A escrita íntima de Florbela Espanca: os vestígios de si

Michelle Vasconcelos Oliveira do Nascimento
Universidade Federal do Rio Grande (Brasil)
michellevasc@hotmail.com

 

Rodrigo Santos de Oliveira
Universidade Federal do Rio Grande (Brasil)
oliv.rod@hotmail.com

 

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Resumo

 

A partir dos anos 80, houve um crescimento na produção e consumo das escritas biográficas e autobiográficas. Embora a expansão do gênero seja recente, há muito a literatura se ocupa do seu estudo e pesquisa, principalmente em diários e cartas e autobiografias. No caso da produção feminina, esse tipo de escrito toma outra dimensão, visto que durante muito tempo foi negado às mulheres o direito à voz e à escrita pública, restando-lhes apenas a escritura íntima, privada. Nestes escritos, geralmente diários e cartas, elas manifestavam, além dos sentimentos e atividades cotidianas, a sua percepção de mundo e a sua produção literária. Tomando o diário e a correspondência como espaço testemunhal e poético, ou seja, literário, pretende-se examinar como a escritora portuguesa Florbela Espanca (1894-1930), em seu Diário e epistolografia do último ano, constrói um discurso em que não apenas “deita as cartas de sua vida”, mas amplia “a ficção que (…) armou” em sua produção poética.

 

Palavras-chave

 

Florbela Espanca, autobiografia, cartas, diário, produção literária.

 

Abstract

 

From the 80’s, there was an increase in production and absorption of biographical and autobiographical writings. Although the expansion of the gender is recent, for a long time the literature is concerned with its study and research, mainly in diaries and letters and autobiographies. In the case of female production, this type of writing takes another dimension, since, for long, women have been barred from writing and the right to the public speech; only the intimate and private writings were left to them. In these writings, usually diaries and letters, they manifested, in addition to feelings and daily activities, their perception of the world and their literary production. Taking the diary and correspondence as witnesses and poetic space, it means, literary, this work aims to examine how the Portuguese writer Florbela Espanca (1894-1930), in her last year, diary and letters compose a speech in which she not only ” lay the cards of her life “, but extends” the fiction that […] she arranged” in her poetry.

 

Key words

 

Florbela Espanca, autobiography, letters, diary, literary production.

 

 

Sobre o gênero autobiográfico: de-limitações?

A escrita de caráter autobiográfico e/ou memorialístico possui valor tanto histórico, quanto literário e sociológico. É um tipo de escritura que pertence a diversos campos de conhecimento, sem definir-se exclusiva ou característica de um, atuando entre as fronteiras e exigindo uma análise inter ou multidisciplinar. Portugal tem uma larga produção de livros de memória e diários, ao longo dos séculos XIX e XX, que interessa face ao conteúdo histórico e literário.

A produção autobiográfica portuguesa no século XIX foi rica e variada, embora algumas das obras mais representativas então produzidas só tenham sido publicadas na centúria de vinte […]. Quanto mais complexa a época, tanto mais rica.[…] Um impulso de autojustificação levou pessoas tão diferentes – escritores, juristas, políticos, artistas, actores, eclesiastos – a integrar esta vasta bibliografia do memorialismo luso. (Ventura 31)

É válido notar que embora vários escritores portugueses tenham se dedicado à produção autobiográfica, muitos desses textos ficaram relegados à segunda ordem ou mesmo ao esquecimento pela Literatura e pela História, por não receber o mesmo valor e olhar que o texto literário tradicional ou o documento histórico. Entretanto, tais textos guardam em si “retalhos” dessa história, não só particular, do sujeito naquele tempo, mas sua visão e compreensão da sociedade em geral, de como estava inserido nela e como sentia e se comportava diante das transformações e o quanto isso poderia influenciar em sua vida artística e nas obras de seus contemporâneos. Em relação às mulheres escritoras, o gênero autobiográfico teve um alcance e papel muito mais profundos, pois a elas foi negada, durante muito tempo, a fala, e também a expressão. Em suas obras, muitas não conseguiam expressar por inteiro os seus pensamentos e angústias, manifestar-se em relação aos acontecimentos e à sociedade em que viviam, e encontraram na escrita diarística e memorialista esse refúgio para o “eu”:

Esses diversos tipos de escritos são infinitamente preciosos porque autorizam a formação de um ‘eu’. É graças a eles que se ouve o “eu”, a voz das mulheres. Voz em um tom menor, mas de mulheres cultas, ou, pelo menos, que têm acesso à escrita.” (Perrot 30).

Os diários, por exemplo, enquanto escritas autobiográficas, são peças fundamentais para compreender o contexto histórico e social em que as mulheres viviam, e são, muitos deles, ainda, memória dessas mulheres, memória de uma voz muitas vezes silenciada.

 

A produção autobiográfica feminina

A escrita de cunho autobiográfico é fundamental para compreender o contexto histórico e social em que as mulheres viveram e produziram sua literatura. Mais relevante é o espaço desse tipo de escrita para a evasão literária feminina. Ao passo que as mulheres passaram a ter acesso à escrita, a prática autobiográfica transformou-se ainda em veículo literário para as escritoras. Não obstante, parte das produções literárias femininas é encontrada em diários e cartas, prática difundida principalmente no século XIX entre as mulheres, mas que apenas a partir da segunda metade daquele século passa fazer parte do cotidiano tanto das mulheres comuns, como do cotidiano das mulheres escritoras. Para estas últimas, a escrita autobiográfica exerce uma função que vai além da simples narrativa do cotidiano, como espaço para fixar a memória, mas se torna um espaço para a prática literária, ou seja, onde a “verdade” e “ficção” se entremeiam na construção dos seus textos.

Entretanto, é imprescindível apontar que a escrita autobiográfica compreende diversos textos que a tradição literária reconhece como opostos à ficção, e os sistematiza: as memórias e a autobiografia são exemplos. Mas, por outro lado, textos como cartas e diários não são considerados por muitos críticos como literários, o que durante muito tempo criou obstáculos ao seu estudo na área, mesmo sendo essas as primeiras vias de conhecimento das escrituras femininas, do seu mundo e pensamento, e, por muito tempo, as suas únicas formas de expressão. São textos que operam nas fronteiras, mas ao passo em que apresentam elementos históricos, sociológicos, através das memórias, apresentam também as experiências literárias femininas. Segundo Eurídice Figueiredo (39), a correspondência como gênero (auto) biográfico é particularmente importante no caso dos escritores para se conhecer as ideias, as opiniões, a interlocução, intelectual, amorosa ou de amizade que cada um manteve com seus pares e familiares, além de matéria autobiográfica e testemunhal, a correspondência também serve de espaço para a criação poética.

Em relação às mulheres escritoras, o gênero autobiográfico teve um alcance e papel muito mais profundos, pois a elas foi negada a participação na esfera pública. E quando tinham acesso ao mundo público, devido à censura do social, em suas obras muitas não conseguiam expressar por inteiro os seus pensamentos e angústias, manifestar-se em relação aos acontecimentos e à sociedade em que viviam, e encontravam na escrita diarística e memorialista esse refúgio para o “eu”. É nesse espaço que a escrita serve de refúgio e de criação de um eu e de um mundo, às vezes tão próximo à sua realidade, outras vezes, tão próximo à ficção:

Quanto ao facto de que a identidade individual, na escrita como na vida, passa pela narrativa, isso não quer de modo algum dizer que ela seja ficção. Pondo-me por escrito, eu apenas prolongo o trabalho de criação de “identidade narrativa” (como diz Paul Ricoeur) em que consiste toda e qualquer vida. Claro que ao tentar ver-me melhor, continuo a criar-me, passo a limpo os rascunhos da minha identidade, e esse movimento vai provisoriamente estilizá-los ou simplifica-los. Mas não estou a brincar à invenção de mim mesmo. Pelo contrário, ao tomar a senda da narrativa sou fiel à minha verdade: todos os homens que andam na rua são homens-narrativa, é por isso que se aguentam em pé. (Lejeune, Definir autobiografia 41)

À suposta oposição realidade-ficção que diferenciaria, segundo a tradição literária, o autobiográfico e o definiria em relação aos outros gêneros literários também se associa, de acordo com Mercedes Arriaga Flórez (19), a oposição privado-público: “La distinción público-privado es tan importante en la definición de textos autobiográficos que no sólo se utiliza para la clasificación em literário o no literário […]”. As características principais do gênero autobiográfico se associam, segundo Flórez (19), ao caráter privado dos textos e ao fato de terem aproximação com a realidade, o que podemos aqui entender como a realidade individual, subjetiva, do escritor. Ou, em outros termos, a característica principal do gênero seria de assumir esse “pacto” com a verdade, de acordo com Lejeune, em O Pacto Autobiográfico.

O pensamento sobre a questão do gênero autobiográfico orientado pelo caráter de realidade/verdade e objetividade do texto, segundo Duque-Estrada (15), pode ser considerado obsoleto diante das novas perspectivas que discutem o conceito de realidade e subjetividade. As categorias de realidade e ficção tendem a se entrelaçar nos textos de cunho autobiográfico a partir da subjetividade do escritor, sujeito que existe, em grande parte dos escritos, de forma autorreferencial, “mas que só existe como abstração” (Duque-Estrada 52). Assim, pensar o texto de cunho autobiográfico como a mera representação de uma realidade/verdade, é desconsiderar a subjetividade do seu escritor e a (im)possibilidade de alcançar essa realidade/verdade na escrita:

Serge Doubrovsky […] questiona a categoria de verdade, mostrando quão construída é toda autobiografia. Se no romance o caráter fictício está posto, cabendo ao autor inventar os eventos que se sucedem, na autobiografia o autor sabe de antemão o que aconteceu, não pode inventar para suscitar o interesse do leitor: ‘Mesmo querendo dizer a verdade, se escreve falso. […] Contar sua vida é sempre um mundo às avessas’ (Doubrovsky). (Figueiredo 11)

Mas é o caráter privado, individual, que permite que nesses textos de cunho autobiográfico, principalmente os diários, os indivíduos se expressem livres da moralidade social, do discurso permitido socialmente. Assim, são textos que podem ser considerados marginais, tanto pelo seu caráter privado, íntimo, como por não obedecerem a categorizações e modelos literários, e essa marginalidade é terreno fértil para que as mulheres, neste caso, desenvolvam a sua escritura não permitida nos meios públicos, e, principalmente construam sua memória e literatura: “[…] para Blanchot, o diário só ultrapassa a superficialidade de marcação do cotidiano se transborda para incorporar também o imaginário, a irrealidade da ficção.” (Figueiredo 30)

Essa relação entre “realidade” e “ficção”, que, por sua vez, de acordo com a tradição literária, diz respeito às categorias de não-literatura (memória) e literatura, é instaurada em muitos momentos da escrita íntima de Florbela Espanca (1894-1930), escritora portuguesa, na qual encontramos vestígios desse eu misturados a elementos ditos ficcionais, ou, pelo menos, elementos que se encontram também na sua poesia, portanto, sua criação literária.

É no seu Diário do último ano (1930) e na sua correspondência do mesmo período que essa relação é mais marcante, e nos remetem à mulher Florbela e à escritora Florbela, duas instâncias distintas do mesmo sujeito.

 

A escrita autobiográfica de Florbela Espanca

O diário e a epistolografia de Florbela são textos que foram relegados ao segundo plano pela crítica literária, apesar de serem peças importantes da obra da escritora, a partir dos quais é possível desvendar as nuances do feminino florbeliano, e não só da poetisa em questão, mas das mulheres de sua época e cultura. Nos últimos anos tais obras conquistaram alguma atenção, mas o seu estudo está longe de ser exaustivo.

Além disto, leva-se em consideração que a sua produção autobiográfica transcende os limites do gênero, visto que suas cartas e diário possuem traços de ficcionalidade e poeticidade, o que permite uma leitura também sob o ponto de vista literário e não apenas biográfico. O estudo deste viés proporciona a construção de relações entre a escrita autobiográfica de Florbela e a sua produção literária, que vão desde temas a estilos, colocando-a sob uma nova perspectiva de análise, identifi­cando os tipos femininos que se apresentam também em suas poesias. Da mesma forma, alguns críticos tentaram construir relações entre a produção literária florbe­liana e a sua biografia.

Seguindo a linha do diário íntimo feminino, como lugar para o exercício catártico, onde se exprimem sentimentos, constroem-se reflexões interiores sobre a própria identidade feminina e buscam-se respostas aos conflitos, que resultam no autoconhecimento de um ser fragmentado, como a própria escrita diarística, é que se identifica no Diário do último ano, de Florbela Espanca (1894-1930), a fragmentação do “eu” feminino, que se expressou livre das convenções sociais, mesclando as diversas máscaras usadas pela poetisa e pela mulher, a fim de se representar e de se conhecer.

Como várias outras mulheres, Florbela usou a escrita como forma de evasão, especialmente no seu diário, por propiciar a liberdade da palavra, a expressão dos anseios das várias Florbelas, ou seja, as várias mulheres que habitavam aquele “eu”, múltiplo em vozes e fragmentado por elas, como o próprio texto.

O Diário do último ano teve início em 11 de janeiro de 1930 e teve a última escrita em 02 de dezembro do mesmo ano, poucos dias antes do falecimento da escritora, e não possui uma regularidade de escrita: no total são descritos 32 dias, dentre os quais, 10 fragmentos trazem episódios entre janeiro e 8 de fevereiro, que se configura como o maior fluxo de produção diarística.

Sua escrita é fragmentada, característica peculiar ao gênero em questão, mas tal fragmentação não decorre apenas por se construir a cada dia, mas também por não haver uma escrita regular:

A base do diário é a data. O primeiro gesto do diarista é anotá-la acima do que vai escrever. […] A datação pode ser mais ou menos precisa ou espaçada, mas é capital. Uma entrada de diário é o que foi escrito num certo momento […] O diário é um vestígio: quase sempre uma escritura manuscrita, pela própria pessoa, com tudo o que a grafia tem de individualizante. […] O diário é uma série de vestígios. Ele pressupõe a intenção de balizar o tempo através de uma sequência de referências. O vestígio único terá uma função diferente: não a de acompanhar o fluxo do tempo, mas de fixá-lo em um momento-origem. (Lejeune, O pacto autobiográfico 260)

Não obedecendo a uma narração temporal cotidiana, o Diário do último ano, em muitos casos, quanto aos vestígios, apresenta apenas uma frase ou pensamento íntimo, manifestação de insa­tisfação ou anseio de morte. Paradoxal, como costumam ser as escritas diarísticas íntimas femininas, encontram-se, ainda, o vazio e a aspiração do infinito, o comedimento e a transgressão expressos em suas poucas, mas intensas, linhas.

Entretanto não é apenas no diário que há o caráter confessional da escritura e a fragmentação de pensamentos, mas ainda na epistolografia florbeliana. Quanto à relação entre ambas as escrituras íntimas, é importante assinalar:

Cartas pessoais devem ser situadas dentro de relações múltiplas, conectando diferentes formas de escritura íntima. O historiador deve escrutinar os modos como as cartas particulares relacionam-se, contradizem-se ou sobrepõem-se a diários pessoais. (Lyons, Leahy 70)

A epistolografia[1] produzida e trocada neste derradeiro ano, principalmente com o professor italiano Guido Battelli, expõe as vicissitudes concernentes à escritura confessional, construindo, juntamente com o diário, as nuances deste sujeito feminino e a problemática que envolve a mulher Florbela e a mulher escritora. Segundo Maria Lúcia Dal Farra, a correspondência de Florbela exerce esse papel íntimo e confessional do diário, trocando de papel e função com este por muitas vezes:

O diário, que se desenrola no derradeiro ano de vida de Florbela, e que se compõe de apenas trinta e dois fragmentos, aliás, salteados e um tanto caóticos, carece de um contexto mais amplo que, apenas as outras peças da correspondência florbeliana, concernentes a esse mesmo período temporal, poderiam ajudar a recompor.

Assim, é de se salientar que a produção das cartas dirigidas a Guido Battelli, num montante de vinte quatro peças (considerando-se a primeira carta da série aquela escrita por Florbela, mas assinada com o carimbo da Maria Amélia Teixeira, diretora do Portugal feminino), ocupa, em determinadas circunstâncias, aliás, o mais das vezes, o lugar da escrita do Diário. Sobretudo no princípio (a correspondência é encetada a 14 de junho), quando Florbela escreve ainda para alguém que não passa de uma abstração: para um destinatário desconhecido, pertencente a um universo distanciado, pois que Battelli é estrangeiro e cada vez mais prestes a partir para a Itália. (Dal Farra 245)

Embora a interlocução com Battelli tenha sido iniciada em 14 junho de, já em 11/01/1930[2], em caráter de confissão e de metalinguagem, Florbela inaugurara o seu Diário do último ano[3], em 11/01/1930:

Para mim? Para ti? Para ninguém. Quero atirar para aqui, negligen­temente, sem pretensões de estilo, sem análises filosóficas, o que os ouvidos dos outros não recolhem: reflexões, impressões, ideias, maneiras, de ver, de sentir – todo o meu espírito paradoxal, talvez frívolo, talvez profundo.

A poetisa inicia a sua escrita diarística com uma reflexão sobre o próprio fazer diarístico, anunciando a sua falta de pretensão e, ao mesmo tempo, o seu espírito paradoxal, perceptível, mais adiante, nas passagens do Diário.

Ainda no mesmo texto, como a um “suposto” interlocutor Florbela se explica:

Não tenho nenhum intuito especial ao escrever estas linhas, não viso nenhum objectivo, não tenho em vista nenhum fim. Quando morrer, é possível que alguém, ao ler estes descosidos monólogos, leia o que sente sem o saber dizer, que essa coisa, tão rara neste mundo – uma alma – se debruce com um pouco de piedade, um pouco de compreensão, em silêncio, sobre o que eu fui ou o que julguei ser. E realize o que eu não pude: conhecer-me. (grifo do autor)

A falta de objetivo apontada por Florbela ao tentar justificar a sua escrita é a de simplesmente “atirar” naquele texto o que “os ouvidos dos outros não recolhem”, como escreve no Diário em 11/01/1930. O diário é um exercício de catarse e de confidência um interlocutor diante do qual Florbela não se sente intimidada, pode expressar suas aflições e incômodos. Como explica Lejeune, o diário pode ter várias funções, das quais se destacam as funções de desabafar e conhecer-se. Quanto à primeira utilidade,

O papel é um amigo. Tomando-o como confidente, livramo-nos de emoções sem constranger o outro. Decepções, raiva, melancolia, dúvidas, mas também esperanças e alegria: o papel permite expressá-las pela primeira vez, com toda a liberdade. O diário é um espaço onde o eu escapa momentaneamente à pressão social […]. (Lejeune, O pacto autobiográfico 262)

O papel, suporte e interlocutor, também:

[…] é um espelho. Uma vez projetados no papel, podemos nos olhar com distanciamento. E a imagem que fazemos de nós tem a vantagem de se desenvolver ao longo do tempo, repetindo-se ou transformando-se, fazendo surgir as contradições e os erros, todos os vieses que possam abalar nossas certezas. (Lejeune, O pacto autobiográfico 263)

Como confidente e como espelho, o diário é o depósito de suas vozes e é a via para a tentativa de construção e descoberta desse sujeito, a que julga não conhecer. Depara-se, aqui, com um eu desconhecido, que, ao mesmo tempo, busca conhecer-se, construir-se pelo olhar do outro, não de dentro para fora, mas num movimento inverso, de fora para dentro.

 

As imagens femininas: entre a ficção e o autoconhecimento

O Diário de Florbela é apresentado como um espelho da diarista, um autorretrato, mas é também lugar para a sua ficcionalização. Ou seja, são nos diário e epistolografia que Florbela delineia perfis femininos, como uma personificação, através de imagens femininas recorrentes em suas obras, como a sóror, a princesa, a pantera, e a própria Charneca. O processo de autoconhecimento seria, então, marcado pela presença desses elementos poéticos, ficcionais. São várias mulheres que se apresentam e por quem se representa a diarista.

Assim, o espírito paradoxal, afirmado no primeiro vestígio do Diário, antecipa o que será a sua escritura: impossibilidade de conhecimento. Em um jogo de construção e desconstrução, suas afirmações confundem e impossibilitam o leitor de tentar audaciosamente traçar um perfil exato dessa mulher, por vezes Quixote, em Carta de 27/7/1930, a escritora diz:

Sou uma céptica que crê em tudo, uma desiludida cheia de ilusões, uma revoltada que aceita sorridente, todo o mal da vida, uma indiferente a transbordar de ternura. Grave e metódica até a mania, atenta a todas as subtilezas dum raciocínio claro e lúcido, não deixo, no entanto, de ser uma espécie de D.Quixote fêmea a combater moinhos de vento, quimérica e fantástica, sempre enganada e sempre a pedir novas mentiras à vida.

Como Quixote, a mulher Florbela é idealista, fidalga louca, quimérica, amazona a combater seus próprios moinhos de vento. Além do Quixote, Florbela é, ainda, a Charneca. Esse sujeito feminino, que se multiplica e se autorre­presenta, encontra na sua fusão com a natureza as imagens da Charneca Alentejana, mais uma autorrepresentação deste “eu”, que, em contrapartida, representa os sujeitos femininos de sua época, em Carta de 27/7/1930:

A Charneca é áspera e selvagem, mesmo vestida das suas cores predilectas: roxo e doirado. Giesta, urze, rosmaninhos, esteva: plantas amargas e rudes, sempre sequiosas, sempre solitárias, em face dum céu onde se acende o sol que as queima e o luar que as faz sonhar sonhos irrealizáveis de pobrezinhas que nunca serão princesas. É assim que também sou, “Charneca em Flor”.

Personificada, a charneca se confunde com esse sujeito e o define, o caracteriza, é uma das autorrepresentações desse “eu” no diário e epistolografia. Ao empreender essa viagem imagética pelo mundo selvagem, Florbela se transmuta e entra em comunhão com a natureza. A secura e a aridez da Charneca Alentejana se confundem com a própria condição feminina da sociedade, mulheres reprimidas pelo mundo masculino, sem a possibilidade de buscar a realização dos seus anseios.

Encontra-se o tom de orgulho em função de uma autodefesa e de autoafirmação na escritura, autorrepresentando-se pela Napoleão de Saias, no Diário em 19/2/1930:

Que me importa a estima dos outros se eu tenho a minha? Que me importa a mediocridade do mundo se Eu sou Eu? Que importa o desalento da vida se há a morte? Com tantas riquezas porque sentir-me pobre? E os meus versos e a minha alma, e os meus sonhos, e os montes e as rosas e a canção dos sapos nas ervas húmidas e a minha charneca alentejana e os olivais vestidos de Gata Borralheira e o assombro dos crepúsculos e o murmúrio das noites… então isto não é nada? Napoleão de saias, que império desejas? Que mundo queres conquistar? Estás, decididamente, atacada de delírio de grandezas!…

Entre os versos e a natureza, entre a alma e os montes, entre os sonhos e a charneca, esse sujeito se representa. O concreto e o abstrato, o seu mundo real e o de sonhos fundem-se aqui para, através do singelo, expor as faces desse sujeito, refletido em todos os elementos. Esse mundo, ela o apresenta a seus pés, suas grandes conquistas e bens. Finito e Infinito se confundem e se mesclam, perdem-se os limites. Apenas em si, a poetisa encontra a merecida valoração, numa luta entre o seu eu e o mundo repressor que lhe rodeia, entre o ser mulher e poetisa e o preconceito da sociedade portuguesa.

Através da busca empreendida pela autovaloração de seu mundo, fica bem nítida a tentativa de autoafirmação diante de outro sujeito, exterior. A autoconfiança, que parece uma suposta defesa em relação ao mundo exterior, assemelha-se, ainda mais, a uma defesa em relação ao mundo dominantemente masculino, que se servia da moral cristã para subjugar a mulher ao homem e à sociedade. A descrição deste “eu” feminino, que tanto anseia e busca por algo que não encontra ou mesmo desconhece, a aspirar ao infinito, ao impossível, é representada pela imagem do Napoleão de saias.

O Napoleão de saias se mostra também nas cartas a Guido Battelli, como na carta de 10/7/1930, em que Florbela confessa:

O meu mundo não é como o dos outros, quero demais, exijo demais, há em mim uma sede de infinito, uma angústia constante que eu nem mesmo compreendo, pois estou longe de ser uma pessimista; sou antes uma exaltada, com uma alma intensa, violenta, atormentada, uma alma que não sente bem onde está, que tem saudades… sei lá de quê!

E como poetisa, afirma-se em penitência, na Carta enviada a Guido Battelli, em 14/10/1930: “Eu sou apenas poetisa: poetisa nos versos e miseravelmente na vida, por mal dos meus pecados”. A simplicidade e a objetividade com as quais se define como poetisa remete, ao mesmo tempo, a uma disfarçada modéstia ou à falta do orgulho por vezes presente nos seus escritos diarísticos.

A Florbela, exilada, é também uma princesa em seu castelo de sonhos, o poeta apartado de sua terra, a mulher longe da Charneca é a mulher sem a sua vitalidade típica. Assim, Florbela imagina-se, no Diário, em 16/3/1930:

[…] em certos momentos, uma princesinha sobre um terraço, sentada num tapete. Em volta… tanta coisa! Bichos, flores, bonecos…brinquedos. Às vezes a princesinha aborrece-se de brincar e fica, horas e horas, esquecida, a cismar num outro mundo onde houvesse brinquedos maiores, mais belos e mais sólidos.

Como princesa, a poetisa também é isolada, exilada, também é a Sóror Saudade, na Carta de 03/8/1930:

Perdoe o egoísmo à sua pobre Sóror Saudade: hoje mais Sóror Saudade do que nunca. Às vezes sinto em mim uma elevação de alma, o vôo translúcido duma emoção em que pressinto um pouco do segredo da suprema e eterna beleza; esqueço a minha miserável condição humana, e sinto-me nobre e grande como um morto.

Esse sujeito, que se autorrepresenta pela Sóror e pela poetisa, revela-se como “uma inválida e uma exilada da vida” , na Carta de 05/7/1930, enviada a Guido Battelli. Assim, as imagens convergentes e divergentes desse “eu” feminino são delineadas e “autocarac­te­rizadas” nas linhas confessionais e inquiridoras do Diário do último ano e das cartas produzidas neste período, onde se veste dessa máscara frágil da exilada, da poetisa que é impelida ao seu destino, do qual não pode esquivar-se, como na Carta em 02/8/1930: “Está escrito que hei-de ser sempre a mesma eterna isolada… Porquê?” 

 

Considerações Finais

Tanto no seu referido diário, como em sua epistolografia do último ano, esse “eu” se multiplica e se representa, a Florbela foi a Bela, foi a Sóror, foi a pantera, imagens femininas várias, que ela manifestou nesses escritos e que representavam as máscaras das várias mulheres que ela vestia, ou que continham nela. Todas foram desconstruídas pelos conflitos não resolvidos. E a poetisa acabou por se reconhecer no D.Quixote, um personagem porventura masculino, mas cuja imagem abarcou o reconhecimento que a poetisa faz da sua condição em uma carta endereçada ao professor Guido Battelli, em 11/11/1930:

Viverei com certeza um terço do que poderia viver porque todas as pedras me ferem, todos os espinhos me laceram. D.Quixote sem crenças nem ilusões, batalho continuamente por um ideal que não existe; e esta constante exaltação, desesperada e desiludida, destrambelha-me os nervos e mata-me.

A escritura de Florbela vai além do autobiográfico, pois apresenta ao leitor, através de suas angústias e anseios, de suas lutas e decepções, o panorama da sociedade em que viveu, da condição feminina naquele mundo dominantemente masculino e cristão, em que a mulher não deveria ser mais que uma sombra do homem.

A sua busca pela Outra, por construir e/ou definir uma identidade, neste percurso de imagens femininas produzidas – Sóror, Princesa, Pantera, D. Quixote de saias -, mostra como as escritas autobiográficas transitam nas fronteiras, agregando elementos de ficção, e se torna um espaço para evasão do poético, com a presença de elementos ficcionais e com a manifestação dos interditos sociais.

 

 

Bibliografia

Dal Farra, Maria Lúcia. “Apresentação”. Afinado Desconcerto (contos, cartas, diário). Florbela Espanca. Apres. Maria Lúcia Dal Farra. São Paulo: Iluminuras, 2002: 245-255.

Duque-Estrada, Elizabeth Muylaert. Devires autobiograficos: a atualidade da escrita de si. Rio de Janeiro: NAU/Editora PUC-Rio, 2009.

Espanca, Florbela. “Diário do último ano e epistolografia”. Afinado desconcerto (contos, cartas e diário). Organização de Maria Lúcia Dal Farra. São Paulo: Iluminuras, 2002.

Figueiredo, Eurídice. Mulheres ao espelho: autobiografia, ficção, autoficção, Rio de Janeiro: UERJ, 2013.

Flórez, Mercedes Arriaga. Mi amor, mi juez: alteridad autobiográfica feminina, Barcelona: Anthropos Editorial, 2001.

Lejeune, Philippe. “Definir autobiografia”, Autobiografia. Auto-representação. Organização de Paula Morão. Lisboa: Colibri, 2003: 37-54.

Lejeune, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à internet. Org. Jovita Maria Gerheim Noronha. Belo Horizonte: UFMG, 2008.

Lyons, Martin e Cyana Leahy. A palavra impressa: histórias da leitura no século XIX, Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 1999.

Perrot, Michelle, Minha História das Mulheres.São Paulo: Contexto, 2008.

Ventura, António.“Literatura autobiográfica em Portugal: algumas reflexões a partir da História”. ACT 16: Escrever a vida: verdade e ficção. Orgs. Paula Mourão e Carina Infante. Porto: Campos das Letras, 2008: 31-40.

 

Notas

[1] Sobre a epistolografia de Florbela de 1930, é importante assinalar a correspondência entre Florbela e Battelli, professor italiano, que lecionou em Coimbra, e que se interessou pela poesia de Florbela, entrado em contato com a poetisa por correspondência, e oferecendo-se, a posteriori, a publicar um livro seu, o póstumo Charneca em Flor (1931). Fora a considerável correspondência com Battelli, também encontra-se correspondência de Florbela com o seu pai, o seu afilhado, Túlio Espanca, o amigo Alfredo e sua esposa Helena, e José Emídio Amaro. Conta-se com 38 peças epistolográficas deste ano.

[2] As datas aparecerão no formato DIA/MÊS/ANO, obedecendo ao formato em que foi escrito por Florbela Espanca, em Portugal, e depois publicadas.

[3] Todos os excertos do Diário aqui utilizados são da publicação organizada por Maria Lúcia Dal Farra: Espanca, Florbela. Afinado Desconcerto: contos, cartas, diário. Organização de Maria Lúcia Dal Farra. São Paulo: Iluminuras, 2002. Daqui em diante, referir-se-á apenas à data de entrada do Diário e à data no cabeçalho das Cartas, visto que é desta forma que se encontra na presente edição.

 

 

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