Jacinto Benavente e a pantomina: As inovações presentes em La blancura de Pierrot

Rodrigo Conçole Lage
Universidade do Sul de Santa Catarina
rodrigo.lage@yahoo.com.br

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Resumo

O objetivo desse artigo é analisar a pantomima La blancura de Pierrot, do dramaturgo espanhol Jacinto Benavente. Com essa finalidade dividimos nosso trabalho em três partes. Na primeira, apresentamos uma síntese da histór0ia da origem e da evolução da pantomima. Na sequência, estudamos os aspectos formais da peça, as diferenças existentes em relação a outras obras do gênero e sua possível relação com o cinema mudo. Por fim, analisamos a peça e o modo como o autor se apropriou dos personagens-tipo da Commedia dell’arte para escrevê-la. Em anexo, apresentamos o texto original acampanhado de uma tradução literal para o português.

Palavras-Chave

Jacinto Benavente, Pantomima, Mimo, Teatro Espanhol.

 

Abstract

The objective of this work was to analyze the pantomime La blancura de Pierrot by Spanish playwright Jacinto Benavente. For this purpose, we have divided this paper in three parts. In the first, we present a synthesis of the history of the origin and evolution of pantomime. Following, we study the formal aspects of the play, the differences existing in relation to other works of the genre and its possible relation with the silent film. Finally, we analyze the play and the way in which the author appropriated the characters types of Commedia dell’arte to write it. In the annex, we present the original text accompanied by a literal translation into Portuguese.

Keywords

Jacinto Benavente, Pantomime, Mime, Spanish theater.

 

Introdução

Jacinto Benavente y Martínez foi um dos mais importantes dramaturgos espanhóis da primeira metade do século XX. Contudo, com o passar dos anos sua obra foi relegada ao segundo plano. Só recentemente ela começou a ser, paulatinamente, revalorizada: “O papel que Benavente desempenhou no desenvolvimento de nosso teatro vai sendo reconhecido pouco a pouco, superando uma crítica negativa que, baseando-se nos inegáveis defeitos das obras benaventianas, negou também seus aspectos inovadores” (Ariza 56). Nesse sentido ele, “Viajou por toda Europa interessado pela renovação teatral para, posteriormente, conseguir o mesmo na Espanha do século XX” (Hernández 7). Assim, sua produção deve ser vista como um projeto que transcende o mero interesse sentimental pelo teatro.

Nesse projeto de renovação teatral destaca-se como marco inicial a obra Teatro fantástico, cuja primeira edição é de 1892. É uma coletânea de peças “composta de quatro obras: Amor de artista, Los favoritos, El encanto de una hora e Cuento de primavera” (Hernández 31). Curiosamente, por seu caráter inovador, ela não despertou maiores interesses quando foi lançada. A segunda edição, de 1905, foi bastante modificada, pois se “aumentam as obras para oito, eliminando Los favoritos, ficando da seguinte maneira: Comedia italiana, El criado de don Juan, La senda del amor, La blancura de Pierrot, Modernismo, Amor de artista, El encanto de una hora e Cuento de primavera” (Hernández 33). Por sua vez, esta nova edição teve grande repercussão e foi, nas palavras de Vega (30), “o manifesto fundacional do Modernismo (tanto podes dizer Simbolismo) hispano”.

Portanto, ela se encaixa dentro do projeto simbolista de renovação literária que surgiu na França e que vai opor-se ao realismo, que vigorava até então. Nesse sentido, Benavente está situado, segundo Llorens (243, tradução nossa), “no denominado teatro do sonho, em um tempo no qual se iam gestando novos modelos dramáticos frente ao teatro do realismo, com a subsequente resistência explícita de alguns à mudança”. Projeto que vai levar a recuperação de antigos gêneros literários como a pantomima e a Commedia dell’arte. O que vai ter grande impacto em suas peças curtas, que abarcam “uma rica variedade de registros” (Veja 20).

Dentre estas peças escolhemos como objeto de estudo a La blancura de Pierrot. Ela foi escolhida porque, “Benavente sentia uma profunda admiração pela pantomima e o mundo do circo e considerava a primeira arte como um espetáculo cômico e cheio de terror e mistério” (Hernández 18). Curiosamente, apesar de ter escrito mais de cento e setenta peças, ele escreveu somente uma pantomima. O que é algo digno de atenção, até porque escreveu várias peças para outros gêneros como, por exemplo, o monólogo. Assim, era de se esperar que tivéssemos várias pantomimas, mas não é o que acontece. Portanto, sendo a única do gênero ela se torna, de certa forma, uma obra importante para termos uma ideia do modo como o idealizou.

Consequentemente, com o objetivo de estudá-la, dividimos nosso trabalho em duas partes. Na primeira, apresentamos uma breve história da pantomima. Nosso objetivo é apresentar uma síntese do processo de evolução do gênero a partir de diferentes trabalhos sobre o assunto, de modo a identificar como ele foi evoluindo até desaparecer e ser, posteriormente, resgatado em diferentes períodos da história. Na segunda, apresentamos uma análise da obra com a finalidade de identificar suas características, o modo como se apropria de alguns elementos da Commedia dell’arte, como se diferencia de outras obras surgidas nos anos anteriores, as relações com o cinema mudo e as inovações introduzidas por Benavente. Em anexo, incluímos uma tradução literal do texto, para os que não dominam o espanhol,  acompanhada do original.

1- Origem e desenvolvimento da pantomima

Do ponto de vista etimológico a palavra pantomima vem do grego παντωμιμος (pantomimos), que tem o sentido de imitador de tudo. Segundo Salvat (62), o termo foi criado quando Livio Andrónico, ao representar um texto de sua autoria, perdeu a voz e pediu permissão para um escravo recitar o texto enquanto ele salientava com gestos as palavras da ação. Apesar de encontrarmos indícios de que o gênero tenha existido em outras sociedades como, por exemplo, a egípcia e hindu, a pantomima, tal como a conhecemos hoje, tem sua origem entre os gregos. Alguns consideram mimo e pantomima como termos equivalentes, outros a veem a pantomima como um subgênero do mimo, que seria “uma forma dramática de caráter popular que surge na Antiguidade Grega, que costuma ter caráter realista e, fundamentalmente, satírico. […] Possui formas literárias que apareceram por volta do séc. V a.C. em Siracusa com Sófron e Epicarmo” (Salvat 58).

Já a pantomima propriamente dita, se pensarmos numa apresentação centrada no gestual, entre os gregos, segundo Camargo (2), “era dançada e estava presente dentro das apresentações da comédia, da tragédia e do mimo gregos”. Ou seja, ela era vista como parte do mimo, “pois o mimo grego mimava, mas também falava” (Camargo 2). Lembrando que falar em pantomima entre os gregos como um gênero separado do mimo seria anacrônico porque o próprio termo é uma invenção romana. Assim, podemos dizer que ela é algo que existente dentro dos mimos, mas que se torna um subgênero a partir do processo de transformação e simplificação que eles vão sofrendo entre os romanos. Até porque a própria palavra mimo, entre os romanos, é um termo muito genérico, sendo usado “para referir-se a todo tipo de entretenimento oferecido no local teatral, formas sérias ou cômicas, mas, usualmente tratando dos aspectos da vida cotidiana de um ponto de vista satírico ou cômico” (Camargo 2).

No Império Romano o gênero terá grande repercussão e irá se desenvolver por outros caminhos. O primeiro tipo de mimo que surgiu no império Romano, a fabula saltica, era semelhante ao grego. Ou seja, era igualmente uma apresentação de dança. Normalmente, eram apresentadas por “um ator-dançarino e, às vezes, um ator-assistente, com tramas tiradas usualmente da mitologia ou da própria História” (Camargo 2). O pantomimo escrevia um tipo de libreto que continha o texto a ser cantado pelo coro. Diferentemente do que vemos hoje, o “dançarino silencioso era acompanhada por um coro que cantava um texto explicatório e uma orquestra composta de flautas, flautas de pã e címbalos” (Camargo 2). Segundo Daniel González Gómez (1), no final “do século I a.C., os espetáculos de danças mímicas foram eclipsadas em Roma pela aparição da pantomima”. A principal diferença entre os dois foi o abandono da dança, pois, em outros pontos, são bem parecidos:

A diferença do mimo, a pantomima (etimologicamente, imitação de tudo) representava, só com gestos, toda ação, tanto trágica como cômica. Acompanhado de um coro que recitava ou cantava o texto e de uma orquestra, o pantomimo, vestido com uma longa túnica e coberto o rosto por uma máscara, interpretava as peças trágicas ou cómicas mediante gestos e o movimento de suas mãos (Gómez 1).

Contudo, com o passar dos anos, o gênero foi se degradando até que praticamente desapareceu. Segundo Salvat (1995, p. 62), ele começou a entrar em declínio somente a partir de 546 d.C., após o saque de Roma promovido pelo rei godo Totila, durante a chamada Guerra Gótica. O cristianismo também vai exercer um papel importante no seu desaparecimento ao combater aos espetáculos teatrais. Um exemplo desse fato ocorreu em 589 d.C. quando o Concílio de Toledo proibiu uma das formas de mimo, a chamada balimaquía (Salvat 62). Assim, o mimo e a pantomima irão desaparecer durante séculos até o surgimento do chamado jogral, o artista de origem popular que atuava tanto entre o povo quanto nos palácios. Mas, será no séc. XVI, com a Commedia dell’arte, que ela voltará a recuperar sua glória.

Entre os séculos XVII e XVIII ela vai evoluir, em países como a Inglaterra (com o gênero teatral conhecido como Harlequinade), onde foi muito popular, e a França, para um tipo de dança-pantomima, tal como ocorria na antiguidade. Este gênero teatral, tal como o conhecemos hoje, surge na França, no início do séc. XIX, como o pantomimo Jean-Gaspard Deburau. O gênero irá alcançar o auge de seu sucesso na segunda metade do século: “Esta arte tem seu máximo apogeu em Paris desde que, na segunda metade do S/XIX os simbolistas franceses recuperaram tudo o que estava relacionado a commedia dell’arte e suas máscaras” (Hernández 17). A influência dos personagens do antigo gênero teatral italiano, com destaque para a presença da figura do Pierrot, do Arlequim e da Colombina, será muito grande na produção de diferentes autores. Ao longo desse período o gênero foi se difundir por toda a Europa e atingiu outros continentes.

Ao mesmo tempo, deve se destacar o fato de que o desenvolvimento da indústria do cinema mudo abriu um novo caminho no processo de evolução da pantomima, que será de fundamental importância para a sua valorização e difusão. Por fim, no século XX, o francês Etiênne Decroux desenvolve um novo estilo, que será conhecido como mímica corporal. Atualmente ela não tem a mesma importância do passado, devido às próprias transformações da sociedade. O surgimento de outras formas de entretenimento como, por exemplo, a televisão e o cinema falado, fizeram com que, de modo geral, o teatro perdesse muito de seu antigo prestigio. Algo que varia de país para país. Seja como for, isso afetou todos os diferentes gêneros teatrais, em maior ou menor grau. Atualmente, ela voltou a perder importância e deixou de ser praticada em muitos lugares, como podemos ver, por exemplo, em grande parte do Brasil.

O estudo da história do gênero nos permite ver como o processo de evolução do gênero foi sempre uma retomada de características do passado, a partir de um novo ponto de vista. Assim, na próxima seção, daremos início ao estudo da obra de Benavente com o objetivo de identificar o modo como ele atuou nesse processo de renovação. O que, naturalmente, levará ao estudo do modo como ele retrabalhou a figura dos personagens da Commedia dell’Arte.

2- Aspectos formais de A brancura de Pierrot: examinando suas relações com o cinema mudo

Apesar de Jacinto Benavente ter escrito mais de cento e setenta peças nós iremos encontrar somente uma pantomima, A brancura de Pierrot, que em Teatro fantástico ele classifica como “argumento para uma pantomima” (Benavente 61). Ela foi publicada originalmente na “revista Blanco y Negro” (Llorens 245, tradução nossa) no dia 19 de fevereiro de 1898 e, em 1905, foi republicada na segunda edição do Teatro fantástico. Segundo Emilio Gonzales Lopes (311) a peça foi influenciada de forma evidente pela obra E. T. A. Hoffman, mas como ele não apresenta nenhum argumento que demonstre esse fato só o estudo comparativo das obras poderá demonstrar a veracidade dessa afirmação, o que não é nosso objetivo.

Segundo Lopes (315, tradução nossa), “foi escrita na forma de didascálaias cênicas e narrativa”. Contudo essa afirmação está equivocada porque não há nenhuma indicação cênica que diga como deve ser encenada, só a narrativa. Assim, o que nós temos é a narração de uma história, o que explica o fato dele ter subintitulado a obra como “argumento para uma pantomima” (61, tradução nossa). Contudo, quando foi publicada na revista o texto não possuía esse subtítulo. O que nos leva a supor que o texto foi publicado inicialmente como um conto e só depois transformado numa pantomima.

Tanto é que, ao ser publicado no periódico La Nota, em 1917, foi classificado como “conto” (Benavente, La nota 1609). Isso, se o definirmos como “uma narrativa concisa, com poucos personagens, que aborda um só assunto, dentro de um espaço de tempo limitado, podendo, ou não, recontar um fato passado e de fácil entendimento para todos aqueles que o leem” (Bolson 27). Nesse processo de transformação, acreditamos que o dramaturgo que tenha se inspirado não em outras pantomimas porque “argumento” é  um termo utilizado no cinema. O argumento de cinema é “uma descrição literária e sequencial do filme, em texto corrido, que não está ainda dividido por cenas (embora elas estejam normalmente já implícitas) nem inclui os diálogos dos personagens” (Nunes 1). Isso explica o fato de não ter uma estrutura teatral e estar na terceira pessoa. Não podemos descartas a hipótese de que ele tenha lido algumas pantomimas e assistido algumas apresentações, mas não temos nenhum testemunho desses fatos para saber se se inspirou em alguma obra específica.

Além disso, não podemos esquecer também o fato de que Benavente foi roteirista e produtor cinematográfico. Apesar de o seu envolvimento direto com a sétima arte ser tardio, só em 1918 ele vai dirigir a filmagem de Los intereses creados, seu interesse foi bem anterior. Sem contar o fato de que teve um papel importante para o desenvolvimento da indústria cinematográfica da Espanha. Tanto é que, “fundou a Madrid-Cines em 1919 para filmar seu script de La Madona de las rosas [The Rose Madonna]” (Bentley 27). Por tudo isso, a hipótese de que ele tenha escrito La blancura de Pierrot tendo em mente um argumento de cinema fica ainda mais forte. Até porque, como o primeiro filme com argumento espanhol, Riña en un café, foi filmado em 1897, já existiam argumentistas no país e ele não seria o primeiro a escrever algo nesse formato.

De qualquer modo, o fato de ser uma peça teatral não torna seu texto incompatível com o formato do cinema muda, pelo contrário. As duas formas de arte são indissociáveis. Assim, só nos resta comparar sua obra com outras obras do gênero pantomima, pois assim poderemos ver como seu texto tem um formato diferente. Portanto, na sequência, pretendemos identificar essas divergências. Nesse sentido, se a compararmos, por exemplo, com a Pierrot Sceptique: pantomime de Léon Hennique e Joris-Karl Huysmans, de 1881, vemos que as diferenças são muito claras.

Em primeiro lugar, o texto de Benavente não contém uma descrição das ações dos personagens. Com isso, o pantomimeiro não tem uma descrição do que deve fazer tal como vamos encontrar, por exemplo, em Yanko le Bandit de Théophile Gautier (354): “Cena Seis: Na soleira, Yamini encontra um homem embrulhado em um sobretudo, a quem ela diz ao ouvido uma frase misteriosa. O homem entra silenciosamente, e logo o seguem alguns outros, também cobertos de casacos”. Isso pode ser um problema num gênero que tem como fundamento a gesticulação, a movimentação e a expressão facial do ator. Por fim, no texto de Benavente não há, como no de Hennique e Huysmans, nenhum diálogo na primeira pessoa.

A ausência de diálogos é um fato importante porque, se atualmente a pantomima é vista como um gênero teatral no qual o ator não fala, não se pode esquecer que nem sempre foi assim. Nesse sentido, a sua peça está inserida num momento importante no processo de transformação do gênero. Para compreender melhor esse fato é preciso ter em mente que, até o século XIX, a pantomima “não pode ser vista apenas como uma forma “não falada” de expressão cênica e gestual, pois o mimo muitas vezes falou” (Camargo 3). Somente no final do século XIX isso vai mudar porque haverá o abandono da fala que passa a ser substituída totalmente pelo gesto, pela movimentação e expressão facial. Como Benavente publica sua obra, pela primeira vez, em 1898 ela está situada no início do surgimento desse novo modelo.

3- Pierrot: um assassino arrependido

Após analisarmos os aspectos formais da peça e suas relações com o cinema mudo iremos examinar o argumento propriamente dito. Apresentamos inicialmente um resumo do texto fazendo algumas associações com alguns textos bíblicos. Na sequência, partimos novamente de uma comparação com a peça de Huysmans e Hennique com o objetivo de mostrar como o Pierrot de Benavente não tem nenhuma relação direta com o deles. Isso nos permitirá identificar as inovações promovidas pelo dramaturgo espanhol. Na sequência, iremos discutir as características dos personagens apontando as semelhanças e diferenças com os tipos da Commedia dell’arte. Com isso, veremos como sua obra difere das pantomimas surgidas no século XIX na busca por um novo modelo.

Nela, temos a história de Pierrot, o empregado de um moinho, que se apaixona pela jovem que ali trabalha, Colombina. O proprietário dele, um velho avante chamado Matías, pensava em vendê-lo para se dedicar a usura, por ser mais lucrativo. Como ela sonhava com um príncipe encantado e ele era pobre Pierrot pensou que se fosse dono do moinho ela iria aceitar se casar com ele. Por isso, ele decide assaltar uma velha rica que morava perto. Depois de assassiná-la e roubar seu dinheiro ele ficou sujo de sangue. Por mais que ele tenha tentado se limpar, ou encobrir o sangue com farinha e carvão, não conseguiu e continuou todo vermelho. Por isso, se isolou das pessoas e passou a viver sozinho e triste carregando a culpa de seu crime. A escolha do protagonista não é casual porque ele é um personagem emblemático naquele período:

A figura de Pierrot prolifera durante todo o final do século XIX em todas as formas de escritura e arte em general. Entre 1860 e 1929, em uma lista incompleta, se catalogam ena Francia mais de cento e trinta e uma obras dramáticas e em dezenas em sua poesia (Palacio, 1990: 10). Acabou sendo uma figura acomodatícia que desempenhou múltiplos papéis, chegando a ser o emblema da decadencia finissecular, pois, não em vão, os grandes descobridores de Pierrot (Baudelaire, Gautier, Flaubert, Goncourt, Jules Laforgue) são também os grandes iniciadores do espírito da Decadência (Llores 250).

No que diz respeito a divisão da obra, Hernandez (37) adota uma divisão tripartida (a quimera, remédio para seus anseios e a derrota). Por outro lado, observando a história nós a dividimos em quatro partes que apresentam uma forte conotação bíblica. Na primeira, nós temos a apresentação dos personagens principais (Pierrot e Colombina) que viviam em estado de pureza, como Adão e Eva antes da queda. Na segunda, que podemos chamar de “o desejo”, ele deseja o amor dela, desejo por meio do qual é tentado a pecar. Na terceira, que podemos chamar de “a queda”, ele é tentado por seus próprios desejos e cai em pecado, assassinando a velha. Por fim, na quarta, é punido por seu pecado e carrega a culpa do seu crime. No que se assemelha a diferentes personagens da Bíblia como, por exemplo, Adão e Eva ou Caim.

Assim, por tudo o que dissemos na seção anterior, ao examinarmos a narrativa, nós somos levados a discordar da tese de Mónica Aranda Hernández de que Benavente se baseou “no modelo de Huysmans e Hennique e sua obra Pierrot sceptique de 1881, onde se explora o lado mais obscuro deste bufão” (18). Benavente não explora o caráter mais obscuro como eles fazem. E como estes autores franceses não são os únicos retratar o personagem como um assassino naquele período ele pode ter se baseado na obra de outro dramaturgo. Além disso, seu Pierrot não mata a mulher amada. O fato de que ele fter feito o personagem matar para adquirir os meios que lhe permitirão conquistar a mulher amada é uma inovação. Ou seja, as motivações são muito diferentes. Por fim, o amoralismo e o sentimento de vitória do personagem da dupla francesa é muito diferente da tristeza culposa do personagem de Benavente (66, tradução nossa): “Pierrot queria sepultar-se na brancura da neve imaculada; desfazer-se com ela na brancura do céu, fria como perdão sem amor e sem misericórdia”.

Consequentemente, não há nenhuma prova de que tenha havido influência direta. O mais provável é que a existência de várias peças com o tema do Pierrot assassino pode ter inspirado Benavente a escrever sobre o assunto. Até porque a diferença não está só na narrativa. Ela existe também no modo como os personagens são construídos. Eles são tipos e não individualidades plenamente desenvolvidas; mesmo o Pierrot, que foi um pouco mais bem trabalhado. Na obra dos autores franceses a construção se dá de forma bem mais sofisticada. Eles são mais complexos e bem construídos no que diz respeito a sua personalidade. Além disso, do ponto de vista formal, a obra espanhola não tem nenhuma relação direta com o texto deles, que tem um formato teatral padrão com suas descrições, didascálias e diálogos na primeira pessoa.

Seja como for, se Benavente já não segue o mesmo modelo adotado por Hennique e Huysmans, no que diz respeito ao aspecto formal, sua obra ainda não apresenta o mesmo padrão que vamos encontrar, por exemplo, na de Gautier, que foi publicada em 1982. Talvez, por isso, seja um tanto quanto deficiente na sua teatralidade. Portanto, por tudo o que foi visto, nos parece que o texto de Benavente está mais próximo de um argumento de cinema mudo, ou de um conto, do que de uma pantomima propriamente dita, como podemos ver pelos exemplos citados. Seria muito natural que, num processo de renovação do teatro, ele se apropriasse de um antigo gênero e lhe desse uma nova roupagem inspirada no cinema mudo. Essa “apropriação de um gênero clássico também se deve ao fato de Benavente estar inserido na Generación del 98 (Ariza 56). Como uma das características deste grupo de escritores foi a imitação e recuperação dos clássicos é natural que também tenha adotado este princípio” (Lage 4).

Por outro lado, no que diz respeito aos personagens, como já foi dito, eles são personagens-tipo. Possivelmente, essa característica está relacionada à própria brevidade do texto, que não permite um maior desenvolvimento deles. Benavente, em parte, se apropria dos tipos da Commedia dell’arte. Pierrot, o protagonista, por exemplo, não é o palhaço melancólico, apaixonado e corno que conhecemos hoje, mas um empregado do moinho, tal como era no início e que na Itália do séc. XVI recebia o nome de Pedrolino. Originalmente era “um zanni, um simples criado. Mais tarde, evolui para Pierrô, já segundo as condições do ambiente francês” (Vendramini 64). O interessante é que o dramaturgo combina o antigo modelo do criado (honesto, enamorado, terno (Hernández 28)) com a imagem do moderno palhaço melancólico.

Portanto, do mesmo modo que sua obra é fruto de um momento de transformação do gênero, a narrativa retrata o processo de transformação do antigo personagem-tipo para o novo. Mas, Benavente apresenta uma inovação ao fazer com que Pierrot se torne melancólico devido a punição que recebe no final da obra. Uma consequência do fato de ter se tornado vermelho ao se manchar com o sangue da vítima:

Vermelha a cara, vermelhas as mãos, saia pouco depois apertando conturbado um bolsão de couro imundo cheio de moedas de ouro. Pierrot contemplava apavorado suas mãos e seu traje ensanguentado. Sem vê-la, sentia o sangue que avermelhava sua cara…, e ali perto não havia água…, e antes de chegar ao moinho d’água podiam vê-lo.

Nem a água, nem o carvão, nem a farinha apagaram nem encobriam o sangue vermelho, Pobre Pierrot, vermelho para sempre, espectro terrível do crime! (65-66, tradução nossa)

Esse acontecimento pode ter sido inspirado pelo relato bíblico do assassinato de Abel, por seu irmão Caim. Deus amaldiçoou Caim por seu crime e para evitar que ele fosse morto por vingança lhe pôs uma marca tal como lemos em Gênesis 4:15-16: “E o Senhor respondeu-lhe: “Não! Mas aquele que matar Caim será punido sete vezes.” O Senhor pôs em Caim um sinal, para que, se alguém o encontrasse, não o matasse.” (Biblia Sagrada Ave Maria 52). No passado, muitos interpretaram, numa visão extremamente racista, que ao receber a tal marca “Caim teria se tornado negro e foi o pai das pessoas de pele escura” (Moura 1). Benavente poderia então, ter se apropriado dessa ideia, e feito com que Pierrot ficasse vermelho como castigo pelo assassinato. Ao mesmo tempo, ao contrário de muitas outras peças, ele não é um melancólico por amar Colombina e não ser correspondido.

Pelo contrário, pelo que vemos nos últimos parágrafos, o horror vivenciado com a transformação e o isolamento ao qual se condenou é que farão com que ele fique desse jeito. O fato de Benavente centrar a peça no crime e não na história de amor pode ser o motivo dessa mudança em relação às peças anteriores. Até porque a omissão da figura do Arlequim e a mudança que ele faz na figura da Colombina também são uma consequência dessa mudança de foco. Essas alterações farão com que outro personagem-tipo também não seja totalmente fiel ao modelo original, a Colombina. Ela continua sendo a criada, pobre, mas em vez de amar Arlequim está à espera de um príncipe encantado, o que lhe dá um caráter romântico e ingênuo, o oposto da personagem tradicional. Por fim, temos o último personagem-tipo que é a figura do avarento que está presente em Matías e a velha anônima:

Exemplo do caráter popular/social da commedia dell’arte é a permanência de uma personagem arquetipal – o avarento –, que atravessa a história do teatro desde Plauto (com o Euclião, da Aulularia), passando por Molière (com o Harpagon, de O avarento) e chegando até o brasileiríssimo Ariano Suassuna (com o Euricão de Osanto e a porca) (Vendramini 60).

Assim, podemos ver como a obra de Benavente é uma releitura de antigos gêneros teatrais enriquecidos com as inovações apresentadas pelo dramaturgo. Seja do ponto de vista temático seja do ponto de vista formal sua obra não segue os modelos dos autores que produziram pantomima nos anos anteriores, o que nos levou a associá-la ao cinema mudo. O que inclui o modo como os personagens da Commedia dell’arte foram retrabalhados por ele. E como eles estão presentes em outras obras seria importante que no futuro surgissem trabalhos que se dedicassem a estudar a presença deles no conjunto de sua produção. Seja como for, o fato é que no processo de inovação do teatro espanhol ele se apropriou de elementos do passado para produzir uma obra que está nos primórdios de um novo modelo de pantomima no qual o diálogo foi totalmente eliminado.

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