CONTEMPLAÇÃO E POESIA EM O CÃO SEM PLUMAS

Maria de Fátima Gonçalves Lima
Pontifícia Universidade Católica de Goiás
 
 
O discurso do rio constitui a matéria objetivada em O Cão Sem Plumas de João Cabral de Melo Neto.  O eu poético, ao descrever o rio, apresenta imagens como se estivesse de posse de uma lente ou de um instrumento óptico voltado para o objeto da observação. Nessas imagens, as formas são oferecidas cinematograficamente, uma vez que a capacidade da informação visual é muito mais ampla do que aquelas transmitidas ou assimiladas pelos outros sentidos.

O poético, em O cão Sem Plumas, é  revelado  por um sistema de leitura visual da forma do objeto por meio de semelhança, simetria e contrastes: movimento versus passividade e ritmo.

O poema formado por quatro blocos ou partes apresenta as duas primeiras com a mesma denominação: “Paisagem do Capibaribe”; a terceira traz o título de “Fábula do Capibaribe” e a última, “Discurso do Capibaribe”. A primeira é constituída por 15 cenas ou quadros, a segunda por 13, a penúltima por 14 e o último conjunto de imagens possui 9 cenas.

Descortinando as cenas iniciais da paisagem do Capibaribe  aparecem analogias que visualizam as relações de semelhança entre coisas que têm alguns traços em comum – o contraste passividade versus movimento:

A cidade é passada pelo rio
como uma rua
é passada por um cachorro
uma fruta
por uma espada.
(Melo Neto, J. C., 105)

Os objetos observados virtualmente: cidade, rua e fruta representam a passividade, definida como o estado natural de um ser que sofre uma ação sem reagir, que é inerte e submisso, que não toma parte ativa e não exerce ação. Do outro lado, o rio, o cão a espada simbolizam o contraste por movimento, que cria a sensação de mobilidade e rapidez. As sensações de movimento são acontecimentos que se dão em sequência, por meio  de estimulações momentâneas, registrando uma mudança do estado estático. Nesse aspecto, as palavras cidaderua e  fruta figuram aquele ambiente de aparência inerte e sem muita vida. O movimento inerente ao riocão e espada vivifica a paisagem, acionando o discurso do seu conteúdo imaginal. De acordo com Susanne Langer:

Aquilo que chamamos de movimento na arte não é necessariamente mudança de lugar, mas é a mudança tornada perceptível, isto é, imaginável, de alguma maneira. Qualquer coisa que simbolize a mudança de modo que a nós nos pareça está-la observando, é o que os artistas, com mais intuição do que convenção, chamam elemento “dinâmico” (Langer 70).

A dinâmica é uma ilusão e uma forma de dar vida e sentidos a uma realidade estática. O movimento atrai a visão para a superfície que ele adorna. Diante do que foi apresentado, o rio, o cão e a espada vão compor um artifício visual para expressarem com certa “estranheza”, “transparência”, ou, ainda, “autonomia”, um ambiente mundano. Para criar a impressão de “alteridade” diante da realidade, o eu lírico registra imagens marcadas por um ar de ilusão, como se estivesse entre o sonho e a realidade.

O discurso do eu poético apresenta sua visão sobre a cidade e o rio, numa posição de quem sobrevoa aquele espaço geográfico e, de cima, vê as imagens. A visão se consubstancia numa imaginação formal na qual, a cidade, a rua e fruta (símbolos referentes a elementos estáticos) são passados pelo rio cachorroespada, (símbolos referentes a elementos dinâmicos), obedecendo a um estado contíguo, numa proximidade imediata e uma vizinhança sêmica e proporcional. A cidade(dimensão maior) é passada pelo rio (dimensão maior); a rua (dimensão média) é passada por um cachorro (dimensão média); a fruta (dimensão menor) é passada por uma espada (dimensão menor).

Maria Lúcia Pinheiro Sampaio, em seu estudo sobre os Processos retóricos na obra de João Cabral de Melo Neto (1978), tendo como suporte uma terminologia e uma conceituação adquirida na abordagem da Linguística, faz uma explanação sobre os principais recursos retóricos utilizados por Cabral. Seu trabalho, estruturado em três partes, acompanha a classificação das figuras confiada ao Grupo de Liège. Na parte, nomeada por metassememas, a autora explicitou vários estilos de metáforas, a prosopopéia, a imagem e o símile. Embora a proposta deste estudo não seja necessariamente a análise dos processos retóricos, nesta investigação sobre o objeto do olhar em O Cão Sem Plumas, serão valorizados alguns procedimentos de construção da metáfora que dão suporte à imaginação formal.

Este processo conduz ao exame do próprio conceito da metáfora do grupo de Liège, citado por Maria Lúcia Pinheiro que parte das teorias de Pottier e Greimas para conceituar a metáfora como uma alteração do conteúdo sêmico e não uma simples substituição de sentido. Esta modificação resulta da conjunção de duas operações básicas: adição e supressão de semas. Destarte, a metáfora é composta por um termo de partida (R), um de chegada (E) e um intermediário (C, H e F) que marca a interseção entre os dois termos. No poema em análise, esse procedimento metafórico pode ser esquematizado da seguinte forma:

 

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O rio é o primeiro comparativo dessa travessia, logo é o ponto de partida (R); a espada aparece na última comparação, é o termo de chegada (E); entre comparação da passagem do rio e a passagem da espada por dentro da fruta, um cachorro (cão) (homem) passam pela rua. Neste centro de convergência, na passagem do meio, mora a metáfora. Desta maneira, o cachorro que, ao mesmo tempo, reproduz a ideia do rio e do homem, retrata também a imagem da espada que corta e fere mortalmente, descortinando aquela matéria/ objeto do olhar dos donos do poder. Essa intrincada construção imagética representa a metáfora e a imaginação formal que, alquimicamente, na ótica do poético, funde os semas do rio, ao cachorro, ao homem, à espada, ao discurso, ao olhar de quem tem sensibilidade.

Por conseguinte, entre o rio e a espada está a metáfora, isto é, todas as semias do cão sem plumas e suas alusões, trazidas pelos símiles:

O rio ora lembrava
a língua mansa de um cão,
ora o ventre triste de um cão,
ora o outro rio
de aquoso pano sujo
dos olhos de um cão.

Aquele rio
era como um cão sem plumas.
Nada sabia da chuva azul,
da fonte cor-de-rosa,
da água do copo de água,
(Melo Neto, J. C., 105)

Este comportamento metafórico exercitado nessa construção literária denomina-se metáfora in absentia. Tal designação é motivada pelo fato de aparecer afastando do correspondente, no código, o termo substituinte ou irreal, isto é, aquele que sofreu modificações na estrutura sêmica. Essa metáfora é chamada também de “pura” ou “de primeiro grau”, ou ainda a verdadeira. Assim, seguem-se as teorias do grupo de Liège, quando este teórico garante que “uma metáfora, por exemplo, somente é percebida como metáfora, quando ela remete ao mesmo tempo ao sentido próprio e ao sentido figurado e,  portanto,  é realmente a relação norma-desvio que constitui o fato de estilo e não o desvio como tal.” (Dubois, J. et alii 22).  Sobre a redução desse desvio Jean Cohen nos lembra que:

A metáfora não é o desvio, mas surge da redução deste. A norma e a redução do desvio se situam no plano paradigmático, ao passo que o desvio em si está no plano sintagmático. A impertinência de sentido criada pela metáfora é uma violação do código, que resolve esse impasse, reduzindo a impertinência e se reestruturando, ao aceitar que o lexema provocador do desvio modifique sua estrutura semântica, passando do sentido próprio (dado pelo código) ao sentido figurado (criado pelo autor). (Cohen 127)

Partindo dos preceitos apresentados sobre a metáfora, pode-se afirmar que o rio Capibaribe, pela relação analógica dos traços comuns entre um pobre animal, lembra a língua mansa, o ventre triste, os olhos de um cão sem plumas, que “nada sabia da chuva azul, / da fonte cor-de-rosa, / da água do copo de água / da água do cântaro / dos peixes de água, / da brisa na água” (Melo Neto, J. C., 105) ou ainda, um indivíduo que foi zoomorfizado, niilizado, que perdeu a essência:

Entre a paisagem
(fluía)
de homens plantados na lama;
(…)

Como o rio
aqueles homens
são como cães sem plumas
(um cão sem plumas
é mais que um cão saqueado;
é mais
que um cão assassinado.
(…)

Mas ele conhecia melhor
os homens sem pluma.
Estes
secam
ainda mais além
de sua caliça extrema;
ainda mais além
de sua palha;
mais além
da palha de seu chapéu;
mais além
até
da camisa que não têm;
muito mais além do nome
mesmo escrito na folha
do papel mais seco.
(Melo Neto, J. C., 109/110)

O termo rio foi modificado in absentia, baseado na semelhança dos semas conotativos entre o termo modificado e o substituído: Aquele rio / (…) Sabia dos caranguejos / de lodo e ferrugem. / Sabia da lama / como de uma mucosa. / Devia saber dos polvos. / Sabia seguramente / da mulher febril que habita as ostras (Melo Neto 105). Na redução do desvio, o termo substituinte sofre supressão de quase todos os seus semas nucleares, substituindo-os pelos semas do termo substituído. Temos, portanto, de um lado – o rio; do outro, a espada e, no centro, o cão sem plumas – o homem –, que é ao mesmo tempo, o rio e a fruta.

O rio corta uma paisagem que, no poema, é representada pelas partes Paisagem do Capibaribe I e Paisagem do Capibaribe II.  Depois, tem a “Fábula do Capibaribe” na qual se observa a cena que a cidade é fecundada / por aquela espada (Melo Neto 111). Em seguida, “O discurso do Capibaribe” evidencia os estados de consciência ou movimentos interiores daquela metáfora viva que pode ser reconhecida inicialmente pela visualização do seguinte quadro:

A norma (plano paradigmático) – no nível do código

 

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A redução do desvio (plano paradigmático): A metáfora

 

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Essa mudança de sentido ou redução do desvio, no qual se restitui à figura sua unidade profunda, se consubstancia na imagem de um cão sem plumas, porque no plano paradigmático os semas nucleares aludem para uma paisagem, uma fábula e um discurso e, concomitantemente, os semas conotativos conduzem para significações que encaminham para o despojamento, a miséria, a pobreza, a fidelidade, propriedades inerentes a um animal dessa estirpe.

Entre os semas nucleares e os conotativos, o cão expressa a essência daquele ser que desconhece o que há de belo ou bom na natureza, “como chuva azul ou a fonte-cor-de-rosa” (Melo Neto 105). Somente “sabe do mundo cão dos caranguejos / de lodo e ferrugem” (Ibidem 105), por exemplo. O cão sem plumasexpressa a forma daquele mundo que:

Abre-se em flores
pobres e negras
como negros.
abre-se numa flora
suja e mais mendiga
como os mendigos negros.
Abre-se em mangues
de folhas duras e crespas
como um negro.
(Melo Neto, J. C., 106)

A forma aqui assenta o significado que Bergson conferiu a essa palavra, o de “um instante de uma transição”, ou seja, uma espécie de imagem intermediária da qual se aproximam as imagens reais em sua mudança e que é pressuposta como “a essência das coisas”. Nicola Abbagnano (1999) a respeito dessa concepção de forma acrescenta que esse raciocínio de Bergson

 aproxima-se do sentido com que essa palavra é usada por Hegel, como” “totalidade das determinações”, que é a essência no seu manifestar-se como fenômeno (Enc., § 129). Nesse sentido, forma é o modo de manifestar-se da essência ou substância de uma coisa, na medida em que esse modo de manifestar-se coincide com a própria essência”.
(Abbagnano  469).

As formas da paisagem do Capibaribe foram abstraídas e liberadas de seus usos comuns para serem colocadas em novos usos. Agora agem como símbolos, tornam-se expressivas ao sentimento humano. A primeira paisagem levanta a bandeira do social; a segunda e terceira partes trazem a insígnia do histórico – social e a última, do discurso do rio e da poesia. Como numa representação dos quatro pontos cardeais ou dos quatro elementos do mundo, o quaternário marca o espaço e o tempo daquele objeto do olhar: visto, alegoricamente, de ótica de um sentimento animado por um mamífero quadrúpede, carnívoro, domesticado, desprezado, um pobre diabo, um cão sem adorno, reduzido ao nada, aniquilado, absolutamente descrente.

O vocábulopluma inicialmente significa adorno de aves, mas possui denotativamente outros significados: pena de escrever, flâmula, cabos náuticos, macio ou fofo, algodão. No plano conotativo, entre os vários sentidos, pluma significa riqueza, calor, presença; “sem plumas” representa ausência, exclusão, falta, privação, niilismo, negação (de calor, de humanidade, de riqueza). Na redução do desvio, o termo substituinte tomou a forma da estrutura física de uma paisagem marcada por miséria, lodo, lama e dor de um ser que perdeu sua essência, que foi esfacelado pelos desacertos do mundo. Essa situação trágica transforma-se em uma narração imaginária e artificiosa sobre a cidade, para pôr à vista o próprio discurso e o ser do rio.

Conforme o exposto, O Cão Sem Plumas tem essa função de transmitir a forma, a essência ou substância daquele universo do rio Capibaribe. Em toda a primeira parte da paisagem I, essa forma é reiterada sob a égide do social e existencial do rio como expõem, por exemplo, as seguintes imagens:

Liso como o ventre
de uma cadela fecunda
o rio cresce
sem nunca explodir.
Tem, o rio,
um parto fluente e invertebrado
como o de uma cadela.
(…)

Como às vezes
passa com os cães,
parecia o rio estagnar-se.
Suas águas fluíam então
mais densas e mornas,
fluíam como as ondas
densas e mornas
de uma cobra.
(Melo Neto, J. C., 106)

O aspecto social, o espaço físico e ontológico do presente são mesclados ao passado histórico do rio:

Ele tinha algo, então,
da estagnação de um louco.
algo da estagnação
do hospital, da penitenciária
dos asilos, da vida suja e abafada/
(de roupa suja e abafada)
por aonde se veio arrastando.

Algo da estagnação
dos palácios cariados,
comidos
de mofo e erva-de-passarinho.
Algo de estagnação
das árvores obesas
pingando os mil açucares
das salas de jantar pernambucana
por onde veio arrastando.

(É nelas,
mas de costas para o rio,
que “as grandes famílias espirituais” da cidade
chocam seus ovos gordos
de sua prosa./…).
(Melo Neto, J. C., 107)

Aqui estão reiterados os aspectos da negatividade que não aparecem explicitados na história dos cartões postais ou guias turísticos. Este rio representa uma realidade velada, que não interessa às salas de jantar “pernambucanas/ (…) às grandes famílias espirituais” (Ibidem  107), como ironicamente foi exposta.

Na “Paisagem do Capibaribe II”, o elemento humano é fundido ao rio e ao cão. Aliás, o cão é metáfora do homem que, desprovido de ser e linguagem, tornou-se o objeto do olhar do eu poético. E, nesse conjunto ritmo e imagético da “paisagem de anfíbios / de lama e lama” (Ibidem 108), cada verso flui como as águas pesadas do rio, como o andar dolorido do cão, refletido a cada passo, em cada ritmo de reiteração cheia, de intensidade e desvios. Os versos vão ora oscilando, ora fazendo uma parada num momento de reflexão, obrigando o pensamento a voltar sobre si mesmo para examinar o seu próprio conteúdo:

Como o rio
aqueles homens
são como cães sem plumas
(um cão sem plumas
é mais que um cão saqueado;
é mais
que um cão assassinado.

Um cão sem plumas
é quando uma árvore sem voz.
É quando de um pássaro
suas raízes no ar.
É quando a alguma coisa
roem tão fundo
até o que não tem).
(Melo Neto, J. C., 108)

A repetição das fatídicas assertivas produz uma carga de intensidade e dor e, segundo Cohen (1987), “soa como um dobre a finados” (Cohen 211). Entre o silêncio de um verso e outro, entre uma estrofe e outra, as imagens do rio, do cão, do homem, da fruta e da espada se misturam na “paisagem do rio / difícil é saber / onde começa o rio; / onde a lama/ começa o rio; / onde a terra / começa da lama; / onde o homem, / onde a pele / começa da lama; / onde começa o homem / naquele homem” (Melo Neto, 110). Deste jogo imagético, nasce a “Fábula do Capibaribe”.

Além das imagens refletidas nas descrições, o discurso, agora, traduz as alegorias que, vertidas de reflexões, contam histórias e lendas daquela cidade guerreira: o Recife, a rocha escarpada à beira do mar; o rochedo ou o grupo de rochedos nas proximidades da costa do mar e à flor da água e das revoluções. A rocha-capital de um Estado ostenta a bandeira usada na Revolução de 1817. Este estandarte é formado pelas cores azuis e brancas, adornadas pelo arco-íris, uma estrela, o sol e uma cruz. O arco-íris significa a união dos pernambucanos. O azul simboliza o céu e o branco, o estado, a paz. O sol representa a força do estado, a fé na justiça.  Na magia das imagens poéticas, o rio tornou-se um cachorro – homem, num mundo cão. Nessa representação, o mar surge como uma “bandeira/ azul e branca/ dobrada/ no extremo do curso/ – ou mastro – do o rio” (Melo Neto 111) que pode ser quando detentor da espada da bravura do verbo criador.

A espada possui duplo aspecto destruidor e criador. Ela é símbolo do Verbo, da Palavra. O khitab muçulmano costuma segurar uma espada de madeira durante sua predicação; o Apocalipse descreve uma espada de dois gumes a sair da boca do Verbo. Esses dois gumes relacionam-se ao duplo poder. (…) A espada está também relacionada com a água e como dragão: a têmpera é a união da água e do fogo; sendo o fogo, a espada é atraída pela água”. (Chevalier & Gheerbrant  392).

Nesse sentido, a força do rio está no seu discurso que faz história de vitórias e ações. Apesar de seus feitos, o rio é dominado pelo mar. Aquele representa a fonte, a água; este a força do dragão:

o mar com seu incenso,
o mar com seus ácidos,
o mar e boca de seus ácidos,
o mar e seu estômago
que come e se come,
sua carne
vidrada, de estátua,
seu silêncio, alçando
à custa de sempre dizer
a mesma coisa,
o mar e seu puro
professor de geometria.)

O rio teme aquele mar
como um cachorro
teme uma porta entretanto aberta,
como um mendigo,
a igreja aparentemente aberta.

Primeiro,
o mar devolve o rio.
Fecha o mar ao rio
seus brancos lençóis.
O mar se fecha
a tudo o que no rio
são flores de terra,
imagem de cão ou mendigo.

Depois,
o mar invade o rio.
Quer
o mar
destruir no rio
suas flores de terra inchada,
tudo o que nessa terra
pode crescer e explodir,
como uma ilha,
uma fruta.
(Melo Neto, J. C., 112/113)

O mar significa o dragão que destrói e, como tal, pode simbolizar também a espada que corta a fruta, que corta “o rio que se detém / em mangues de água parada. / Junta-se o rio / a outros rios / numa laguna, em pântanos / onde, fria, a vida ferve. //… Juntos todos os rios / preparam sua luta / de água parada, / sua luta / de fruta parada” (Melo Neto, J. C., 113). Os rios exibem a força do verbo criador que com o seu poder de ação discorre sobre as suas vidas de rios refletidas nos homens: cães sem plumas, frutas que são cidades, todos eles fecundados pelas dores do mundo, pela espada da miséria e do poder que violenta a humanidade. Desta maneira, o rio atua como um ator coletivo, como um herói que exprime o discurso do seu povo. E a força desse discurso do rio se evidencia no contraste provocado pelo contato da espada com a fruta: “A mesma máquina/ paciente e útil / de uma fruta; / a mesma força / invencível e anônima / de uma fruta / – trabalhando ainda seu açúcar / depois de cortada” (Melo Neto, J. C., 113). A poeticidade do discurso do rio não está na descrição da bandeira do mar, mas no encontro do rio com o mar, no ludismo linguístico cheio de imagens e polissemia e, ainda, na conformidade de semas entre o rio, o cão, a fruta, a espada, enfim, o homem, não apenas de Pernambuco, mas de qualquer ser humano marcado pela ausência de tudo, mesmo do próprio ser. No olhar do eu lírico perpassa a fábula do Capibaribe, transmitida em forma da linguagem poética, por meio do discurso do rio.

Na quarta parte, intitulada “Discurso do Capibaribe”, o rio adquire um movimento lento e dolorido quando encontra os mangues estacionados como enorme fruta madura. Dominando a espada do verbo, o rio poético, o cão sem plumas, também representação do homem, toma várias formas e, como a vivacidade do reflexo do sol sobre as águas, torna-se um demiurgo e onipresente. O Rio está ” na memória / como um cão vivo / dentro de uma sala /…Como um cão vivo / debaixo dos lençóis, / debaixo da camisa, / da pele” (Ibidem 114). O rio é linguagem poética e por isso tem a energia de uma metáfora viva que flutua entre oreal e o imaginário. Por ser real, sua liquidez não é completa, não corre plenamente pelo mundo dos sonhos. Por isso é espesso, corre devagar como o tempo, uma maçã,um cachorroum homem (Ibidem 115).  A vida corre como “o rio, espesso; o sangue do homem também é espesso; e ainda, a paisagem, as ilhas negras de terra”(Ibidem 116) são espessas.

A realidade tem a natureza é pétrea, condensada, severa a arte não. Ela tem a fluidez das águas, do sonho, corre levemente por mundos inimagináveis. A arte, como o sonho, vive o mundo do imaginário, virtual e cria nele um mundo autônomo, auto-suficiente para criar uma ilusão do real, mesmo espesso. Porém, a fluidez das águas do discurso poético conduz o mundo real para uma ponderação sobre as vicissitudes causadas pelos pedregosos caminhos construídos pela própria desumanidade.

O discurso do rio em O Cão Sem Plumas está nessa intrincada rede de metáforas, de imagens que fluem como as águas de um rio, mesmo, como o Capibaribe na sua travessia final: espesso, lento, triste. Mas, desde a primeira vista, o discurso se enuncia nos versos irregulares, de aparência livre que ora numa fluidez harmônica se tornam mais curtos, ora se alongam mansamente, parte por parte, seção por seção, discurso por discurso, parágrafo por parágrafo, pontuando suas reiteradas pausas e reflexões. Enquanto isso o discurso do poema é tecido por meio de uma  sua rede de metáforas que aparentam correntes de água ou onda, jogando imagens, numa brincadeira séria que evoca a vida com seu ritmo cadente, pausado e contínuo.

Diante do que foi afigurado, esse poema analisado expressa o rio, a paisagem, o homem, enfim a realidade, mas também a plenitude da linguagem poética.  E, como metáfora, O Cão Sem Plumas não deixa seu discurso de rio/ homem estacionar como a água parada, com uma rua, ou uma fruta, corre para outras margens, entra pelo mar/ dragão levando imagens e símbolos com alto grau de sentidos e, na sua fala, constrói um mundo de imaginação. Porém, de sua irrealidade aciona sua objetiva como uma espada que atravessa uma fruta, ou um rio que corta a paisagem, ou cão que corta a rua, fluindo num movimento que desvela um espaço pré-existente, com sua história: enfim, desvenda as dores daquele mundo. Por meio do olhar de uma observação poética, um cenário real adquire um contexto literário e outra existência se realiza, agora com mais “auto-suficiência” e uma irrealidade/ real que perturba e delicia que fere e cura, que chora e acalanta, numa unificação estranha, um tanto insólita, mas que presentifica e transfigura uma realidade.

Diante de todas essas assertivas, pode ser concluir que O Cão Sem Plumas, este objeto do olhar pode ser contemplado sob quatro visões:

Na primeira está inserida a ontologia: o rio Capibaribe em si. O Cão Sem Plumas marcado pela estrutura física de uma paisagem estigmatizada pela miséria, pelo fogo, pela lama e pela dor. Neste caso, o rio Capibaribe traduz a posição de um ser que tem sua negatividade dissimulada nos atrativos do mapa turístico da capital de Pernambuco. O rio, objeto deste olhar, tem semelhança com um cão, um animal pobre e desprezado pelos olhos dos poderosos que são insensíveis à realidade do rio e transmite um falso retrato para atrair mais lucro e influência. Esse rio, enquanto ser, vai reproduzir com a fluidez de suas águas todo um tecido de imagens que já estão condensadas na primeira estrofe, como num processo de passagem do estado gasoso ao líquido. Desse modo, pode-se dizer que toda a organização do rio (o discurso do poema) começa a fluir na primeira estrofe.

A partir de então, podemos afirmar que, na segunda visão, o rio representa a metáfora do homem marginalizado pelas negativas de humanidade, de condições de uma vida digna, justa, sem discriminação. Este homem é também um cão sem plumas que reside na lama do rio e da sociedade.

Na penúltima visão, este rio Capibaribe, que representa também o homem (objeto do olhar similar ao rio que corta a cidade), exprime ainda a própria coletividade: a cidade, a rua, as casas, as frutas. Aqui, existe toda uma intrincada coletividade que forma uma rede de ações metafóricas, pois da mesma forma que “a cidade é passada pelo, a rua é passada por um cachorro/ uma fruta/ por uma espada” (Ibidem 105). Em cada sucessão de acontecimentos, o poema realiza uma corrente a fluir imagens que vão transmitindo a correnteza do rio Capibaribe, que, enquanto toda a cidade se movimenta vagarosamente, também se anima com a mansidão do amadurecimento de uma fruta que vai ser cortada pelo mar/ espada. E, neste encontro, acontece a tensão das forças entre o rio e o mar (espada/ dragão), o jogo entre a vida e a morte. Estas forças opostas vão produzir uma transcendência e gerar o poético, o que nos lembra duas afirmações  Cohen: “O significado poético é totalitário. Não tem oposto. (Cohen 239) e “É poético o ilimitado. Como tal, invade o espaço e expulsa qualquer negação fora do campo do seu aparecer” (Idem Ibidem 113). Assim, o discurso do rio, como um herói coletivo, vence as forças opositivas do mar, isto é, todas as dificuldades da passagem para o poético. Finalmente, domina o mar da linguagem e alcança a plenitude da arte da palavra.

Assim, esse estado de poeticidade plena conduz à quarta visão que o olhar pode perceber: o rio como existência, que no encontro com o mar se transforma numa fruta, passada por uma espada do grande dragão.  Neste caso, essa existência traduz também toda uma rede de relações metafóricas, ou seja, o destino do rio Capibaribe, do homem, da coletividade e da linguagem poética. Esta última transfigura e dá voz, por meio do seu discurso metafórico, a todo este mundo representado em forma de rio, ou seja, de um cão sem plumas. Destarte, esta quarta parte que remete à plenitude existencial do nascimento ou do pré-nascimento da fruta que caminha contra a espada (morte) e, neste embate, encontra finalmente a essência da poesia (a vida), o mar da linguagem e da plurissignificação: a plenitude da linguagem poética.

 

Referências

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