OS NOSSOS QUINTAIS E A POESIA DE NARLAN MATOS EM ELEGIA AO NOVO MUNDO E OUTROS POEMAS

Adenilson Barros Albuquerque
Colégio Estadual João Arnaldo Ritt

 
 
O livro Elegia ao Novo Mundo e outros poemas, publicado em 2012, de Narlan Matos, é antes de tudo uma reverência à palavra e às sensações do homem – observador constante – em seus mundos. Estes também os nossos que compartilhamos em momentos reais ou imaginados, porém nem sempre contemplados com a astúcia do registro poético e sensível de um grande escritor. Nos poemas que compõem as três primeiras partes dessa obra, respectivamente intituladas NOVI ORBIS, BRASILIANAS e DE-LÍRIOS – há uma quarta denominada OUTROS em que aparece o texto em prosa sob o título Minha última encarnação, acompanhado do subtítulo: De meu encontro com Rimbaud no inferno –, deparamo-nos com abordagens poéticas sugestivas de universos que nos são apresentados a partir do olhar atento de quem cultiva suas vivências. Temos a impressão de que o eu lírico caminha por muitos quintais, de maneira que suas memórias e seus destinos dialogam com os momentos na infância, as experiências de um ser de sua cidade, de seu país e do mundo. Este último, especialmente o latino-americano.

Na primeira parte, NOVI ORBIS, o poeta brasileiro oferece quatorze poemas reveladores de perspectivas sobre o continente americano, até então pouco ou nada vislumbradas por escritores de nosso país. Há a representação crítica de vozes silenciadas em nossa história marcada por destruições, misturas e pelo discurso unilateral dos dominadores no decorrer dos séculos. Nesses poemas, notamos aspectos que ajudam o leitor a se perguntar sobre a história, sobre as mazelas, a hibridização e também sobre as belezas de um continente ainda não desvelado, à margem da educação de suas crianças, jovens e até professores que normalmente aprendem e ensinam culturas estranhas em detrimento das nossas. Componentes essenciais das culturas e da história americanas, aquelas que não aprecem na televisão, nos livros, nos colégios, etc., de maneira séria, avultam em poemas que, sobre a as bases da América Latina e dos latino-americanos em especial, questionam e respondem – Elegia ao novo Mundo; agradecem – América; têm consciência de seu lugar (ou não-lugar) e de sua condição ricamente impura – Latinamerica; exigem o reencontro com suas memórias e ratificam a palavra como sua perpetuadora – Civilizações ágrafas; alertam para as nossas cegueiras – As crianças da noite; sonham com a possibilidade de mudanças – América austral; reverenciam nossas características mágicas – Luar de Havana. É importante lembrar que esses exemplos dados acima estão à guisa de uma perigosa didatização. Pelas páginas que propomos e pela incompetência do autor das mesmas, muitas outras problemáticas que emanam nesses e noutros poemas ficarão de fora.

Na segunda parte, BRASILIANAS, composta por dez poemas, o direcionamento, que arriscaríamos designar como continental na anterior NOVI ORBIS, volta-se a um contexto que, por alusões diretas e indiretas, está de acordo com as idiossincrasias do país e do ser brasileiros, com os envolvimentos pessoais da voz poética enunciadora. O eu lírico, brasileiro confesso no poema Inquérito, consciente do “nós” e do “todos”, o “eu que sonha”, também está atento às especificidades e às resignações históricas desse país em O país crônico. Pincela nossa regionalidade festiva em Circo de touros do oeste, nossa diversidade plural em A festa de São João. Deste quintal país, o eu lírico caminha pelos seus quintais inapagáveis da sua memória, por exemplo, em A Via Crucis, em A casa paterna, em Cirandas ou em Oratórios. Nessas duas primeiras partes, o contextual geográfico, histórico, mítico, cultural, social, político, entre outros adjetivos que tiveram e têm conformações singulares no surgir desse Novo Mundo desde a primeira visita colombiana em 1492, está intrinsecamente envolvido ao individual. O eu lírico herdeiro, consciente de seu passado e de seu presente, numa relação indelével consigo e com os seus, desdobra-se em versos sonoros e ritmados, num desejo de fazer-se compreender.

Na terceira parte, DE-LÍRIOS, construída com vinte e quatro poemas, o quintal predominante é o das sensações. As memórias e as observações do eu lírico passeiam pelas belezas das cores, dos sabores, dos aromas, das visões. Flores, frutas, astros são recorrentes em versos que transpiram ares de contemplação, contudo, cientes dos males, dos perigos que nos rodeiam. Alguns títulos como Cerejas orvalhadas, Orquídeas e Estrelas equatoriais são sintomáticos do que expomos acima. Aspectos relativos à memória, marcantes em muitos poemas e sobre os quais discorreremos mais adiante aparecem, por exemplo, em De volta à praia. Outra discussão interessante, nesta a própria palavra é a protagonista, está posta nos poemas Glossário e Gênesis.

Pelo tema destoar dos nossos conhecimentos e suposições teóricas, não será analisado aqui o texto em prosa da quarta e última parte de Elegia ao Novo Mundo e outros poemas. Sob a mesma justificativa, como é notório em todo comentário carregado de reduções como o que propomos, várias abordagens que os poemas desse livro suscitam e merecem estudos mais atentos, ficarão de fora. Esclarecido isso, antes de seguirmos com as leituras específicas dos poemas, façamos algumas considerações relacionadas ao que nos norteia teoricamente sobre o discurso (principalmente literário) latino-americano.

A postura hegemônica dos conceitos sobre as artes produzidas em alguns países da Europa Ocidental e, a partir de sua evidência mundial, nos Estados Unidos da América, prevaleceu, e ainda prevalece nas posturas tradicionalistas, até meados do século XX em detrimento das expressões oriundas do chamado terceiro mundo. Em se tratando da arte literária, entretanto, vem ocorrendo desde os anos de 1970 consideráveis transformações. Elas podem ser sintetizadas, “[…] sem riscos de reducionismo, na passagem de um discurso coeso e unívoco, com forte propensão universalizante, para outro plural e descentrado” (Coutinho 31). No chamado boom da literatura latino-americana, muitas obras surgem com estruturas, linguagens e discursos cientes dessa condição plural e descentrada de um continente que historicamente negou sua condição híbrida para afirmar determinados estereótipos. Estes estão cada vez mais difíceis de serem sustentados quando o interlocutor é um cidadão/leitor que, antes de agir, descobriu que sua história esteve mascarada por interesses específicos, separatistas e, porque não, cegos.

Há poucas décadas, estava fora de cogitação, como bem lembra Silviano Santiago, permitir o bilinguismo, o pluralismo religioso, logo, toda manifestação literária não condizente com os padrões canônicos, numa situação em que o objetivo era a imposição do poder colonial e pós-colonial. Para o autor, “[…] na álgebra do conquistador, a unidade é a única medida que conta. Um só Deus, um só Rei, uma só Língua: o verdadeiro Deus, o verdadeiro Rei, a verdadeira Língua” (Santiago 14). Para quem busca conhecer um pouco das tradições culturais brasileiras, latino-americanas e de outros lugares onde homens e mulheres representantes de diferentes culturas se encontraram, não haverá, contudo, dificuldades de se perceber que, no meio desses povos, são muitos os deuses, os reis e as línguas. São mundos múltiplos e de múltiplas manifestações. Essas características na prática efervescentes no decorrer dos séculos, porém ocultadas pelos detentores das palavras oficiais, vieram e vêm à tona em grande medida a partir da literatura latino-americana difundida desde a segunda metade do século XX.

Também sob o impulso e a influência de correntes teóricas como o Desconstrucionismo, a Nova História, os Estudos Culturais e os Pós-Coloniais, publicaram-se obras cujas abordagens, antes silenciadas por serem taxadas de inferiores ou menores pelos discursos totalizadores e centralizadores do Primeiro Mundo, destacam não mais um discurso cultural de polos antagônicos, mas a sua condição híbrida, no limiar, da qual fazemos parte. Dessas abordagens apreendemos grande contribuição para o constante e interminável processo de (re)configuração e (re)interpretação das muitas identidades da América Latina e de outros lugares semelhantemente marcado pelos encontros.

Ao referir-se ao continente latino-americano em especial, Coutinho (42) ensina que ele deve ser encarado como uma construção problemática, móvel, plural e variada. Seus povos “[…] apresentam entre si diferenças em todos os aspectos de sua conformação – étnicos, culturais, sociais, econômicos, políticos, históricos e geográficos –, mas que ao mesmo tempo apresentam semelhanças significativas em todos esses mesmos traços, sobretudo quando se os compara com os de outros povos”. A semelhança mais evidente talvez esteja, por um lado, no caráter marginal atribuído a eles. Por outro lado, apesar das destruições inevitáveis, o que os une é o caráter transformador e criador de novos parâmetros e possibilidades.

Nessa direção, ao contrário dos “puristas” defensores de que a unidade como melhor e maior medida seria o ideal, Arturo Uslar Pietri sugere exatamente o oposto em texto cujo título é “Mestizaje y el Nuevo Mundo”. Para o crítico venezuelano, todas as civilizações surgidas na história da humanidade decorrem de grandes encontros de cultura. Os gregos, os romanos, figuras célebres como Abraão e Moisés também foram mestiços culturais.

Assim, pensando no caso da civilização latino-americana em geral e da brasileira em particular, torna-se impossível negar a evidência de que ela decorre dos encontros de uma gama considerável de culturas: o primeiro deles deu-se entre portugueses e os autóctones que já habitavam Pindorama muito antes de 1500. Sabe-se também que, por pelo menos três séculos, muitos africanos atravessaram o Atlântico para trabalharem em terras brasílicas de modo forçado. E, a partir de meados do século XIX, para essa mesma região, povos das mais variadas culturas iniciaram um processo intenso de imigração. (Albuquerque & Souza 1). Desses encontros, muitas vezes trágicos para um ou outro lado, outras configurações culturais, sociais, religiosas, etc., são gradativamente construídas. Para além das contribuições de cada parte envolvida, o todo novo aprece fortalecido por ser um híbrido.

Não se pode deixar de mencionar, entretanto, que muitas vezes esses encontros não se dão de forma amistosa. Culturas inteiras podem ser condenadas ao desaparecimento principalmente em conflitos bélicos. Pensemos nas civilizações pré-colombianas ou nos índios do Brasil. Estes, conforme Vainfas (37), que se contavam “na casa dos milhões de pessoas no limiar do século XVI, mal ultrapassa hoje os 300 mil indivíduos”. Os crimes étnicos contra os indígenas e a exploração igualmente criminosa contra os africanos são fatos cujo pagamento da dívida histórica não trará o elemento humano de volta. O que se pode fazer é difundir o reconhecimento, por meio da literatura ou quaisquer formas de discursos, de que na nossa civilização atual há uma quantidade inapagável de elementos, os mesmos que nos tornam vários em nossas identidades.

Pensar nas línguas, nas religiões, nas artes, entre outras áreas que instituíram a América Latina na civilização ocidental é o mesmo que pensar no “[…] movimento de desvio da norma, ativo e destruidor, que transfigura os elementos feitos e imutáveis que os europeus exportavam para o Novo Mundo” (Santiago 16). Por isso, em relação às contribuições externas e internas, “superiores” e “inferiores”, institucionalizadas e marginalizadas que se encontraram e se transformaram neste continente de maneira indissolúvel, configuraram-se modos de expressão que já não são nem completamente estrangeiros, nem puramente locais. O discurso latino-americano encontra-se num “entre-lugar” (Santiago 9-26). Este conceito atribuído ao problema literário – parece não ser desatino afirmar – reflete a condição cotidiana de nossas ações.

Mais do que trocar uma fórmula por outra, portanto, o que vem acontecendo, principalmente de quatro ou cinco décadas para cá, são quebras de barreiras. O que era antes tratado como insignificante, por não figurar na convencionada estrutura oficial, não pretende tomar o lugar dessa última, o que seria uma continuação do modelo com os papéis invertidos. Pelo contrário, a pluralidade cultural e discursiva do latino-americano exige ser encarada como elemento passível de análise, com aspectos positivos ou negativos – o que é sempre relativo –, igual a qualquer outro.

A diversidade latino-americana, elemento fundamental na configuração do continente e em grande medida presente na sua igualmente diversa expressão literária, encontra importante destaque no livro de Narlan Matos aqui em evidência. Sobre suas abordagens criticamente poéticas, para além das fronteiras temáticas do indivíduo e de seu país de origem, ainda sem paralelo entre os escritores brasileiros, teceremos alguns comentários a seguir.

Da primeira parte de Elegia ao Novo Mundo e outros poemas, escolhemos de maneira quase aleatória (porém pelo impacto já causado na primeira leitura) os poemas Elegia ao Novo Mundo, América, Latinamerica, As crianças da noite e America austral. Da segunda parte: Inquérito, A via crucis e Oratórios. Da terceira parte: A fruteira, Gênesis e Numa praia deserta da Califórnia.

No poema que abre o livro, Elegia ao novo mundo (Matos 17-8), deparamo-nos nos dois versos iniciais com um eu lírico que se dirige ao interlocutor/leitor (tu) referindo-se a um questionamento que parece ganhar real importância, desta vez, para as duas partes:

tu me perguntas meu amigo

onde eu estive durante o meu longo silêncio

[…]

A voz representativa dessa resposta pronunciada pelo eu lírico, conforme vamos conhecendo-a na sequência do poema, sabe de seus caminhos percorridos na história e dos quintais onde esteve nesse longo período de silêncio – muito mais um período silenciado por forças que somente agora permitem estas palavras virem à tona. O interlocutor (tu) pode ser comparado com a ainda pequena quantidade de interessados em conhecer nossa própria formação cultural (a latino-americana), os integrantes que a construíram. Durante séculos estivemos presos a convenções impostas por ideais estrangeiros detentores de discursos “unívocos e propagadores de verdades” que não permitiam aos seus “subalternos” sugerirem ideias ou costumes destoantes dos padrões estabelecidos.

As revelações sugeridas em Elegia ao Novo Mundo ajudam-nos a compreender o que se passou com componentes fundamentais desse continente, silenciados por tanto tempo e ainda tímidos nas mais diversas formas de comunicação, em grande medida devido à condição de seres “à margem”. Este poema, assim como outros do mesmo livro, faz parte das poucas expressões conscientes, todavia consistentes (de intelectuais ou não), sobre essas amarrações históricas cada vez mais evidentes aos interessados em saber sobre quem somos e de onde viemos.

As estrofes do poema, dez no total, dividem-se entre a repetição dos dois versos da pergunta inicial, uma de somente um verso e outras maiores em que as respostas são apresentadas pelo eu lírico. Obedecem a um estilo no qual quatro características se destacam em praticamente todos os poemas do livro: os versos livres; número muito reduzido dos sinais de pontuação; letras maiúsculas somente na primeira letra dos nomes próprios (início dos versos com minúscula); ritmo fluente e sonoro no uso meticuloso de assonâncias e aliterações.

Sobre os lugares onde esteve, a voz enunciadora do discurso menciona os canaviais, os navios negreiros mercantes, algumas regiões da África e das Américas. Lembra que no canavial – o mesmo que morria antes dos trinta, assim como os severinos de João Cabral –, foi com o seu sangue amargo que outras bocas se adocicaram. Denuncia que atearam fogo sobre o seu povo o qual teve suas lendas, costumes e forças apossados de maneira vil para que se desenhassem mapas noutros continentes. A estrofe de verso único dá conta dos algozes. Inspirada em Fernando Pessoa, reedita o poeta português trocando “lágrimas” por “genocídios”:

oh mar salgado, quanto de teu sal são genocídios de Portugal!

Muitos povos africanos ou os primeiros habitantes do que ficou conhecido, após 1492, como Novo Mundo, foram vitimados por esse genocídio inicialmente protagonizado pelos ibéricos. Nos anos de idas e vindas dos navios pelo Atlântico, as lágrimas de mães e noivas não estiveram presentes somente no choro do português. Muitos africanos choraram por seus filhos, maridos, irmãos, netos, etc. Mas tudo isso esteve ocultado durante seu longo silêncio. Muitos estiveram presos ou foram mortos pelo caminho, enquanto os que aqui chegaram e seus descendentes (misturando-se sexualmente e culturalmente com representantes de outras origens) estiveram espalhados por todo o continente.

Essas informações, grosseira e resumidamente apresentadas aqui, estão presentes, explícita e implicitamente, no poema. Este, finalizado com os seguintes versos:

[…]

tu me perguntas onde eu estive meu amigo

e somente agora posso quebrar meu silêncio:

eu estive comigo

Explorado sob o interesse exclusivo do lucro para uma minoria respaldada pelas armas e pelo discurso, o eu lírico de Elegia ao Novo Mundo representa com sua voz os seus antepassados numa resposta, ainda assim, justificada por palavras suscitadoras de outras questões: “somente agora posso quebrar meu silêncio”. Esta justificativa sugere, no mínimo, um momento diferente de nossa história, de novas possibilidades, novos olhares para fundamentos essenciais de nossa formação cultural, contudo silenciados até pouco tempo. Este integrante basilar de toda uma expressão continental tem nas expressões individuais ou coletivas, dos que sabem da dívida em relação aos nossos próprios pilares, veículo importante para se tornar visível em todas as suas dimensões. Narlan Matos, assim, revela-se um escritor consciente dessa noção crítica e possui a vantagem de poder externá-la num fazer poético significativo, para além dos padrões estabelecidos em séculos de domínios marcados.

No poema América (Matos 20-4), dedicado à Krista, temos a sensação de estarmos diante de uma homenagem ao continente, feita por uma voz poética representativa de um herdeiro dos próprios destruidores e destruídos que aqui se confrontaram. Apesar de todo um passado repleto de experiências conflitantes, a América se oferece como um lugar “sem rancores” que permite aos “seus filhos” crescerem e trabalharem sobre ele. Assim, “[…] deitado no colo terno da América” – estas são palavras do primeiro verso do poema –, o eu lírico informa sobre sua condição atual:

[…]

estou como o lírio puro prestes a florescer

percorro a pré-história de mim mesmo

percorro a história de teus rios de teus cumes

caminho por teus territórios sagrados

com meus pés descalços

por teus prados perfumados de menta

[…]

Mais de quinhentos anos de história decorridos desde os primeiros encontros entre autóctones e europeus no continente americano, verificamos, conforme os versos acima, uma voz ciente de que precisamos conhecer nossas raízes mais profundas, percorrer de pés descalços, sem os impedimentos de concepções pré-estabelecidas, os territórios sagrados desse lugar que é a nossa casa. O ser americano que realmente somos ainda está em processo de nascimento nos discursos oficiais. As explicações sobre nós mesmos são falsas ou incompletas. É preciso que se busque – e esse poema os apresenta – os países, as regiões e as particularidades extraordinárias da América. Isso tudo já é parte da formação da voz poética enunciadora que, numa descoberta constante de si mesma, sentencia:

[…]

esta noite, te oferto meus filhos e a

imortalidade do meu espírito.

Notamos nesses versos finais que, uma vez consciente de si e do seu lugar, apesar de ter entendido que o processo de nascimento é constante, o eu lírico, depois de instigantes contemplações nas estrofes anteriores, oferece seus “herdeiros” a um mundo em grande medida (re)descoberto. Entendemos daí que as gerações futuras já podem vislumbrar perspectivas diferentes, menos mentirosas, sobre quem são, onde estão e a quem representam neste continente diverso que comporta muitas misturas.

Em Latinamerica (Matos 25-6), constatamos a “descrição” em primeira pessoa de uma voz consciente de sua condição híbrida, de pertencer a uma história cujo fruto é o latino-americano. Eis os versos iniciais:

sou infecto

e estou cheio de impurezas

como meu povo

o povo que me povoa

de olfatos e memórias

de olvidos e quimeras

[…]

São as impurezas, as memórias, os esquecimentos, o maravilhoso, etc., integrantes básicos na formação das pessoas que puderam e podem conviver na América Latina. É impossível desvencilhar-nos de uma série de características que nos povoam mesmo que procuremos negá-las. Nesse poema, o eu lírico reconhece criticamente quem ele é espera “[…] a chuva que não lava/ a chuva que um dia resplandecerá em mim um dia límpido de maio”. Nestes versos que fecham o poema, temos a impressão de que o latino-americano espera ou simplesmente sabe que virá uma espécie de aceitação. Mas de maneira nenhuma está em busca da pureza, tão cara aos determinismos do século XIX e ainda conceito corrente em muitas posturas desinformadas nos dias atuais.

Em As crianças da noite (Matos 30-1), observação e denúncia se misturam ao enumerar vários abandonos, em muitos lugares: Rio de Janeiro, Jamaica, Cairo, Guatemala, Oriente Médio, etc.

[…]

eu vejo as crianças da noite

amamentadas por seios desnutridos, rotos, por seios frágeis de areia

amamentadas por um leite branco mas que não é de nuvens nem de leite

[…]

O leite dessas crianças não vem de suas mães felizes com os seus maridos e com a família unida, de suas escolas bem servidas de excelentes professores, de suas cidades, estados e países bem organizados de maneira a atender as necessidades básicas da população. O leite dessas crianças vem das ruas, mas não das ruas em que se joga futebol à tarde antes de cada um voltar às suas casas para tomar banho, jantar, fazer as lições e dormir numa cama confortável. O leite dessas crianças é a falta de boas perspectivas para o futuro, a comunidade abandonada pelos poderes públicos, os trabalhos forçados, os extremismos de grupos separatistas, os viadutos ou os litorais repletos de seres inconstantes, famintos, a espera do sono, do outro dia e da outra noite.

Este poema escrito para ser lido em volume alto e propagado a todos os ouvidos revela-nos no último verso uma sensibilidade incomum aos responsáveis pelas crianças de todos os continentes, direta ou indiretamente:

[…]

eu ouço o grito desesperado das crianças da noite

Eis aí, mais do que um exemplo, um convite para que ouçamo-lo todos.

Em América austral (Matos 34), apresenta-se um eu lírico que sonha com a possibilidade real de mudanças nas formas de pensar e atitudes das pessoas. Ao observar o firmamento como um espelho, interessa-lhe ver somente o que não vê. Deseja desenhar outros homens com a tinta das estrelas. Nessa perspectiva, as duas estrofes seguintes fecham o poema:

[…]

vou dormir sonhando que a humanidade

liberte o pássaro azul da manhã

dos braços da escuridão

nesta noite da América austral

escrevo outro homem com a tinta das estrelas

Esta expectativa de que a humanidade reveja os dias sem as correntes da escuridão dá ao poema uma postura ideal, porém não menos atenta, principalmente na constatação de que se dormirá sonhando sem os resultados concretos das mudanças sonhadas. Dessa maneira, os poemas sobre os quais discorremos brevemente até o presente momento, assim como os outros pertencentes à primeira parte do livro – NOVI ORBIS – apresentam vozes poéticas conhecedoras profundas de aspectos fundamentais da construção sócio-histórica americana. Vários elementos deste continente, milenar por um lado, mas um novi orbis por outro, em formação a pouco mais de cinco séculos, avultam numa poesia que, indubitavelmente, tem muito mais a revelar do que as palavras que limitamo-nos a escrever até aqui.

O poema inaugural da segunda parte do livro – BRASILIANAS – é Inquérito (Matos 41-2). A voz que transitava pela América e pelo mundo na primeira parte, agora se volta de maneira especial a características do Brasil, em todo caso, também relacionáveis com outros lugares, pelas semelhanças. De modo especial, alguns poemas apresentam lugares e momentos caros ao passado revelado pelo eu lírico.

Em Inquérito, a voz poética enunciadora consciente de si, do “nós” e do “todo”, denuncia e sonha. Eis a primeira estrofe do poema:

eu, brasileiro confesso

com carteira de identidade, código de pessoa física e passaporte

confesso nossos esgotos a céu aberto nossas epidemias nossa febre

amarela

delato meu povo minha sífilis nosso pus

[…]

Ao contrário de muitos analistas, críticos, estudiosos, que apenas veem as questões problemáticas “de cima”, sem envolverem-se como parte dos mesmos problemas, notamos nesse poema, já de início, a voz enunciadora sob o pronome pessoal na primeira pessoa do singular. Antes de expor sua postura sobre a temática que irá discorrer, esclarece sua identidade ainda no primeiro verso e no seguinte. Elenca vários aspectos vergonhosos deste país comparando-os com nossas doenças existentes em muitos momentos de nossa história. Depõe contra as misérias e as injustiças, o senso comum refém de práticas culturais que paralisam a população. Sugere que sejam extirpadas as influências podres e que nomes e eventos importantes como Zumbi do Palmares, a Revolução Praieira e Antônio Conselheiro, todavia desconhecidos em sua real grandeza, sejam anunciados ao povo.

Na estrofe final, apresenta a certeza e o caminho para o país que quer e sonha:

[…]

e sei que o país que quero e sonho não chegará de repente

pela internet nem pelas televisões a cabo

o país que quero e sonho só florirá se as mãos de meu povo se derem

ao plantio

se sua labuta seu dia for ao verde de si mesmo de sua ventura

o país que sonho só virá

só jorrará

de dentro do fundo de todos nós,

(onde repousa)

todos nós,

brasileiros confessos.

Está evidente nesses versos que grandes novidades propagadas como internet e televisão a cabo não são as peças fundamentais para mudanças profícuas e generalizadas na sociedade brasileira. As revoluções educacional, cultural e política não estão do lado de fora. Elas são pessoais e gradativamente coletivas. O povo precisa ir junto à labuta sabendo que o país dos sonhos só acontecerá se, antes de tudo, as verdadeiras mudanças surgirem de dentro de nós, como o eu lírico, brasileiros confessos. Temos nesse poema um grito acompanhado de uma solução, os dois fundamentados em sólidos conhecimentos dos muitos lados de nossa história, uns mais outros menos difundidos.

Em A via crucis (Matos 48-9), notamos o retorno que e eu lírico faz à sua casa, aos momentos de sua infância. A saudade, para além da evocação, é necessária e indelével. Muitos nomes da poesia, da música, etc., cantaram suas primeiras experiências, aquelas que ficam para não mais se apagar. Nesse poema, o “voltar” acontece muito tempo após a partida. As características dos tempos passados permanecem quase que intocáveis: mesmas curvas, mesmos casebres, mesmas serras, mesma rua, mesmo casarão… Somente o velho posto da estrada de ferro foi derrubado. Na derradeira estrofe, uma confissão:

[…]

as ruas onde cresci

as árvores onde subi

sabem quem eu sou

sabem quem eu fui

na estrada que me leva

de volta para casa

não há como fugir de mim

A estrada que nos leva de volta para casa parece estar a todo tempo como uma opção em nossos caminhos. O retorno, físico ou somente pelas lembranças, não é inconstante àqueles que têm relações fortes com o lugar onde passou seus primeiros anos. Por isso o último verso, “não há como fugir de mim”. Apesar das experiências as mais variadas que se têm em outras regiões, em outras culturas diferentes da estrutura construída nos lugares da infância, as bases de nossa identidade, mesmo estando esta em constante construção, já foram definidas.

Em Oratórios (Matos 54-5), deparamo-nos com a voz poética de quem viajou por muitos lugares e, de alguma dessas paragens, se lembra de imagens pessoais em sua terra natal, no caso do poema, Itaquara, a mesma do poeta Narlan Matos. O tom saudosista se desenvolve nas lembranças da casa paterna, a casa de praia e as casas onde brincava na infância. O sentido visual é acompanhado agora do olfato quando recorda do aroma do café preto e de ruas fétidas. Os oratórios da infância vêm à memória a partir de velas de santos como as que o eu lírico menciona no momento da enunciação do poema. O passado – que no poema anterior vinha pelas estradas – agora chega pelas nuvens:

[…]

nuvens na manhã clara

quiçá vieram do México, de Aruba

ou das Guianas ou da Argentina

ou descobriram a beleza de Belize

mas estas nuvens não me enganam

estas nuvens nesta manhã clara

vieram de Itaquara

As “nuvens na manhã clara” são o verso que inicia cada uma das quatro estrofes do poema. Elas invadem a inspiração da voz poética na (re)vivência de momentos pertencentes a um passado distante. Este, contudo, próximo das imagens e dos eventos em Itaquara. Por isso a constatação, na última estrofe, de que as nuvens que trazem as lembranças enunciadas não vêm dos tantos outros lugares percorridos: México, Aruba, Guianas, Argentina ou Belize. Elas não deixam espaço para erros. Revelam textura e endereço certos.

Entre os poemas da terceira parte – DE-LÍRIOS –, A fruteira (Matos 72), entre outros poemas, apresenta uma postura voltada mais à expressão dos sentidos com que o eu lírico dimensiona vivências cotidianas. Nesta parte do livro, verificamos, também, buscas das significações sugeridas nas imagens de frutas, flores, cores, sabores, aromas, enfim, de palavras representativas. Em A fruteira o eu lírico destaca as frutas que o observam “de dentro de seu silêncio sóbrio”. Ele questiona este silêncio e sugere comparações, além da feita em relação a uma lagarta deitada sob o sol:

[…]

as bananas amadurecem inamovíveis

como as palavras amadurecem no dicionário

de dentro do verde vejo o amarelo nascendo

como nasce o sol numa manhã clara

anunciando o grande mistério do universo

Neste poema repleto de leituras possíveis, como todos os outros, destacamos a sensibilidade poética de se perceber nas situações aparentemente mais simples e sem importância, motivos de relações palpáveis com os “mistérios do universo”, da vida. A observação do poeta nos leva a direcionar a atenção para as pequenas coisas, eloquentes na sua condição estática, porém vivas na passagem do tempo. O sol que anuncia os grandes mistérios, de tão distante e inatingível, ilumina as bananas na fruteira e as palavras no dicionário. Elas, manhã após manhã, e em constantes modificações físicas e semânticas, traduzem as comunicações mais elementares do grande astro. São raros os olhos que enxergam tais fenômenos e os relacionam com o movimento circular das existências.

No poema Gênesis (Matos 77), a voz poética sugere outra gênese para o mundo porque a que tivemos não resultou em bons frutos. Também pela palavra, assim como o verbo no texto bíblico, busca revolucionar as artes sugerindo aos artistas imagens que merecem destaque; propõe novos discursos para os homens no mundo e novas explicações para os seus mistérios. As fragilidades sob opressões implacáveis desapareceriam.

[…]

eu mesmo plantarei a palavra que mudará o mundo

que florescerá o sândalo a mirra verde e a sarça

quero erguer uma catedral ante o jardim dos sonhos

por isso mesmo sonharei outro homem para o homem

não quero mais este sol se pondo sobre nossas almas

e este arco-íris cor de sangue montando guarda sobre a tarde.

Nas quatro estrofes do poema, em todos os primeiros versos se destaca o termo “palavra” como algo a ser realizado por uma primeira pessoa disposta a construir a nova gênese. Isso evidencia o desconforto e a consciência do eu lírico em relação às existências do homem e do mundo as quais são possíveis somente pelo intermédio da palavra. Não é a reconfiguração física das coisas que está ameaçada pela decidida empreitada proposta no poema. São os signos – significantes e significados – que estão em jogo. No sonho de outro homem para o homem, a palavra é quem muda o mundo. A catedral, o sol, o arco-íris, assim como toda concepção que deva ser revista, tem unicamente nas palavras o caminho definitivo para a revolução das representatividades.

Sobre Numa praia deserta da Califórnia (Matos 85), poema que aqui transcrevemos integralmente, parece-nos possível sugerir uma síntese das leituras que vimos realizando até aqui a partir dos outros poemas.

um homem nada mais é

que um rochedo à espera do amanhecer

por isso vêm os pássaros os narcisos selvagens

as ondas do mar

para que nem tudo pareça imóvel

para que o dia não seja tão infindo

quanto a eternidade por detrás das falésias

enquanto isso o tempo esse escultor sem mãos

com a paciência de um oleiro

nos estuda nos esquadrinha nos esculpe

nos liberta da pedra bruta de nós mesmos

Nestes versos, o eu lírico apresenta-se como um observador de si e dos eventos que o rodeiam. Informa que está numa praia da Califórnia. Mas se o compreendermos como representante da mesma voz que transita por todos os poemas anteriores, não seria descabido afirmar que, neste poema em questão, ele é um estrangeiro que já passou por muitos lugares e experiências. Agora, nessa praia, compara o homem, ou a condição humana, com o rochedo a espera dos movimentos do dia e dos elementos que o povoam. Compreende o tempo como o grande escultor, o único capaz de nos libertar de nós mesmos. É na passagem do tempo que nossos olhares se modificam, nossos preconceitos se dissipam ou se condensam, as palavras se apresentam sob novos significados sobre a história, a memória e a relação cotidiana com as coisas que decidimos observar. Em Numa praia deserta da Califórnia, os quintais percorridos pela voz poética em NOVI ORBIS, BRASILIANAS e DE-LÍRIOS estão traduzidos em versos de quem descobriu a importância vital dos ensinamentos do tempo àqueles dispostos a encará-lo nos ângulos possíveis.

Elegia ao Novo Mundo e outros poemas demonstra que a relação de Narlan Matos com os seus quintais não é egoísta. Em cada poema, percebemos algo como o reconhecimento das experiências tidas no agradecimento ao que observou e considera responsável por sua formação. O olhar crítico e o tom de denúncia estão em muitos poemas, antes de tudo, poéticos. A literatura brasileira, portanto, tem nesse poeta uma representatividade dos temas do Novo Mundo, ainda obscuro sob muitos aspectos devido às limitações impostas pelos discursos unívocos correntes até poucas décadas e ainda fortes nos escritores aprisionados a tradicionalismos. Desinformados – talvez erroneamente envergonhados – sobre seu entre-lugar extraordinariamente plural neste continente amordaçado durante séculos.
 
 
Bibliografia

Albuquerque, Adenilson B. & Souza, Wagner de. Tupi or not tupi: eis a questão. 14ª JELL: ‘As Línguas em Diálogo: Desafios e Perspectivas na Atualidade’. Unioeste/Marechal Cândido Rondon, 2011.

Coutinho, Eduardo. Literatura Comparada na América Latina: ensaios. Rio de Janeiro, RJ: EdUERJ, 2003.

Matos, Narlan. Elegia ao Novo Mundo e outros poemas. Rio de Janeiro: 7Letras, 2012.

Santiago, Silviano. Uma literatura nos trópicos: ensaios sobre dependência cultural. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.

Uslar Pietri, Arturo. El mestizaje y el Nuevo Mundo. In. Cuarenta ensayos. Caracas: Monte Ávila, 1990.

Vaifans, Ronaldo. História indígena: 500 anos de despovoamento. In: IBGE. Brasil: 500 anos de povoamento. Rio de Janeiro, 2000.

 
 

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