque ela utiliza palavras do gênero masculino para se referir a si mesmo. Por exemplo, quando diz “¿Quieres volverme loco?” (Benavente 230) utiliza a palavra “loco” e não “loca”. Assim, essa é uma das peças nas quais não temos a participação de um personagem do sexo feminino, o que não é muito comum no teatro de Benavente[i].

Por outro lado, se observarmos o conjunto de sua produção veremos que uma de suas características é o fato de que encontramos uma grande diversidade de gêneros, principalmente nas peças curtas. Dentre eles temos, por exemplo: ““esboço de comédia”, “monólogo”, “sainete”, “comédia em um ato”, “anedota[ii] em ação”, “diálogo”, “conto de fadas”, “cenas da vida moderna”, “quadro de história”” (Vega 17, tradução nossa). E temos também a revalorização de antigos gêneros “como a pantomima e o circo” (Vega 35, tradução nossa). Consequentemente, estudar suas características e o modo como estes gêneros foram trabalhados é de fundamental importância para uma melhor compreensão de seu teatro.

Tal fato nos levou a estudar a peça A las puertas del cielo, classificada por ele como um diálogo. Diante da diversidade encontrada na sua dramaturgia, não é de se surpreender que ele também tenha escrito um diálogo. Isso se deve, como veremos na próxima seção, ao caráter teatral presente neste gênero textual, tal como vemos nos diálogos de Platão. Nosso objetivo, portanto, é abordar essa questão. Para isso, dividimos nosso artigo em quatro partes.

Na primeira, examinamos o gênero diálogo e suas principais características. Na segunda, analisamos a peça com o objetivo de identificar os elementos platônicos utilizados pelo dramaturgo na sua construção. Na terceira, examinamos como esses elementos foram tratados de forma paródica. Paródia, no sentido de “uma imitação cómica de um outro texto ou obra artística que prima pela inversão de sentido e pela transgressão autorizada de normas e convenções sociais” (Borges 1101). Por fim, na última parte, analisamos a peça verificando como esses elementos foram combinados com alguns princípios da teologia cristã e do espiritismo, com um toque de humor, mais especificamente da paródia, para a construção de uma crítica ao cristianismo.

1- O gênero do diálogo filosófico e seu caráter teatral

O diálogo foi um dos muitos gêneros literários surgido na antiga Grécia e, ao longo da história, exerceu grande influência na literatura ocidental. Sua origem é controversa e as informações existentes sobre a questão são escassas e contraditórias. Diôgenes Laêrtios em Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres diz:

Dizem que o primeiro escritor de diálogos foi Zênon de Elea, mas Aristóteles afirma no livro primeiro de sua obra Dos Poetas, de acordo com as Memórias de Favorinos, que foi Alexâmenos de Stira ou de Téos. Em minha opinião e de pleno direito o verdadeiro inventor do diálogo é Platão, que pelo domínio do estilo pode reivindicar para si mesmo o primado tanto da beleza como da própria invenção (Laêrtios 96).

Como nenhum diálogo anterior aos de Platão chegou até nos, não temos como saber até que ponto essas informações estão corretas. Além disso, caso sejam verdade, não podemos dizer em que medida utilizou os diálogos anteriores como um modelo para seus próprios textos e de que forma contribuiu para o desenvolvimento do gênero. Seja como for, o certo é que, aparentemente, o gênero já existia. Mas o que é um diálogo? Diôgenes Laêrtios apresenta a seguinte definição:

Um diálogo é um discurso composto de perguntas e respostas em torno de uma questão filosófica ou política, com uma caracterização conveniente dos personagens apresentados e com uma elocução acurada. (…) São dois os tipos principais dos diálogos platônicos: um em que se apresenta a questão, e o outro em que se indaga. O primeiro se desdobra ainda em outros dois tipos: o teórico e o prático; desses o teórico se divide em físico e lógico, e o prático em ético e político. O diálogo em que se indaga também se desdobra em duas divisões principais; uma cujo objetivo é exercitar a discussão, e outra cujo objetivo é a vitória na controvérsia; ao primeiro damos a denominação de ginástico, e o distinguimos em maiêutico, usando uma imagem tirada da obstetrícia, e em outro, o tentativo. O conveniente à controvérsia chamamos de agonístico e dividimos em acusatório (o que se dirige à objeção) e demolidor (o que se dirige à refutação). (96)

Ao mesmo tempo, Laêrtios associa este gênero ao teatro quando fala a respeito das propostas de divisão dos textos platônicos: Não se ignora que os autores distinguem e classificam diferentemente os diálogos, pois alguns diálogos eles chamam de dramáticos, outros de narrativos, e outros ainda de uma mistura dos dois, porém essa distinção baseia-se mais no ponto de vista cênico que no filosófico (97).

Posteriormente, outros estudiosos da obra de Platão continuaram a salientar o caráter teatral de seus diálogos. Ainda na antiguidade Demétrio, em seu tratado Sobre o estilo, apresenta um trecho do Eudidemo dizendo: “Toda essa forma de expressar-se e de imitar seria mais conveniente a um ator, não a cartas, que são escritas” (Freitas, Sobre o Estilo de Demétrio, p. 79). No século XX, alguns pesquisadores se dedicaram igualmente ao estudo da questão e defenderam a hipótese de que eles chegaram a ser encenados. No artigo Three Hypotheses on the Performance of Plato’s Dialogues e no livro Platonic Drama and its Ancient Reception, por exemplo, Nikos G. Charalabopoulos defendeu essa hipótese.

Por sua vez, para Alexandre Costa, “o teatro ático foi uma inesgotável fonte de diálogo para Platão e ajudam a consolidar a percepção e a sensibilidade de sua obra como obra tão essencialmente dramática quanto crítica e filosófica” (8). Assim, se o teatro serviu de inspiração para o filósofo, não surpreende o fato de que Jacinto Benavente tenha seguido o caminho inverso e se apropriado do diálogo para a elaboração de uma obra. Como já foi dito na introdução, Benavente procurou enriquecer sua dramaturgia por meio da diversidade de gêneros. Com isso, em A las puertas del cielo ele escreveu um texto filosófico e crítico, mas essencialmente dramático. Essa apropriação de um gênero clássico também se deve ao fato de Benavente estar inserido na Generación del 98 (Ariza 56). Como uma das características deste grupo de escritores foi a imitação e recuperação dos clássicos é natural que também tenha adotado este princípio. 

A associação da peça aqui estudada com a obra de Platão surge, primeiramente, a partir da própria forma como ele a classificou. Mas, ela também pode ser feita tanto a partir do gênero, quanto a partir do conteúdo do texto. Se a obra não tivesse sido encenada e publicada como parte de sua produção teatral poderiam surgir dúvidas sobre o gênero ao qual pertence. Afinal, a única didascália[iii] nela presente é uma relação dos nomes dos personagens, o que poderia induzir um leitor a não considerá-la uma peça e sim um diálogo filosófico. A ausência de mais didascálias não tem maior peso, pelo fato de que é uma característica de sua dramaturgia. Em suas peças “se percebe escassa presença de anotações cênicas e de indicações tanto para a configuração do espaço cênico como para a recuperação do mundo da gestualidade que é inerente à construção dramática” (Pacheco 88).

No que diz respeito ao texto propriamente dito, procuraremos apresentar todos os elementos que estão de algum modo associados à obra de Platão. Portanto, na próxima seção, iremos investigar quais são esses elementos e como eles se apresentam na peça.

2- A las puertas del Cielo: Uma paródia dos diálogos de Platão

Jose Vila defende que “Benavente nos deixou escritas algumas obras nas quais os personagens, partindo da norma que brota de seu íntimo, se encontram e lutam entre si” (77, tradução nossa). Essa afirmação é válida para esta peça porque a alma e São Pedro, de certo modo, lutam entre si por meio do diálogo. A alma, movida pela certeza que brota de sua consciência, de não ter violado os princípio cristãos, e por acreditar naquilo que lhe foi ensinado. Por sua vez, o santo também combate movido por aquilo em que acredita e pelo papel que lhe cabe. Com isso disputam entre si para ver quem tem razão. A alma seria o que Selma define como personagem vítima (79-84) e ele seria um servo “das forças vivas do egoísmo ou interesse” (78).  Benavente pode ter sido levado a escolher o gênero diálogo por ser um dos mais adequados a esse tipo de disputa.

Partindo da definição de paródia apresentada anteriormente, defendemos a hipótese de que a A las puertas del Cielo foi construída a partir de uma versão paródica do método socrático, tal como foi exposto nos referidos diálogos. Com o objetivo de investigar essa ideia iremos examinar, primeiramente, a presença do método socrático como sendo a base sobre a qual o diálogo foi construído. Na sequencia, iremos investigar a presença de outros elementos filosóficos da obra de Platão que foram igualmente utilizados pelo dramaturgo.

Contudo, não podermos esquecer o fato de que Benavente não é um filósofo. Seu o objetivo não é construir um texto filosófico no formato de uma peça e sim uma comédia, cujo caráter cômico se deve, em parte, ao modo como se apropria de alguns princípios da filosofia. Assim como utiliza algumas doutrinas religiosas (cristianismo e, possivelmente, espiritismo) para parodiá-los. Não se deve, portanto, esperar um maior aprofundamento do assunto. Esse tom paródico do diálogo pode ser uma influência dos diálogos de Luciano de Samósata com suas sátiras da filosofia e da religião:

Em meio à variedade dessa obra e a dificuldade de classifica-la, o diálogo se torna para Luciano o gênero de sua obra literária. “Porém, enquanto o diálogo em sua forma clássica fora o gênero adequado da reflexão filosófica, com Luciano ele passou a ser um meio para apresentar os absurdos da filosofia, da retórica, da religião e da moralidade”. É assim que, no escrito Diálogo dos Mortos, em meio à comédia satírica e diálogo filosófico – mas não como considerações filosóficas – Luciano cria uma ficção com tom espirituoso, cheio de graça, onde tais artifícios, sátira e paródia, tornam reais as críticas tão vivas aos valores vigentes da sociedade grega clássica (Campos 23).

Sendo uma paródia, é compreensível que o principal elemento presente nos diálogos de Platão a ser utilizado seja o próprio método socrático. Segundo Humberto Zanardo Petrelli:

Há uma tradicional apresentação do método socrático dividido em três etapas, a saber: refutação (elenkhos), aporia (aporia), maiêutica (maieutikê). A refutação (elenkhos) da opinião (doxa) leva ao estado de aporia (aporia) em que se reconhece que nada se sabe. Esta constatação, por sua vez, é condição para se produzir ou parir o verdadeiro conhecimento através da maiêutica (266).

Além disso, como qualquer outro sistema filosófico, o platonismo adota uma série de princípios gerais e alguns deles foram utilizados por Benavente. Não sabemos até que ponto o dramaturgo conhecia sua obra e as de Luciano, nem quais diálogos podem ter-lhe servido de inspiração, e isto impede uma comparação mais objetiva com alguma obra específica. Consequentemente, nós iremos apresentar, primeiramente, os elementos do platonismo presentes na peça e depois abordarmos, de forma específica, a presença do método socrático propriamente dito. Decidimos tratar sua presença de forma separada porque o vemos como elemento estruturador do texto.

 

2.1- Alguns elementos platônicos de A las puertas del cielo

Dentre os diferentes pontos da filosofia platônica temos alguns que estão visivelmente presentes na obra, como iremos demonstrar. Consequentemente, eles precisam ser bem conhecidos para que possamos identificar o modo como foram retrabalhados pelo dramaturgo. Só assim podemos apreciar todo o humor do texto. Dentre os elementos do platonismo destacamos a presença de três deles, que estão intimamente ligados entre si: a Teoria das Ideias ou das Formas, como também é chamada; a Teoria dos dois Mundos e a presença do mito de Er, que estão intimamente associados entre si.

No que diz respeito à Teoria das Ideias, ela se apresenta quando o santo afirma que todas as coisas preexistem num arquétipo exemplar: “SÃO PEDRO O ignoravas? Não os ensinam na Terra que Deus é o autor de tudo o que foi criado? Louca vaidade! Acreditais que vossos pensamentos e vossas ações não são obra sua, como as ervas do campo e as patinhas de um inseto? Tudo está no exemplar”[iv] (225). A palavra exemplar é usada no sentido platônico de Forma, sendo o único termo filosófico citado explicitamente. Ao longo dos séculos a noção de forma foi alvo de diferentes interpretações. Mas, por entendermos que o dramaturgo se limitou a utilizar uma visão geral do assunto, sem maiores aprofundamentos, não iremos tratar da questão das múltiplas leituras de sua teoria.

De forma um tanto simplista, podemos dizer que as Ideias/Formas seriam “os modelos, eternos e únicos, de todas as coisas” (Cezario VI). Modelos que são “eternos, imutáveis, transcendentes, abstratos, absolutos e invisíveis” (Freitas 9). Esses modelos ou arquétipos (Freitas 12) são, por sua vez, imitados por algo, material ou imaterial, pelas coisas que existem no mundo físico. Nesse sentido, os papeis que os homens tem de seguir, citados na peça, são parecidos com elas. Mas não sabemos se eles existem por si mesmos (já que o próprio Jesus teve que interpretar o seu papel) ou se foram criados por Deus, que também teria criado um para seu filho.

Segundo o platonismo, essas Formas habitariam um mundo diferente, ideia que levou a criação da chamada “Teoria dos Dois Mundos”. Essa teoria “é baseada em uma divisão de mundos opostos e coexistentes: sensível e inteligível. O mundo sensível é aquele onde existem os seres particulares, enquanto o mundo das Ideias, os seres universais” (Freitas 8). Na peça, o mundo inteligível seria aquele onde estão os papeis e o mundo sensível é tal como Platão o descreve. Contudo, o filósofo não chegou a descrever plenamente todas as suas características. No diálogo Parménides, por exemplo, ele “conclui a narrativa sem responder ao principal problema do diálogo: a questão da natureza por si e em si da Forma e dos modos como ela se comunica com as coisas apresentadas na sensibilidade” (Pereira e Costa 7).

O importante é que, segundo o santo, cada indivíduo é a imitação de uma Forma que, no presente caso, seria o papel escrito por Deus. Como a vida de cada indivíduo é uma imitação deste papel até mesmo seus pensamentos e ações não são reais. Seriam imitações, mais ou menos fiéis, do que foi previamente determinado no roteiro. Podemos ver aqui uma releitura da ideia de criação do mundo sensível por uma divindade tal como foi descrita pelo filósofo. No Timeu, “a própria existência do ser sensível deve-se ao demiurgo, que é uma espécie de deus artesão. De acordo com Platão, o demiurgo criou os seres sensíveis a partir dos seres inteligíveis. Em outros termos, os seres sensíveis são cópias dos seres inteligíveis” (Freitas 9).

A maior diferença entre a filosofia de Platão e a teologia cristã, no que diz respeito a ideia de criação, é que segundo o cristianismo todas as coisas foram criadas a partir do nada. Já no platonismo, o Demiurgo[v] criou o mundo sensível modelando a matéria caótica preexistente por meio da imitação das formas. De qualquer forma, o fato é que São Pedro adota a visão platônica da criação com uma roupagem cristã. Outro ponto de ligação com o platonismo se dá quando o santo descreve a distribuição dos papeis. Apesar das muitas diferenças, sua descrição tem pontos de contato com o mito de Er.

Este mito platônico trata do caminho que a alma segue após a morte. Descreve o julgamento das almas dos que morreram e das vidas que lhes caberiam quando reencarnassem. Não pretendermos fazer um estudo detalhado do mito, que pode ser encontrado em O universal em Platão e Aristóteles, monografia de Jeferson Benício de Freitas (16-18). O importante é saber que segundo Platão as almas eram julgadas pelo bem e pelo mal que haviam praticado durante sua vida:

As decisões dos juízes, que escolhiam para onde as almas iam, dependiam das injustiças cometidas por essas almas.  Quanto mais sofrimentos causaram às pessoas, mais tempo ficariam debaixo da terra. Se as almas tivessem sido justas e piedosas, receberiam recompensas na mesma proporção inversa que as más almas iriam receber sofrimento pelas maldades (Freitas 17).

Por sua vez, na peça é dito que o julgamento é feito a partir da fidelidade a interpretação de seu papel. Segundo São Pedro: “O primeiro papel é distribuído a todos segundo sua inteligência; mas vem a vaidade e todos pretendem sair de seu papel, e isso é o que se castiga sempre com um papel pior em outra distribuição” (228). Podemos entender essa diferenciação como uma consequência do caráter paródico da obra. Mas, se temos muitas diferenças importantes entre as duas versões da teoria da reencarnação, vemos que a ideia de que, antes da alma renascer, ela recebe um papel a ser interpretado tem alguma semelhança com a de Platão. Segundo o mito de Er:

Depois que essas almas voltaram do céu ou de baixo da terra, foram para um prado e depois, para um lugar cheio de luzes, onde havia um profeta que pegou um lote de modelos de vidas e subiu num palco. Disse que iria começar o período para eles escolherem a vida que iriam ter na terra. A responsabilidade de como viverá na terra é de quem escolhe o modelo de vida. Assim, os deuses ficam isentos de culpa. Em seguida, o profeta jogou os lotes de vida para todos para escolherem a vida terrena. Havia todos os modos de vida, de animais e de seres humanos. Entre estes últimos, havia tiranias, umas duradouras, outras que terminavam na pobreza, outras em fugas. Além desses, havia modos de vida de homens ilustres, de vidas obscuras, e o mesmo acontecia para as mulheres. Os modelos de vida na terra não tinham tendência de caráter para quem os escolhem e decidiam viver na justiça ou na injustiça. Todos os modos de vida estavam misturados na riqueza e na pobreza, na doença e na saúde, e também o meio termo deles (Freitas 17).

Isso não quer dizer que, apesar da aproximação com o mito, Benavente não possa ter se inspirado em outras obras. Antes de Benavente tratar do assunto já existiam diferentes peças que apresentavam a ideia de que a vida pode ser comparada a uma peça de teatro. Nós iremos tratar desse fato na fato próxima seção. Apesar disso, por tudo o que foi dito, não se pode negar a presença de um diálogo intertextual com os textos de Platão.

 

3- Uma paródia do método socrático: São Pedro filósofo

Apesar de tratarmos na seção anterior da influência de Platão, resolvemos dedicar um capítulo em separado para a discussão sobre a presença do método socrático. Isso se deu porque entendemos que o método está relacionado à própria estrutura da peça e a construção da narrativa como um todo, o que exige um exame mais detalhado da questão. Afinal, a nosso ver, o santo irá utilizar o método socrático com a alma. Os outros elementos são complementos à história e lhe dão maior coerência. Seja como for, como o método possui diferentes etapas elas precisam ser bem conhecidos para termos uma boa compreensão do desenrolar da peça.

A primeira delas é a refutação. Como o objetivo do filósofo é levar o interlocutor a alcançar a verdade ou, pelo menos, levar o interlocutor a abandonar os erros e assim poder seguir em sua busca, a refutação (ἔλεγχος, elenchos[vi], no grego) é o primeiro passo para que isso ocorra. Ela pode ser entendida como o exame das afirmações de seus interlocutores com o objetivo de demonstrar sua ignorância. Ao fazer isso eles são levados a segunda etapa, a da aporia.  Para que isso aconteça, ele se utiliza da alegação de ignorância, a chamada ironia socrática[vii]. Ao afirmar que não sabe algo Sócrates procura levar o interlocutor ao diálogo dialético. Isso permite que ele questione a validade do saber que afirmam ter. Na peça, a refutação não tem a sofisticação presente nas obras de Platão, mas ela ocorre em diferentes momentos. Logo no início, por exemplo, ele a aplica com o objetivo de levar a alma a aporia:

SÃO PEDRO Quem?

ALMA Eu.

SÃO PEDRO Eu! Vaidade! Sempre vaidade! Eu! Como na terra! Quem és tu? Sabes quem és? Nunca o soube? Diga: ‹Deus seja louvado›, que é nosso santo e sinal, e talvez abra (221).

Mas ela também ocorre em outros momentos. Ela está presente quando o santo diz: “Que ignorante você é! Eu não sou São Pedro; sou um ator que representa o papel de São Pedro. Estamos em um cenário que representa as portas do Céu, e tu representas uma alma que chega” (224). Ele não só procura levar a alma a questionar o conhecimento que tem de si mesma, mas também o do próprio mundo em que se encontra. Para isso, utiliza uma linguagem teatral comparando o mundo a uma peça de teatro e os homens com atores, que encenam um roteiro escrito por Deus. Essa associação do mundo com uma peça teatral, como foi dito anteriormente, pode ter sido inspirado no mito de Er, mas também pode ter sido herdada da peça O grande teatro do mundo de Calderón de la Barca.

Na obra de Calderón, o “Autor” atribui os diferentes papeis a serem representados no mundo pelos outros personagens. Depois da morte, o “Autor” julga cada um deles segundo sua atuação e os envia para o lugar que merecem (Céu, Paraíso ou Purgatório) segunda a atuação deles. A peça de Benavente apresenta uma visão de mundo idêntica à dele. O que não quer dizer que não haja alguma influência da Como gostais (As You Like It), de William Shakespeare, ou da A Vida é sonho, do próprio Calderón. Elas também adotam, de alguma forma, a mesma ideia. A originalidade de Benavente está no fato dele tratar a questão por meio de um diálogo filosófico-religioso.

Nos diálogos de Platão vemos que Sócrates “não responde jamais a pergunta “O que é X?” e, interrogando sempre, desempenha o papel daquele personagem que evidencia a contradição da tese do interlocutor com suas próprias crenças” (Frecheiras 23). Essa contradição leva a segunda etapa, a aporia. O termo vem da  palavra grega aporos (ἄπορος), que tem o sentido de caminho sem saída, sem passagem. A aporia se dá, nos diálogos platônicos, “por meio do confronto das opiniões instáveis” (Silva 44). Ela ocorre quando, ao passar a duvidar do que antes julgava certo, “o interlocutor é levado a se dar conta de que não sabe aquilo que julgava saber” (Silva 44). Vemos que na peça a alma demonstra ter caído nesse estado em, pelo menos, dois momentos emblemáticos. Primeiro, quando diz:

ALMA Não é culpa minha; tu me fizeste duvidar. Eu acreditava haver vivido e haver morrido; ouvi umas vozes que me disseram: ‹Segue adiante; é possível que te abram de par em par as portas do Céu; foste o mais infeliz que pisou a terra›. Chego aqui e me dizes que nada é verdade, que estamos em um teatro, que somos dois atores, que eu trago meu papel muito mal aprendido (229).

A partir dessa fala vemos que a alma já não sabia mais o que era verdade e o que era mentira. Todas as suas certezas sobre a vida foram completamente abaladas. Por outro lado, temos aqui a única informação apresentada sobre o período em que o personagem esteve vivo: “foste o mais infeliz que pisou a Terra” (229). Isso é importante porque, do ponto de vista da teologia cristã, a salvação humana está associada ao sofrimento. Nos evangelhos, vemos que Jesus, mesmo sendo Deus, sofreu para salvar os pecadores que, ao se converterem, se tornam coparticipantes do sofrimento de Cristo. Essa ideia aparece em diferentes passagens bíblicas, com destaque para o capítulo 11 de Hebreus (Bíblia Sagrada 1535-1536).

Mas, na peça as coisas ocorrem de forma diferente. O sofrimento permite que a boa alma chegue às portas do Céu, mas não que seja salva. Benavente, de forma crítica, desqualifica o valor que a teologia cristã dá ao sofrimento. Isso, naturalmente, o leva a descontruir a ideia de salvação presente nela. O santo, parodicamente, diz que o que salva é a fé, independentemente do objeto a que ela se dirige. Essa afirmação desemboca no segundo momento de aporia, que é o momento-chave do diálogo:

SÃO PEDRO Já é tarde, porque te examinei e já sei como és, já sei que não mereces o Céu. Duvidas, temes, desconfias, me acredita, não me acredita… Aqui só se entra com uma afirmação, boa ou má; por uma fé, a fé sempre é certa, certeira pelo menos. Se eu te disser que aqui entraram muitos que não criam em Deus, só porque, nem ao chegar aqui e ver-se em sua presença, deixaram de negar que existira…

ALMA Más é possível? Queres pôr-me louco?

SÃO PEDRO Sou compassivo e quero ver se por esse meio consigo que entres no Céu, já que chegaste até suas portas (230-231).

Esse trecho é emblemático por diferentes motivos. Em primeiro lugar, ao dizer que as pessoas são salvas independentemente de acreditarem ou não em Deus, desde que essa afirmação seja feita com fé. Ele carnavaliza a ideia que o homem é salvo pela fé ao dizer que um ateu poderia ser salvo por ter mantido a fé na certeza de que Deus não existe. Isto é, por ter atuado muito bem em seu papel. Essa afirmação é uma distorção paródica das ideias de fé e predestinação tal como se apresentam em alguns segmentos do cristianismo, como o calvinismo, e só faz confundir a alma. Além disso, ela nega o princípio cristão de que a falta de fé em Deus leva a condenação eterna, outro ponto fundamental do cristianismo. Assim, esse trecho do diálogo é importante não só porque destrói todas as certezas que a alma tinha, e a lança num estado de aporia, mas também pelo modo como apresenta uma sátira do cristianismo.  

Por fim, esse estado de aporia leva a última etapa do método socrático que é a maiêutica. O termo vem do grego maieutike (μαιευτικη), e tem o sentido de parir, dar a luz. Como foi dito, na segunda parte deste artigo, Platão defende a tese de que, além do mundo sensível, existe o das Ideias e que é nele que a alma habita: “Antes de reencarnar em um corpo, a alma humana vivenciou o mundo das ideias, ao lado dos deuses, e teve a oportunidade de ver e aprender diversas coisas, mas, ao renascer em um corpo, esquece tudo que aprendeu” (Pimentel 12). Portanto, “quando uma pessoa aprende algo não ocorre um aprendizado, mas, sim, uma rememoração, por meio da reminiscência, porque a pessoa está apenas recordando algo já aprendido/vivenciado pela alma, mas esquecido” (Pimentel 12).

A reminiscência se dá por meio da utilização da maiêutica, do parto que se dá por meio do diálogo e que irá trazer a tona esse conhecimento. Na peça, vemos que o santo também adota a ideia de que existem dois mundos, sendo que o mundo inteligível é simbolizado pelo papel que todos devem representar, e que o conhecimento é adquirido ao se tomar conhecimento do que está nele: “Acreditais que vossos pensamentos e vossas ações não são obra sua, como as ervas do campo e as patinhas de um inseto? Tudo está no exemplar” (225). São Pedro deixa claro para a alma que está tentando leva-la à um estado de conhecimento, por meio de perguntas. Ensiná-la é a única forma de levá-la a salvação: “Sou compassivo e quero ver se por esse meio consigo que entres no Céu, já que chegaste até suas portas” (231).

Contudo, e nisto está o humor da peça, se em Platão a maiêutica leva ao conhecimento, na peça ela tem um caráter negativo. A aporia leva a alma a dúvida e a incerteza, até mesmo em relação ao que julgava saber, e com isso chegou à conclusão de que Deus é incompreensível. Mas, o conhecimento adquirido que deveria ser uma boa coisa levou-a a ruína. Ao não entender seu modo de agir ela se condenou:

ALMA Senhor, senhor! És incompreensível.

SÃO PEDRO Perdeste o Céu, pronunciaste a palavra de perdição.

ALMA O que eu disse? Que palavra é essa?

SÃO PEDRO Incompreensível. A que fecha as portas do Céu para sempre (231).

4- Uma visão cômica da religião

 Sendo um diálogo entre São Pedro e uma boa alma, para verificar se ela está apta a entrar no paraíso, o humor da peça se constrói a partir do modo como o alguns princípios do cristianismo são subvertidos. O modo como constrói um novo olhar sobre esse referencial cristão é que vai dar o tom humorístico da peça. Nesse sentido, ele tem início na própria figura de São Pedro. No evangelho de Mateus 16:19 é relatado que Jesus diz a Pedro: “Eu te darei as chaves do Reino dos céus: tudo o que ligares na terra será ligado nos céus, e tudo o que desligares na terra será desligado nos céus” (Bíblia Sagrada 1304). Esse versículo deu origem à tradição católica de que ele é o porteiro (ou chaveiro) do Céu.

O São Pedro de Benavente se revela uma pessoa autoritária e extremamente rigorosa nos seus julgamentos, como podemos ver no início do diálogo quando repreende a alma por dizer “eu” (221). Esse lado crítico também se manifesta, ao longo do diálogo, no modo como vê erros em tudo o que a alma diz, visivelmente tentando levá-la a contradição. Esses e outros defeitos tais como o caráter colérico e a vaidade se manifestam quando, por exemplo, ele repreende a alma por dizer que os dois eram maus comediantes: “Mau comediante é você; eu estou muito em meu papel. Há muitos anos representando-o com universal aplauso” (228). São esses traços que dão um toque de humor à peça ao retirarem sua aura de santidade; característica que deveria fazer parte da personalidade de um santo.

Consequentemente, podemos dizer que o santo é utilizado como um instrumento para se criticar a hipocrisia manifestada no comportamento e no modo de pensar e agir de alguns cristãos ou, talvez de forma mais específica, de alguns religiosos, e que vai contra o próprio ensino da Igreja. A utilização de figuras religiosas na literatura como um instrumento de denúncia da hipocrisia religiosa é comum. Podemos citar como exemplos O crime do padre Amaro e o A relíquia de Eça de Queiros. Além disso, essa crítica está igualmente presente também no modo formalista com que o santo trata a religião:

SÃO PEDRO: […] Diga: ‹Deus seja louvado›, que é nosso santo e sinal , e talvez abra.

ALMA Deus seja louvado.

SÃO PEDRO Pela eternidade. Chega. Vens do mundo? Não deve ter sido muito mau porque pôde chegar até aqui.

ALMA Pela misericórdia de Deus, claro está; não há o menor mérito de minha parte.

SÃO PEDRO Tampouco é isso. Humildade vaidosa, pior que a vaidade! Se não houve mérito de tua parte, não tens por que merecer nada. Diga: ‹Pela misericórdia de Deus me foi permitido fazer algo bom› (221-222).

Por esse trecho podemos ver que há uma desvalorização da ideia de santidade. Ao mesmo tempo, ao longo da peça vemos que a fé e o amor, dois elementos fundamentais da doutrina cristã, também são desvalorizados. Essa contradição reforça o humor do texto. A bondade, por exemplo, é ridicularizada: “Uns se creem demasiado preparados; outros, os mais infelizes, creem que não são maus, e por parecerem bons, fazem e dizem as mesmas bobagens que os bons” (226). Assim, os bons atos das pessoas boas e os atos aparentemente bons das más são considerados bobagens. E a fé em Deus, biblicamente essencial para se ser salvo, é considerada algo sem valor: “Se eu te disser que aqui entraram muitos que não criam em Deus, só porque, nem ao chegar aqui e ver-se em sua presença, deixaram de negar que existira…” (230).

Benavente não é o primeiro autor a subverter princípios cristãos com propósitos cômicos. Essa inversão pode ser interpretada à luz do que Bakhtin vai chamar de carnavalização, isto é, da existência de um mundo às avessas que surge dentro da cultura popular como uma parodização da cultura oficial:

[…] existe a cultura oficial e a popular, que tem como marcas o carnaval e o riso. E, o que é mais importante, no carnaval vamos encontrar uma subversão da realidade, isto é, “uma vida desviada da sua ordem habitual, em certo sentido uma “vida às avessas”, um “mundo invertido”” (1997 122). Essa inversão da realidade produz uma contradição, entre o personagem e a situação que ele está vivenciando, que gera o efeito cômico (Lage 09).

Ao mesmo tempo, temos uma visão de Deus e de Jesus que vai contra o ensino tradicional do cristianismo. Segundo São Pedro: “Para isso andei pelo mundo com o próprio autor quando se lhe ocorreu baixar à Terra a representar também seu papel” (228-229). O Jesus da peça não é um ser que age movido pelo amor à humanidade, mas alguém obrigado a agir segundo seu papel. Além disso, do ponto de vista bíblico, uma das características da divindade é o fato de que os homens não podem compreendê-lo. Temos um exemplo dessa afirmação em Romanos 11:33-35 (Bíblia Sagrada 1461):

Ó abismo de riqueza, da sabedoria e de ciência em Deus! Quão impenetráveis são os seus juízos e inexploráveis os seus caminhos! Quem pode compreender o pensamento do Senhor? Quem jamais foi o seu conselheiro? Quem lhe deu primeiro, para que lhe seja retribuído?

Se a Bíblia apresenta Deus como sendo um ser incompreensível para o homem, a peça irónicamente subverte essa ideia e faz com que de não o compreendermos seja motivo de condenação eterna, como foi citado anteriormente. Por tudo o que foi dito, podemos dizer que um de seus temas é a crítica ao cristianismo realizada por meio da paródia de algumas de suas doutrinas. Como Luciano já na antiguidade fazia o mesmo em seus diálogos ele pode ter servido de inspiração para o dramaturgo. Contudo, esse lado cômico da obra não diz respeito somente ao cristianismo. Ele também adotou outro princípio religioso que, polemicamente, o Espiritismo associa a teologia cristã, a doutrina da reencarnação. Associação essa que tem sido combatida pelo cristianismo tradicional.

Seria importante verificar se o espiritismo e suas doutrinas (ou, pelo menos, a ideia de reencarnação) aparecem em outras peças, mas isso fugiria aos limites de nosso trabalho. De qualquer modo, coerentemente com o que ocorre no restante da obra, vemos que o que determina o tipo de vida que a alma reencarnada terá é a fidelidade ao papel anteriormente representado; pelo modo como viveu as diferentes vidas passadas. Se ela foi fiel aos diferentes papeis representados, vai progredindo até chegar ao Céu. Mas, se um deles for mal representado, recebe um papel pior do que o recebido anteriormente. Nesse sentido, a ideia de que existe um Inferno, aparentemente, fica descartada:

ALMA Em que se fundamenta essa desigualdade ao repartir os papeis?

SÃO PEDRO No modo de haver representado o papel anterior.

ALMA Ah! Mas é que todos havíamos representado antes outro papel?

SÃO PEDRO Muitos papeis. A obra definitiva não se representou ainda. Isso que vocês chamam a vida, vossa vida, não são mais do que um ensaio para a verdadeira vida.

ALMA Mas se a desigualdade começa no primeiro ensaio e no primeiro papel…

SÃO PEDRO O primeiro papel é distribuído a todos segundo sua inteligência; mas vem a vaidade e todos pretendem sair de seu papel, e isso é o que se castiga sempre com um papel pior em outra distribuição (227-228).

Vemos aqui uma visão caricaturada da reencarnação. Isso, partindo do princípio de que não está se apropriando da doutrina da metempsicose, que é diferente da primeira: “A primeira diz-se em grego (enzomátosis), ‘enzomatse’, é a reassunção pela alma de um novo corpo humano; a segunda (metempsykhosis), ‘metempsicose’, é a transmigração da alma para um outro corpo, humano, animal ou até mesmo vegetal” (Brandão 160). Contudo, isso não impede que Benavente tenha se inspirado na segunda. Fedro, A República e Fédon são algumas obras nas quais o filósofo aborda a questão da metempsicose e outras questões relativas à alma. O importante é que, na peça, São Pedro aparentemente rejeita a ideia de Inferno como lugar de punição para os pecadores e adota a ideia de que a pessoa passa por um ciclo de morte e renascimento até alcançar a salvação.

Em diferentes passagens do Novo Testamento, é dito que as almas dos mortos serão julgadas por Deus. Mais tarde, toda a humanidade será ressuscitada e passará por um julgamento definitivo, que irá definir o destino final de cada um por toda a eternidade. Ele é citado, por exemplo, em Apocalipse 20:12 e Hebreus 9:27. Devido ao tema da peça, a ideia de um julgamento final dos mortos não poderia deixar de estar presente. As pessoas que forem aprovadas irão para o paraíso e as reprovadas serão condenadas a danação eterna. O dramaturgo utilizou esse principio teológico de forma carnavalizada. Na peça, o santo afirma que se o script e a vida da pessoa forem idênticos ela é salva, mas se houver alguma divergência ela será condenada. É uma leitura paródica e extremamente original das ideias de predestinação e Juízo Final.

Sobre essa questão diz São Pedro: “Tudo o que dizes e tudo o que disseste em tua vida, e pobre de ti se quando confrontemos os discos do gramofone celestial encontramos o menor erro no papel que te foi distribuído!” (224). Segundo a Bíblia, em Mateus 12:36 (Bíblia Sagrada 1298), por exemplo, nós teremos que prestar contas de todos os nossos atos e pensamento, mas, em nenhum momento é explicado como cada um deles foi registrado para esse futuro julgamento. O dramaturgo se utiliza dessa omissão e, com um toque de humor, essa lacuna foi suprimida com a ideia de que tudo o que falamos está sendo gravado em discos de vinil e que no dia do julgamento final nossas falas serão confrontadas com o script do papel que deveríamos representar.

Por fim, destacamos o trecho em que São Pedro afirma: “Não os ensinam na Terra que Deus é o autor de tudo o que foi criado? Louca vaidade! Acreditais que vossos pensamentos e vossas ações não são obra sua, como as ervas do campo e as patinhas de um inseto?” (Benavente 225). Aqui temos novamente uma visão cômica da ideia de predestinação, não no sentido salvífico, mas no sentido de que “Deus determina que diferentes pessoas tenham diferentes destinos segundo Seus propósitos santos e sábios” (Basinger, David, e Randall Basinger 11). Ou seja, ele reafirma a noção de que tudo o que acontece na vida de uma pessoa foi previamente determinado por Deus, rejeitando a ideia de liberdade humana, isto é, do livre-arbítrio.

Conclusão

Por tudo o que foi dito, vemos que Jacinto Benavente se apropriou da estrutura do diálogo filosófico platônico, possivelmente combinados com o ideal cômico dos de Luciano, e de alguns princípios de sua filosofia, para produzir uma comédia religiosa. A las puertas del cielo é, portanto, uma paródia filosófico-religiosa construída a partir da combinação de elementos platônicos e da teologia cristã. Seria importante o estudo do restante de sua produção para identificar se temos a presença de elementos filosóficos em outras obras. Ao mesmo tempo, seria preciso um estudo do modo como tratou o cristianismo no conjunto de sua produção. Esperamos que nosso trabalho seja de utilidade para novos estudos que contribuam para um melhor conhecimento de seu trabalho, assim como preencher as lacunas de nossa pesquisa.

Notas

[i] Temos, por exemplo, o monólogo Por qué se quitó Juan de la bebida como outra peça na qual não temos a participação feminina.

[ii] Chascarrillo, segundo o Dicionário da RAE, é uma anedota ligeira e picante.

[iii] As didascálias (do grego didaskalia (διδασκαλία), instrução, ensinamento), ou rubricas, são as indicações cênicas que contém informações e instruções sobre os personagens, cenários e a atuação (gestos, movimentos e falas), entre outras coisas, ou seja, tudo o que está presente na peça e que não é dito pelos personagens.

[iv] Todas as traduções da peça são de nossa autoria.

[v] Na Bíblia, no Gênesis, Deus cria o homem fazendo-o sua imagem e semelhança. Para o santo, por outro lado, a criação do homem pode ser vista como uma releitura da ideia do filósofo. Deus cria os homens a partir dos diferentes papeis que serão distribuídos a cada um.

[vi] Deve-se destacar o fato de que nos diálogos Sócrates não nomeia o método de investigação utilizado por ele. Segundo Kátia Regina de Oliveira Frecheiras (2010, p. 21):

Ἓλεγχος que é cognato do verbo ἐλεγχειν tem por significado: prova, argumento, exame crítico, censura, não é empregado para descrever, nem para denominar a ação investigativa praticada. Somente no período moderno é que o vocábulo elenchos tornar-se-á um termo na linguagem filosófica ocidental.

[vii] Na peça Benavente, vemos que o santo utiliza a ironia, mas não a “socrática”, apesar da utilização do referido método. Em nenhum momento ele simula ignorância, pelo contrário, por ser detentor do conhecimento é que pode julgar e ensinar a alma. Com isso, pode-se discutir a possibilidade de que São Pedro tenha sido inspirado na figura do sofista e não na do filósofo; tal como fez Aristófanes com Sócrates, em As nuvens. Osvaldo Cunha, examinando a obra de Filóstrato sobre os sofistas, diz que para esse autor a sofistica e a filosofia se confundem. Mas que, “enquanto os filósofos avançavam pequenos passos em suas pesquisas, o “antigo sofista” era mais categórico e afirmava “eu sei”” (Neto 30). Dentro desse ponto de vista, o santo agiria como um sofista.

Obras citadas

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