ESTRANHEZAS DO BRUXO: BREVE ANÁLISE DOS CONTOS “UM ESQUELETO” E “UMA VISITA DE ALCIBÍADES”, DE MACHADO DE ASSIS

Fabiana Francisco Tibério
Faculdade Apucarana Cidade Educação, FACED
 
 

A obra de Machado de Assis é fonte inesgotável de descobertas e encantos para o leitor, da mesma forma que o é para a crítica. É surpreendente a maneira como os escritos machadianos são capazes de fomentar discussões e estudos sem exaurir-se. Enquanto os outros autores “somem”, nos lembra Roberto Schwarz, “o Machado, não, ele volta a se impor e vai durando…” (apud Bosi 325). Entretanto, embora seja continuamente retomado, grande parte dos olhares da crítica voltaram-se ao estudo do romance, relegando a segundo plano as produções do autor em outros gêneros. Apesar disso, a verdade é que Machado, além do grande e reconhecido romancista, foi igualmente um exímio contista.

Os mais de duzentos contos escritos pelo autor permitem vislumbrar, além do homem ligado ao seu tempo e país, o leitor ávido e atento, pronto a trazer para o Brasil o novo gênero literário, explorando-o de tal maneira que se tornaria um exemplo para os contistas seus contemporâneos e uma influência para as gerações que o sucederam.  O conto, visto na época como algo menor, ganhou de Machado o mesmo tratamento dispensado ao romance. Embora haja entre seus romances e contos muitos temas coincidentes, como a dúvida, a hipocrisia e a dubiedade do ser humano, a aproximação termina aí, visto que Machado estava consciente de que o conto possuía um estatuto muito próprio (e isso se pode perceber nas várias referências que o autor faz aos textos críticos de Edgar A. Poe).

Arguto observador da realidade social, econômica e cultural de sua época, Machado “utilizava-se do seu ofício de contista como um instrumento de investigação, mas não só da realidade circundante, como sobretudo daquilo que subjaz nas aparências.” (Cunha 62)  O conto, “gênero difícil, a despeito da aparente facilidade”, como afirma o autor em “Instinto de Nacionalidade”, propiciou-lhe exercer a imensa habilidade discursiva e crítica, por oportunizar a criação de inúmeras situações e personagens diferentes, tornando-se o espaço no qual Machado “encontrou a guarida ideal para sobrepujar a sua própria excelência”. (Cunha 43)

A temática dos contos machadianos é muito diversificada, o que torna necessário delimitar meu enfoque: interessa-me analisar, dentro da abundante produção do autor, os contos em que Machado opera com o fantástico. Na verdade, essa definição absoluta não cabe aqui. Veremos que, conforme as acepções de Todorov acerca da literatura fantástica, há um limite tênue e deslizante entre o fantástico, o estranho e o maravilhoso. Com pretendo demonstrar, Machado passeou por esses gêneros com maestria, tendo em seu horizonte de expectativas grandes mestres como Hoffmann, Gautier e Poe.

Alguns estudos têm sido feitos procurando reunir os textos machadianos avaliados como fantásticos ou estranhos. A primeira referência expressa vem do próprio Machado de Assis que, em 1862, publicou o conto “O país das quimeras”, no jornal “O Futuro”, dando a esse texto a classificação de “conto fantástico”. Há, no entanto, muitos outros contos que podem ser classificados como tal. Em busca desses textos, localizei um levantamento feito por Lula (2005), em sua dissertação de mestrado intitulada Machado de Assis e o gênero fantástico. O autor cita a antologia feita por Raymundo Magalhães Júnior, publicada em 1973 e reeditada em 1998 pela editora Bloch, intitulada Contos fantásticos: Machado de Assis, na qual estão inclusos onze contos: “O anjo Rafael” (1869), “A vida eterna” (1870), “O capitão Mendonça (1870), “Decadência de dois grandes homens” (1873), “Os óculos de Pedro Antão” (1874), “A chinela turca” (1875), “Um esqueleto” (1875), “Sem olhos” (1876), “A mulher pálida” (1881), “O imortal” (1882) e “A segunda vida” (1884). Lula também faz referência à dissertação de mestrado de Marcelo José Fonseca Fernandes, intitulada Quase-macabro: o fantástico nos contos de Machado de Assis, defendida em 1999, na qual Fernandes acrescenta mais quatro contos aos já arrolados por Magalhães Júnior: “O país das quimeras” (1862), “O anjo das donzelas” (1864), “Mariana” (1871) e “Um sonho e outro sonho” (1892). Lula cita ainda mais um: “As academias de Sião” (1884), inserida na coletânea intitulada Páginas de sombra: contos fantásticos brasileiros, organizada por  Bráulio Tavares, publicada em 2003.

Escolhi para análise um conto já arrolado nesses estudos, e publicado em 1875 no “Jornal das Famílias”, intitulado “Um esqueleto”. A princípio, minha intenção era analisar somente ele. Entretanto, minhas leituras me levaram a outro texto, chamado “Uma visita de Alcibíades”, não mencionado pelos autores acima, e que foi inserido por Machado em Papéis avulsos, de 1882.

Para a análise dos textos, recorrerei às concepções de Todorov em Introdução à literatura fantástica, e considerarei também os estudos já citados acima. Vamos, pois, aos textos.
 
 
1. “O Esqueleto” – conto fantástico?
 
O conto “Um esqueleto” foi publicado no “Jornal das Famílias”, de outubro a novembro de 1875. Machado nunca o incluiu em nenhuma de suas coletâneas. Trata-se de uma narrativa dividida em seis capítulos, dentro da qual o autor insere uma segunda narrativa. Inicialmente, o narrador em terceira pessoa coloca o leitor em uma reunião de rapazes que conversam sobre banalidades. Compõe a cena sob um clima de suspense: “o mar batia perto na praia solitária…”, a noite “era feia e ameaçava chuva”. O ambiente evoca, pois, o cenário de uma história de terror. No meio da conversa, um dos rapazes elogia a língua alemã. Outro moço, Alberto, diz que aprendera o idioma com o Dr. Belém, a quem descreve como “um homem extremamente singular”, escritor de um livro de teologia, romancista e descobridor de um planeta. E, como os amigos duvidassem da excentricidade do personagem, Alberto propõe lhes contar a história do esqueleto. Nesse momento, o narrador em terceira pessoa retoma a narrativa e termina o capítulo comentando a reação dos rapazes ante da palavra esqueleto, ao mesmo tempo em que busca, por sua vez, causar a mesma reação no leitor do conto:

A palavra esqueleto aguçou a curiosidade dos convivas; um romancista aplicou o ouvido para não perder nada da narração; todos esperaram ansiosamente o esqueleto do Dr. Belém. Batia justamente meia-noite; a noite, como disse, era escura; o mar batia funebremente na praia. Estava-se em pleno Hoffmann.(Assis, Obra completa 815) (grifos meus)

A referência explícita a Hoffmann, autor que explora as “formas de grotesco dos séculos anteriores, desde o inferno e seus habitantes até todo tipo de figuras sinistras” (Huber 1), confirma que Machado estava a par do que se produzia fora do país, o que se demonstra, aliás, não só por meio das várias referências e citações que insere em seus textos, mas também pelas suas declarações em textos de crítica. Sobre a referência, Maria (106) nos diz que o retrato do Dr. Belém “é digno de figurar em qualquer álbum que registre o tipo de protagonista padrão da grande maioria de contos fantásticos de Hoffmann ou de Edgar A. Poe”. O segundo capítulo trará os detalhes desse retrato, narrados pelo personagem Alberto, que assim descreve a figura do estranho doutor:

O Dr. Belém era um homem alto e magro; tinha os cabelos grisalhos e caídos sobre os ombros; em repouso era reto como uma espingarda; quando andava curvava-se um pouco. Conquanto o seu olhar fosse muitas vezes meigo e bom, tinha lampejos sinistros, e às vezes, quando ele meditava, ficava com olhos como de defunto. (Assis, Obra completa 815)

Ocorre que, em conversa com Belém, Alberto lhe pergunta se alguma vez tivera sido casado. O doutor responde dizendo que sim e que resolvera subitamente, diante do questionamento do amigo, casar-se novamente, tendo, inclusive, já escolhido uma jovem viúva para propor a união. Aproveitando a ocasião, o velho pergunta se Alberto conhece sua primeira esposa. Ante a resposta negativa, resolve mostrá-la ao rapaz. Apesar de serem amigos, percebe-se que o jovem sente medo ao adentrar no interior da casa:

Conquanto eu fosse amigo dele e tivesse provas de que ele era meu amigo, tanto medo inspirava ele ao povo, e era efetivamente tão singular, que eu não podia esquivar-me a um tal ou qual sentimento de medo. (Assis 815)

O medo do personagem contamina o leitor e acentua-se com a descrição que Alberto faz da cena:

No fundo do gabinete havia um móvel coberto com um pano verde; o doutor tirou o pano e eu dei um grito. Era um armário de vidro, tendo dentro um esqueleto. Ainda hoje, apesar dos anos que lá vão, e da mudança que fez o meu espírito, não posso lembrar-me daquela cena sem terror. (Assis, Obra completa 815)

O jovem sai rapidamente da sala e vai para casa assombrado. Em seus pensamentos, teme pela jovem viúva escolhida pelo doutor para as segundas núpcias, mas acaba por acreditar que tal resolução deveria ser apenas uma brincadeira do velho, visto que não acharia quem se casasse com ele, pois “tão aceita anda a superstição popular que o tem por lobisomem ou quando menos amigo íntimo do diabo…”. Qual não é sua surpresa quando, ao retornar no dia seguinte, o amigo confirma sua decisão de procurar a viúva Marcelina.

E assim, enquanto se desenrolam os preparativos para o casamento, o narrador vai engendrando no leitor a imagem do doutor. Essa estratégia, aliás, é um traço tipicamente machadiano: o acréscimo de informações ao todo a conta-gotas. É o que ocorre diante de comentários como este: “De fato, gosto da noiva, disse ele com ar sério; é possível que eu morra antes dela; mas o mais provável é que ela morra primeiro. Nesse caso, juro desde já que irá o seu esqueleto fazer companhia ao outro.”

Em outro momento aparecem os dois amigos a lerem o Fausto, e o velho demonstra “um desejo de se parecer com Mefistófeles”, embora se persigne todo quando Alberto profere a palavra “diabo”. Dessa forma, o personagem vai paulatinamente ganhando contornos ora insanos, ora diabólicos.

Já casado com a jovem viúva Marcelina, o Dr. Belém recebe a visita de Alberto. Qual não é o espanto deste quando, convidado para jantar, descobre que o velho faz sentar à mesa tanto a esposa viva, quanto o esqueleto da esposa morta! O doutor confessa a ambos que matara a esposa por ciúme e que descobrira, tempos depois, que ela era inocente, o que lhe causava uma grande dor e arrependimento. Ao ser questionado por Alberto sobre o porquê de trazer o esqueleto à mesa, o homem declara:

(…) é para que minha segunda mulher esteja sempre ao pé da minha vítima, a fim de que se não esqueça nunca dos seus deveres, porque, então como sempre, é mui provável que eu não procure apurar a verdade; farei justiça por minhas mãos. (Assis, Obra completa 816)

O comportamento do personagem, portanto, foge às normas sociais vigentes e por vários momentos do texto alude-se à possibilidade de que ele seja louco. Além da loucura como possível explicação para os atos do personagem, o conto “contém todos os ingredientes do fantástico romântico” (Maria 108), seja pela descrição do cenário, seja pelo aspecto fantasmagórico do protagonista. O desfecho da história do Dr. Belém mantém o leitor na dúvida quanto à verdade da narração: desconfiado de que Alberto e a esposa estão apaixonados, o velho resolve deixá-los para que sejam felizes, desaparecendo para sempre no meio do mato, levando consigo o esqueleto da primeira esposa.

Ora, se analisarmos os fatos, veremos que, na realidade do enunciado, nada há de sobrenatural neles. Embora o ato de guardar o esqueleto, trazê-lo à mesa ou beijar-lhe a mão não sejam atitudes do senso comum, também não são totalmente inverossímeis. Ou seja, o conto se baseia em um ato possível, embora não provável. Todorov nos diz que, para ser tomado como fantástico, é preciso que o texto “obrigue o leitor a considerar o mundo das personagens como um mundo de criaturas vivas e a hesitar entre uma explicação natural e uma explicação sobrenatural dos acontecimentos evocados.” (Todorov 39). Os personagens que convivem com o Dr. Belém não hesitam em entender a presença deste como algo estranho, mas não sobrenatural (tanto que atribuem o fato à possível insanidade mental do doutor, ideia que de certa forma acaba influenciando o leitor). Além disso, o sexto capítulo do conto, uma espécie de epílogo, traz Alberto confessando que na verdade o Dr. Belém jamais existira, tendo sido apenas uma história inventada a fim de “fazer apetite para o chá”. Com essa revelação, o fantástico se dissolve. Tal fato corrobora a afirmação de Todorov, para quem o fantástico “leva, pois, uma vida cheia de perigos, e pode se desvanecer a qualquer instante.” (Todorov 48)

Deste modo, “Um esqueleto” não pode, pois, ser caracterizado como um conto fantástico, visto que não há nele a presença do sobrenatural, já que os fatos podem ser explicados racionalmente: o marido mata a esposa infiel e, tempos depois, descobrindo que ela era inocente, resolve ter ao seu lado os ossos dela, fazendo, inclusive, com que as visitas e a segunda esposa convivam com o esqueleto. Não há ambiguidade nessa interpretação. Além disso, há a estratégia autoral do narrador em confessar que a história não passara de um embuste, o que elimina definitivamente o elemento fantástico do texto. Entretanto, não há como negar que há algo que causa um estranhamento no leitor. O estranho, assim, diferencia-se do fantástico. Para Todorov, o fantástico é um gênero evanescente, que se limita e pode confundir-se com dois outros gêneros: o estranho e o maravilhoso. Explica o autor:

O fantástico /…/ dura apenas o tempo de uma hesitação: hesitação comum ao leitor e à personagem, que devem decidir se o que percebem depende ou não da “realidade”, tal qual existe na opinião comum. No fim da história, o leitor, quando não a personagem, toma contudo uma decisão, opta por uma ou outra solução, saindo desse modo do fantástico. Se ele decide que as leis da realidade permanecem intactas e permitem explicar os fenômenos descritos, dizemos que a obra se liga a um outro gênero: o estranho. Se, ao contrário, decide que se devem admitir novas leis da natureza, pelas quais o fenômeno pode ser explicado, entramos no gênero do maravilhoso. (Todorov 47-48)

A narrativa sobre o Dr. Belém está, portanto, ligada ao estranho, mais especificamente ao que Todorov chama de estranho puro, no qual as obras relatam

acontecimentos que podem perfeitamente ser explicados pelas leis da razão, mas que são, de uma maneira ou de outra, incríveis, extraordinários, chocantes, singulares, inquietantes, insólitos e que, por esta razão, provocam na personagem e no leitor reação semelhante àquela que os textos fantásticos nos tornaram familiar. (Todorov 53)

Todorov explicita que o estranho não é um gênero bem delimitado, e que está ligado à descrição de certas reações dos personagens, em particular omedo, daí o fato de a literatura de horror pertencer a essa classificação. Verificando, portanto, os elementos já citados do conto: o espaço noturno e fúnebre; a descrição do personagem; o medo expresso pelo narrador Alberto e por seus interlocutores; a presença do esqueleto; a ausência de um acontecimento material que desafie a razão; a retomada brusca da realidade; veremos que, enfim, estamos diante de um texto estranho, mas não fantástico.
 
 
2. “Uma visita de Alcibíades”
 
Muitos estudiosos da obra de Machado de Assis aceitam que a mesma possui duas fases: a primeira, dita romântica, compreenderia os quatro primeiros romances e também as duas primeiras coletâneas de contos; a segunda, de cunho mais realista, traria os cinco romances restantes e mais cinco livros de contos selecionados pelo próprio autor.

O divisor de águas seria, no romance, a obra Memórias Póstumas de Brás Cubas, publicada em 1881, e no conto, a coletânea Papéis Avulsos, de 1882. A ideia da divisão já está desgastada e não é tão relevante que mereça ser novamente discutida, visto que acredito ser mais importante entender a evolução do autor que tentar marcar os textos como pertencentes a uma ou outra fase.  Entretanto, é interessante notar como, a partir de Papéis Avulsos, Machado parece caminhar mais seguro pelo universo do conto, realizando experimentações na forma, definindo o estilo que o imortalizou. De acordo com Sônia Brayner (apud Bosi 433), a partir dessa coletânea a produção machadiana do gênero vai se definindo por “certos padrões de execução formal e conteudística”, dentre os quais aponta “a exploração de acontecimentos plausíveis, acrescidos de boa dosagem de exceção, de fantástico, que finalizam de forma inusitada”, linhagem que, segundo a autora, seria proveniente daqueles que foram mestres para Machado, ou seja, Hoffmann e Poe.

Temos em Papéis Avulsosvários contos em que ocorre um distanciamento do real, seja através de textos que trazem fatos verossímeis, mas que desafiam a lógica (“O alienista”), fatos excepcionais, voltados à análise psicológica do personagem (“O espelho”), o “fantástico oriental” (“A chinela turca”), e o conto que abordaremos a seguir, no qual temos o retorno de um morto.

“Uma visita de Alcibíades” é reputado entre os melhores contos de Machado. Inserido dentro de um livro que poderíamos definir como “híbrido”, haja vista as diversas estruturas utilizadas em sua feitura (novela, conferência, retrato, diálogo), também esse texto possui um formato inovador: trata-se de um conto elaborado como carta, como mostra o subtítulo “Carta do desembargador X… ao chefe de polícia da corte”.  Essa estratégia narrativa confere verossimilhança ao texto e acaba contribuindo para que o enredo se torne ainda mais insólito para o leitor, visto que, a princípio, o que vai ali escrito é uma correspondência entre duas autoridades. Trata-se de um conto onde o autor explora a fantasia e a realidade e brinca com o limite entre o real e o imaginário, obtendo uma narrativa caracteristicamente machadiana: ao mesmo tempo em que é arte literária de qualidade indiscutível, é também análise e crítica social.

No conto, o desembargador X narra ao amigo chefe de polícia uma “aventura extraordinária” que aconteceu a ele naquela noite: estando a ler Plutarco após o jantar, chegou à página que tratava da vida de Alcibíades, um antigo grego, o “mais guapo dos atenienses”. Sendo interrompido em sua leitura, mas ainda contaminado por ela, o personagem começa a imaginar a impressão que a moda atual causaria em Alcibíades. Nessas divagações, o narrador passa a invocar o espírito do grego, que prontamente lhe atende e aparece na sala, causando no desembargador grande espanto, pois, como ele explica: “não era a sombra impalpável que eu cuidara ter evocado pelos métodos da nossa escola; era o próprio Alcibíades, carne e osso, vero homem, grego autêntico, trajado à antiga…” Mesmo com as “carnes arrepiadas”, o desembargador inicia uma conversa com a aparição. O grego faz muitos questionamentos sobre o tempo atual e, naturalmente, ambos percebem as diferenças que existem entre suas culturas. Dos muitos aspectos que Machado poderia explorar nesse choque cultural, ele elege um motivo aparentemente pífio: a “moda”. A própria escolha de Alcibíades tem ligação com o tema, pois o ilustre personagem é retratado por Plutarco como sendo um guerreiro corajoso em determinados momentos, mas também elegante e efeminado quando a situação assim exige. Ao observar as vestes do desembargador, que se vestia para um suposto baile, o ateniense fica horrorizado e tem um ataque fulminante, caindo morto pela segunda vez. O desembargador pede então, ao final da carta, que o chefe de polícia mande vir alguém para recolher o corpo e transportá-lo ao necrotério.

Esse conto traz a presença do sobrenatural, ao contrário do que ocorre em “Um esqueleto”. O corpo de Alcibíades, materializado, não se dissipa. A permanência do cadáver, vestido à moda de Atenas, impossibilita ao leitor uma possível explicação racional. O próprio distanciamento temporal da narrativa (o desembargador escreve a carta após os acontecimentos) retira a possibilidade de que tudo tenha sido fruto da imaginação do personagem, ou mesmo que se trate de um sonho, pois, passados os fatos, o corpo do ateniense permanece na sala. De acordo com Todorov, é assim que somos transportados ao âmago do fantástico: “Num mundo que é exatamente o nosso, aquele que conhecemos, sem diabos, sílfides ou vampiros, produz-se um acontecimento que não pode ser explicado pelas leis deste mesmo mundo familiar.” (Todorov 30) O leitor não sabe definir se aquele fato é verdade ou ilusão e é nessa incerteza, nessa impossibilidade de escolher entre uma ou outra resposta, que reside o fantástico.

No texto fantástico o leitor tem um papel fundamental. Todorov atribui três condições ao gênero, todas elas ligadas ao leitor: a primeira consiste em que o leitor considere o mundo dos personagens como um mundo de criaturas vivas. Esse efeito é obtido por Machado ao escrever o texto como carta. É necessário também que o leitor hesite entre uma explicação natural e uma explicação sobrenatural dos fatos narrados, o que também ocorre, uma vez que a hesitação do leitor diante do narrado está presente na própria sensação de perplexidade que permanece mesmo após o término da leitura. De acordo com o teórico, também o personagem pode sentir essa hesitação, o que ocorre no caso, visto que o desembargador chega a achar que a aparição de Alcibíades pudesse ser apenas “efeito de uma digestão mal rematada”. Por fim, é preciso que o leitor não interprete o texto lido nem como uma alegoria, nem como poesia (o texto poético não necessita ser representativo), pois neste caso a hesitação não existiria e eliminaria o caráter fantástico do texto. O conto “Uma visita de Alcibíades” atende a todas essas prerrogativas, podendo, portanto, ser incluído no inventário dos contos fantásticos de Machado de Assis.
 
 
3. Considerações Finais
 
Os contos machadianos compõem um universo vasto e instigante no qual o leitor pode mergulhar nas “estranhezas” exploradas pelo autor, seja para crer, para hesitar ou para carregar consigo uma eterna dúvida (impossível, no momento, não lembrar Dom Casmurro). A ambiguidade/hesitação, colocada por Todorov como uma das prerrogativas do fantástico, foi para Machado muito mais que ponte para explorar esse gênero, constituindo, indiscutivelmente, a matéria-prima com a qual ele compôs grande parte de seus textos.

A verdade é que, muitas vezes, a realidade em Machado é mais aterradora que qualquer fato sobrenatural. Assim sendo, a inserção do escritor no gênero fantástico/estranho somente corrobora sua capacidade de oferecer-se sempre novo aos leitores e estudiosos de sua obra. Soma-se a isso o fato de que foi ele a chamar para si a responsabilidade de fazer emergir o conto, gênero até então incipiente em nossas letras, elevando-o à condição de obra de arte. Assim, acabamos entendendo porque o autor, que temia não possuir mais que cinco leitores permanecem ainda hoje assombrando e encantando tanta gente.

 
 
Referências
 

ASSIS, J. M. Machado de. Papéis Avulsos. Rio de Janeiro: Garnier, 1989.

______. Obra Completa. Vol. II. Rio de Janeiro: José Aguilar Editora, 1974.

BOSI, Alfredo.[et al.]. Machado de Assis. São Paulo: Ática, 1982.

CUNHA, Patrícia Lessa Flores. Machado de Assis: um escritor na capital dos trópicos. Porto Alegre; São Leopoldo: IEL; Unisinos, 1998.

HUBER, Valburga. A simbologia do olhar no conto Der Sandmann de E.T.A. Hoffmann. Disponível em: <http://www.filologia.org.br/viicnlf/anais/caderno09-02.html> Acesso em 02 jan. 2010.

LULA, D. de O. G. O lugar do fantástico em Machado de Assis. Disponível em:
<http://www.idelberavelar.com/abralic/txt_33.pdf> Acesso em: 19 dez. 2009.
MARIA. Luiza de. Sortilégios do avesso: razão e loucura na literatura brasileira. São Paulo: Escrituras Editora, 2005.

TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 1975.
 
 

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