“A visão mais clara das coisas”

Susana Margarida Rosa
Universidade de Lisboa
 
 
A sobrevivência da literatura reside num exercício sucessivo de descrições de sentidos possíveis que atribuímos aos textos. O que, num dado momento, é descrito como um sentido ideal, noutro momento é refutado por outra descrição que, por sua vez, é mais ideal que a primeira. Resulta desta sucessividade um aglomerado de interpretações, quer de natureza histórico-literária, quer de natureza crítica, cuja utilidade nem sempre é legítima. Porém, como o autor, ou poeta, tem várias dores, e a que lemos está a quatro graus de distância da primeira, a tarefa de leitura subjuga-se ao suplício aparentemente eterno de descrever o que nunca se poderá, assertivamente, definir.

Dada a constatação, como ler Cesário? A posição que a sua obra ocupa atualmente é incómoda e carece de clareza. Acumularam-se sobre esta poesia, ao longo do tempo, papéis que, na intenção legítima de a interpretarem idealmente, a sufocaram: são eles as descrições românticas, a que se seguiram descrições realistas, parnasianas, impressionistas, sociais, políticas e, inclusivamente, sexuais. Propõe-se, deste modo, um exercício de leitura que, desprovido, quer das tendências histórico-literárias, quer das invectivas interpretativas da crítica, já desenvolvidas sobre O Livro de Cesário Verde, tenha como ponto de partida, unicamente, textos primários.

 

“Nas nossas ruas, ao anoitecer,Há tal soturnidade, há tal melancolia,

Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia

Despertam um desejo absurdo de sofrer.”

“Se eu não morresse, nunca! E eternamenteBuscasse e conseguisse a perfeição das cousas!

[…]”1

 

De uma estrofe à outra, retiradas de «O Sentimento dum Ocidental», encontra-se a obra breve, mas completa, de um poeta que, não compreendido pelos seus contemporâneos, se tornou inteligível somente a partir da leitura que dele fez Fernando Pessoa. Este definiu Cesário como seu Mestre, entre outros, porém há que esclarecer os termos em que essa afirmação é feita.

Nas suas Páginas sobre Literatura e Estética, Pessoa indicou os três poetas dignos, segundo ele, da designação de mestres, respectivamente Antero de Quental, Cesário Verde e Camilo Pessanha. Note-se que, na particularização que faz do segundo, Pessoa recorre, senão dos mesmos termos, pelo menos de semelhantes. Veja-se:

 “Cesário Verde, who was the first to see in Portuguese Poetry, the clearest vision of things and their real presence which can be found in modern literature”;

“Com Cesário se fundou entre nós a poesia objectiva, igualmente ignorada entre nós […]”;

“O Segundo [Cesário Verde] ensinou a observar em verso; descobriu-nos a verdade de que o ser cego, ainda que Homero em lenda o fosse e Milton em verdade se o tornasse, não

é qualidade necessária a quem faz poesia”2

 

Expressões como ‘ver’, ‘a visão mais clara das coisas’, ‘presença real’ ou ‘poesia objectiva’, expostas teoricamente, coincidem com outras referências feitas a Cesário, quer na poesia de Alberto Caeiro, nomeadamente no terceiro poema de “O Guardador de Rebanhos”, quer no segundo excerto de ode de Álvaro de Campos, quer em múltiplos fragmentos do Livro do Desassossego de Bernardo Soares. Serão estas definições, em si quase iguais, suficientes para se ler Pessoa como discípulo de Cesário? Ou ter-nos-á ludibriado Pessoa, com a genialidade da sua linguagem poética multiplicada em personagens, adiantando-nos definições semelhantes que escondem um outro aproveitamento da leitura que ele fez da poesia de Cesário Verde?

Veja-se o fragmento 130 da autobiografia de Bernardo Soares:

 

“Vendo bem, tanto o Cesário Verde como estes foram para a minha visão do mundo coeficientes de correcção. Creio que esta é a frase, cujo sentido exacto evidentemente ignoro, com que os engenheiros designam o tratamento que se faz à matemática para ela poder andar até à vida”3.

A designação de Cesário como coeficiente de correção está, por sua vez, intimamente ligada ao uso repetido, por Soares, da afirmação que o Pe. António Vieira fizera acerca de Frei Luís de Sousa, ou seja, que este último escrevera “o comum com singularidade”4. Estes dois fragmentos esclarecem, não só, a razão pela qual Pessoa designou Cesário como seu Mestre, como sugerem uma nova forma de abordagem à poesia deste último. Pretende-se com esta aproximação demonstrar que uma leitura correta de Cesário só se torna possível através da obra pessoana. E como?

Cesário descreve o comum com singularidade e, nesse sentido, a sua poesia ‘anda até à vida’. Os seus poemas mais longos constituem descrições de paisagens físicas e humanas, nos quais o comum se torna matéria poética até então entendida como inadequada ao género lírico: falo do trabalhador jovem que morre num desastre, da infeliz que engoma para fora, da vendedeira num bairro moderno, dos trabalhadores salutares, dos mendigos que habitam os palheiros, dos carvoeiros, ou das varinas. Os espaços em que o poeta se move, citadinos e campestres, são descritos em íntima relação com as personagens que os habitam, ou para salientar as características positivas das mesmas, ou para reforçar os seus aspectos negativos, ou ainda para dar conta do modo como o próprio poeta se vê dentro do quadro que constrói. Coloca-se, então, a questão: onde reside a singularidade?

Em alguns dos seus poemas, a vida quotidiana da cidade de Lisboa é amplamente descrita, o que nos poderia conduzir à afirmação de uma possível continuidade da poesia de Nicolau Tolentino; a natureza positiva dos valores que Cesário parece associar ao espaço campestre permitir-nos-ia apontar para a sugestão de uma nova arcádia; o relevo dado ao trabalho dos homens, emigrados dos campos, por contraposição ao luxo daqueles que habitam as mansões dos bairros modernos da cidade, ilustraria uma teoria sobre política do trabalho, ou uma revolução em potência. Pois a singularidade do comum na poesia de Cesário reside em algo mais simples, isto é, na alteração da dicção poética em português. Assim se assume como o primeiro poeta sem qualquer precedente na história da literatura portuguesa.

Em «Nevroses», o poeta afirma que nas letras conhece “um campo de manobras”. O verso permite-nos depreender um trabalho poético consciente, no qual cada objeto, cada ação descrita, obedecem a um propósito. Ao percorrermos poemas como «Nevroses», «Cristalizações», «Num Bairro Moderno», «Em petiz», «O Sentimento dum Ocidental», «Nós», deparamo-nos com descrições complexas, rigorosamente trabalhadas, as quais Cesário pretendeu orientadas pelo Real e pela Análise. Nestas composições, cada objecto, cada acção, cada sentido, é explorado até à sua máxima fisicalidade, desde o volume obtido do esforço muscular até à agudização do som mínimo:

 

“[…]

Dois assobiam, altas as marretas

Possantes, grossas, temperadas d’aço;

[…]

E aos outros eu admiro os dorsos, os costados

Como lajões!”

 

(«Cristalizações»)

 

“Por baixo, que portões! Que arruamentos!

Um parafuso cai nas lajes, às escuras:

[…]”5

 

(«O Sentimento dum Ocidental»)

Assiste-se, deste modo, à transformação gradual da dicção pela transposição das realidades comuns, até então entendidas como insignificantes e inadequadas, para poesia. Melhor se entende a novidade da linguagem de Cesário, quando se associam expressões como a nevrose, a náusea, o “choro da nora”, a “união sonora” do ferro e da pedra, o amor aos ácidos, aos gumes e “aos ângulos agudos”, a celebração do funcionamento mecânico da cidade, aos versos decassílabo e alexandrino, métricas outrora dedicadas a temas nobres ou heróicos. A estranheza das expressões de Cesário só se desconstruiu nas grandes odes de Álvaro de Campos:

 

“Que importa tudo isto, mas que importa tudo isto

Ao fúlgido e rubro ruído contemporâneo,

Ao ruído cruel e delicioso da civilização de hoje?”6

 

A questão de Campos é pertinente: que importa tudo isto? O exercício descritivo de Cesário, e a consequente dicção a este associada, revelam, não a importância dos objectos, não a importância das ações descritas, mas a pertinência da percepção, da sensação:

 

“Eu tudo encontro alegremente exacto.Lavo, refresco, limpo os meus sentidos,

E tangem-me, excitados, sacudidos,

O tacto, a vista, o ouvido, o gosto, o olfacto.”7

 

(«Cristalizações»)

“Como eu vos amo de todas as maneiras,Com os olhos e com os ouvidos e com o olfacto

E com o tacto (o que palpar-vos representa para mim!)

E com a inteligência como uma antena que fazeis vibrar!”8

 

(«Ode Triunfal»)

 

Os seus poemas constituem um exercício permanente e progressivo de adequação da linguagem às percepções do quotidiano. A extensão das composições pode, inclusivamente, ilustrar esse mesmo exercício: o trabalho poético sobre as imagens, concretizado em descrições que reforçam as sensações, requer espaço para uma progressão que Cesário pretendeu feliz.

O tratamento que Bernardo Soares confere à paisagem auxilia-nos na compreensão da natureza da descrição de Cesário. A referência ao semi-heterónimo pessoano, que redigiu a sua autobiografia sem factos em prosa, bem como a minha incorrência no termo ‘descrição’ para abordar um trabalho poético que lhe está distante no tempo, como é o caso de Cesário Verde, podem parecer incoerentes. Porém, não o são. No que diz respeito a este último, quer a estrutura, quer a extensão da composição, são elementos fundamentais. A descrição, e porque não em verso, constitui-se o modo mais adequado de desenvolver e exercitar uma poesia que Cesário sabe ser nova, desconhecendo-lhe porém o nome. Bernardo Soares difere na prosa e na intenção. As inúmeras paisagens descritas no Livro do Desassossego servem, por um lado, o exercício virtuosístico de um autor que por trás da máscara se sabe genial e, por outro, constituem-se como critério de arrumação de um conjunto de textos tão variados quantas as sensações experimentadas. Para Soares, a paisagem, “tão admirável como quadro, é em geral incómoda como leito”. A construção das suas descrições da cidade de Lisboa, se lhe permitem o exercício da virtuosidade da sua prosa, simultaneamente acentuam o seu mal-estar de ser, a sua inquietação:

 

“As pancadas de martelo à porta do caixoteiro soam com uma estranheza próxima. Soam grandemente separadas, cada uma com eco e sem proveito. Os ruídos das carroças parecem de dia em que vem trovoada. As vozes saem do ar, e não de gargantas. Ao fundo, o rio está cansado.

Não é tédio o que se sente. Não é mágoa o que se sente. É uma vontade de dormir com outra personalidade, de esquecer com melhoria de vencimento.”9

 

A alternância entre percepções exteriores e reacções interiores acentua a inadequação do escritor aos contextos que lhe são próximos. A sua identificação com aspectos da paisagem serve apenas como ponto de partida para reflexões introspectivas e complexas:

 

“Pobres das esperanças que tenho tido, saídas da vida que tenho tido de ter! São como esta hora e este ar, névoas sem névoa, alinhavos rotos de tormenta falsa. Tenho vontade de gritar, para acabar com a paisagem e a meditação”.10

 

A definição que Soares apresenta de paisagem não é menos significativa, ainda que pouco clara. Ao negar a afirmação de Amiel, de que a paisagem é um estado de alma, Soares inverte os termos dessa mesma asserção e, suportado no esforço de objetivação que lhe é recorrente, adianta-nos que é mais correto dizer-se que um estado de alma é uma paisagem.

Em que medida estes trocadilhos do Livro do Desassossego são relevantes para a leitura de Cesário? Creio que a descrição que dele faz Alberto Caeiro auxilia o esclarecimento da questão: de acordo com o guardador de rebanhos, Cesário seria um camponês, “preso em liberdade pela cidade”11. Substituição de um trocadilho por outro? A confusão esclarece-se se atendermos ao fato de que Cesário, ao recorrer ao comum, e ao descrevê-lo com singularidade, realiza um exercício poético, cuja natureza é em tudo semelhante àquele que encontramos no Livro do Desassossego. Ou seja, Cesário descreve paisagens citadinas, redigindo todas as percepções que os espaços lhe sugerem, quer seja em movimento, cor, som, cheiro ou forma. Não se observa formalmente, como em Soares, a alternância entre a descrição e a análise dos efeitos que a mesma produz no sujeito. No entanto, o trabalho poético sobre a diversidade dos objectos de imitação que a cidade lhe sugere não resulta somente na alteração singular da dicção. Cesário percorre a cidade de Lisboa sem ir a lugar algum, revelando-se um inadaptado e, como tal, não se afastando do ajudante de guarda-livros que descreveu a mesma cidade, do cimo da sua janela. Para este, a Rua dos Douradores era a sua realidade toda; para Campos, Lisboa era o seu lar. E para Cesário, o camponês preso em liberdade pela cidade?

A designação de Caeiro apresenta-nos os dois espaços privilegiados da poesia de Cesário, respectivamente o campo e a cidade. Tem sido amplamente debatido o valor de cada um dos contextos, como se ambos se pudessem tratar diferentemente. E, no entanto, as palavras de Caeiro fornecem os elementos suficientes para se dissolver a discussão, no sentido em que, tanto o campo, como a cidade, na poesia de Cesário, têm valor igual. Incorrer-se-ia em erro, ao afirmar que Lisboa corresponde ao espaço privilegiado para o desenvolvimento de uma linguagem poética nova. Na sua grande maioria, as conotações que Cesário atribui à cidade são negativas e, no entanto, alguns dos seus poemas mais belos resultam das mesmas. Repetir-se-ia o mesmo erro, ao considerar o campo como espaço idealizado e oposto à força esmagadora da cidade. Apesar dos quadros idílicos dos primeiros poemas se identificarem com o espaço campestre, e de este se associar à conciliação, à união ou vida feliz, o campo corresponde a um espaço idealizado, desconstruído de uma forma desconcertante no poema «Em Petiz». Se a classe trabalhadora e desprovida, na cidade, é privilegiada nas descrições de Cesário, e associada a um determinado conjunto de valores que se identifica pelo que é vigoroso e salutar, no campo a mesma é denegrida e desprezada pelo poeta:

 

“Fugia com terror dos pobrezinhos!

E os pobres metem medo! Os de marmita,

Para forrar, por ano, alguns patacos,

Entrapam-se nas mantas com buracos,

Choramingando, a voz rachada, aflita.”12

 

A «Tabacaria» de Campos apresenta uma correspondência com o poema de Cesário, resumindo eficazmente o dilema de «Em Petiz»:

 

“Fui até ao campo com grandes propósitos.

Mas lá encontrei só ervas e árvores,

E quando havia gente era igual à outra.”13

 

Cesário não é camponês, nem a cidade lhe basta na matéria poética que lhe cede. A sua inquietação, que se comunica na sucessividade de descrições, foi brilhantemente adjetivada por Caeiro, ao designar Cesário como estando “preso em liberdade”. Repare-se que não mencionei ‘cidade’, justamente porque o mais importante do seu percurso poético não diz respeito apenas aos espaços em que se move, e aos objectos que esses mesmos contextos lhe sugerem. Creio que a singularidade da poesia de Cesário vai um pouco mais além, e William Wordsworth apresenta a explicação adequada.

No seu prefácio à segunda edição de Lyrical Ballads, Wordsworth, ao prevenir o leitor quanto à possível estranheza da sua poesia, adianta que deve ser o sentimento desenvolvido no poema a conferir importância à ação e situação, e não o contrário14. Ora, a singularidade dos incidentes descritos por Cesário, em poemas como «Num Bairro Moderno», «Cristalizações» ou «Em Petiz», não nos conduz à questionação de sentimentos; capta, sim, a nossa atenção sobre as personagens poetizadas, as suas ações e os seus movimentos. Onde pára então o sentimento? Terá a singularidade desta poesia chegado ao ensaio de uma teoria sobre o fingimento?

A descrição do comum com singularidade em Cesário Verde traduziu-se, indiscutivelmente, na alteração da dicção poética em português, no tratamento descritivo inaudito de imagens e ações em verso, na valorização da sensação, e na inclusão do poeta inadaptado nessas mesmas descrições. O ‘ver’ absoluto, que levou Fernando Pessoa a classificá-lo como seu Mestre, não pôde ser compreendido pelo público leitor da segunda metade do século XIX, na medida em que os seus versos desenvolveram uma linguagem poética, cuja inteligibilidade só o tempo tornou possível. É também o tempo que, hoje, nos permite perceber que a singularidade de Cesário se traduz numa poesia essencialmente moderna. E a composição que melhor o ilustra é «O Sentimento dum Ocidental».

Esta composição, numa primeira leitura, em nada parece diferir de «Cristalizações», ao descrever o reboliço da cidade que anoitece: os carpinteiros regressam, enfarruscados, de um dia de trabalho, dois dentistas conversam à varanda, os estabelecimentos encerram, e as luzes de Lisboa vão-se, gradualmente, acendendo; o tinir das louças nos hotéis da moda lembra-nos as casas apalaçadas “num bairro moderno”; o Camões, que fora pedinte no poema «Em Petiz» é agora uma estátua velha, rodeado de pimenteiras. As semelhanças são óbvias e pertinentes, na medida em que «O Sentimento dum Ocidental» contém, metonimicamente, a obra toda de Cesário. Este exercita, de modo singular, a procura de uma linguagem poética que se adeque à sua inquietação. O ritmo da sua descrição, despoletado pelo “desejo absurdo de sofrer” anunciado no início do poema, dá-nos a imagem exata de uma cidade inteira que se recolhe e, simultaneamente, a de um poeta que, introspectivamente, se reflete a si próprio.

 

“Semelham-se a gaiolas, com viveiros,As edificações somente emadeiradas:

Como morcegos, ao cair das badaladas,

Saltam de viga em viga os mestres carpinteiros.

Voltam os calafates, aos magotes,De jaquetão ao ombro, enfarruscados, secos;

Embrenho-me a, a cismar, por boqueirões, por becos,

Ou erro pelos cais a que se atracam botes.”

 

A paisagem transforma-se assim, à semelhança do exercício de Soares, num estado de alma que se quer clarificado. E para que tal aconteça, o ‘ver’ de Cesário é necessariamente outro. Até esta composição, o poeta achou sempre assunto a quadros revoltados, e virtuosisticamente ensaiou formas de composição diversas, recorrendo insistentemente a vocábulos do campo da pintura: recordemos a metamorfose da vendedeira de legumes numa criatura que em tudo pareceria saída do pincel de Arcimboldo, o pic-nic de burguesas ou os quadros campestres de «Nós». Porém, em «O Sentimento dum Ocidental», o poeta descreve com uma “luneta de uma lente só”. O olhar de Cesário já não é apenas aquele que capta a realidade substancial das coisas, mas sim aquele que Wordsworth designou na penúltima seção de The Prelude como o ‘intellectual eye”15. Este,designando-se como peregrino que, através do poema que se vai construindo, procura a mais alta Verdade (XI:392-3), encontra na trivialidade das coisas passageiras a possibilidade da mesma:

 

“[…] the mind, intoxicate

With present objects and the busy dance

Of things that pass away, a temperate shew

Of objects that endure, and by this course

Disposes her

[…] To seek in Man, and in the frame of life,

Social and individual, what there is

Desireable, affecting, good or fair,

Of kindred permanence, […]”

(XII:33-41)

 

A poesia de Cesário, por um lado, não se afasta da proposta de Wordsworth: o percurso aparentemente acidental pelas ruas da cidade constitui-se como recurso poético que estrutura uma outra progressão, interior, através da qual o poeta busca igualmente a sua verdade, isto é, um livro que exacerbe. Por outro lado, e contrariamente a Wordsworth, Cesário não redige com a consciência do valor da sua poesia. A sua progressão na cidade equivale, no plano da redacção, à formulação e reformulação de percepções, como exercício continuado de uma linguagem nova. Este trabalho é claramente ilustrado pelas referências recorrentes ao impacto das percepções no sujeito que as observa, traduzindo a consciência do poeta que, ao exercitar possibilidades de poesia, analisa a sua forma de ver, quer o mundo, quer o modo como se posiciona no mesmo:

 

“E o fim da tarde inspira-me; e incomoda![…]

E eu desconfio, até, de um aneurisma

Tão mórbido me sinto, ao acender das luzes;

[…]

“E eu sonho o Cólera, imagino a Febre,Nesta acumulação de corpos enfezados;

[…]

Cercam-me as lojas, tépidas. Eu penso

Ver círios laterais, ver filas de capelas,

[…]”

(«O Sentimento dum Ocidental»)

 

E esta posição não é confortável. Cesário tematiza, pela primeira vez em português, a consciência da inadaptação, quer em relação aos contextos em que vive, quer a uma poesia que, sem que se apercebesse, estava já concretizada. A questionação do seu talento, que fora abordada no poema «Nevroses», é retomada n’ «O Sentimento dum Ocidental» e com uma conotação profundamente negativa, mas dúbia, nas secções III e IV do poema. Por um lado, os versos “E eu, que medito um livro que exacerbe,/ Quisera que o real e a análise mo dessem:[…]” e “Não poder pintar/ Com versos magistrais, salubres e sinceros,[…]” reforçam a persistência do poeta na sua busca pela linguagem poética que, idealmente, seria bem recebida pelos seus leitores. Por outro lado, o modo como Cesário trata a figura de Camões não deixa de ser intrigante. Em «Nevroses», deparamo-nos com a referência a uma epopeia morta, rasgada no fundo da gaveta; no poema «Em Petiz», Camões não se distingue dos restantes mendigos que pedem esmola nos campos senão pela sua pala verde; e n’ «O Sentimento dum Ocidental», a figura do épico de outrora ergue-se como estátua velha. Atendendo ao fato de que esta última composição integrou uma edição comemorativa do tricentenário da morte de Camões16, torna-se evidente que Cesário, mesmo exercitando possibilidades poéticas novas, se demarca relativamente ao único poeta, cujo génio poderia ensombrar a sua poesia. A mesma angústia seria fortemente sentida por Fernando Pessoa.

Álvaro de Campos traduz, de modo sublime, a inquietação de Cesário em «O Sentimento dum Ocidental», no segundo excerto de ode, ao afirmar:

 

“Cada rua é um canal de Veneza de tédios

E que misterioso o fundo unânime das ruas,

Das ruas ao cair da noite, ó Cesário Verde, ó Mestre,

Ó do «Sentimento de um Ocidental»!

Que inquietação profunda, que desejo de outras coisas,

Que nem são países, nem momentos, nem vidas,

Que desejo talvez de outros modos de estados de alma

Humedece interiormente o instante lento e longínquo!

Um horror sonâmbulo entre luzes que se acendem,

Um pavor terno e líquido, encostado às esquinas

Como um mendigo de sensações impossíveis

Que não sabe quem lh’as possa dar…”17

É justamente a inquietação profunda que constitui o sentimento do ocidental que, procurando pelo exercício poético uma nova linguagem para a poesia, se tornou, na sua análise, estrangeiro.

A tematização da consciência íntima das coisas, elaborada poeticamente pelo desdobramento do poeta, simultaneamente, naquele que observa a circunstancialidade e no que a pensa escrevendo, inaugura na literatura portuguesa uma singularidade que só pode ser verdadeiramente compreendida recorrendo a outra poesia. A leitura que Fernando Pessoa fez de Cesário, multiplicada pelos seus heterónimos, é ainda hoje a mais atual. O exercício descritivo de Bernardo Soares, a inadaptação de Álvaro de Campos ao caos das suas sensações, e o objetivismo de Caeiro na visão da natureza como partes sem um todo, são extensões do sentimento deste ocidental, que permanece numa posição histórico-literária pouco definida e justa. A sua obra, ainda que breve, é completa, e atesta a possibilidade de a poesia ser, mesmo quando parece não existir a linguagem adequada que a possa expressar:

 

“Se eu não morresse, nunca! E, eternamente,

Buscasse e conseguisse a perfeição das coisas.”18

 
 
Notas
 
1 VERDE, Cesário. Cânticos do Realismo e Outros PoemasTeresa Sobral Cunha (Ed.). Lisboa: Relógio d’Água Editores, 2006. «O Sentimento dum Ocidental», I:1, p. 132; IV:4, p. 137.

2 PESSOA, Fernando. Páginas sobre Literatura e Estética. Organização, introdução e notas de António Quadros. Mem Martins: Publicações Europa-América, 1986,  pp. 126-129.

3 SOARES, Bernardo. Livro do Desassossego. Richard Zenith (Ed.). Lisboa: Assírio & Alvim, 1998. Frag. 130, p. 150.

4 Cf. IdemIbidem, Frag. 83, p. 112.

5 Cf. VERDE, Cesário, op. cit., «Cristalizações», p. 123; «O Sentimento dum Ocidental», IV:2, p. 136.

Vide BERARDINELLI, Cleonice (Ed.). Poemas de Álvaro de Campos. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1990. «Ode Triunfal», vv. 207-210, p. 72.

7 Cf. VERDE, Cesário, op.cit., «Cristalizações», p. 124.

8 Cf. Poemas de Álvaro de Campos, «Ode Triunfal», vv. 87-90, p. 68.

9 Cf. SOARES, Bernardo, op.cit., Frag. 78, p. 108.

10 Cf. Idemibidem, Frag. 79, p. 109.

11 CAEIRO, Alberto. Poesia. Fernando Cabral Martins e Richard Zenith (Ed.). Lisboa: Assírio & Alvim, 2004. Poema III, p. 26.

12 Cf. VERDE, Cesário, op. cit., «Em Petiz», II:1-8, p. 119.

13 Cf. Poemas de Álvaro de Camposvv. 29-31, p. 197.

14 WORDSWORTH, William, COLERIDGE, Samuel T. Lyrical Ballads. R. L. Brett and A. R. Jones (Ed.). London; New York: Methuen, 1963, p. 248.

15 WORDSWORTH, William. The Prelude 1799, 1805, 1850. J. Wordsworth, M. H. Abrams, S. Gill (Ed.). New York; London: W. W. Norton & Company, 1969. Book XII:57.

16 «O Sentimento dum Ocidental» integrou o número especial do Jornal de Viagens que, em 1880, celebrou o tricentenário da morte de Luís de Camões.

17 Cf. Poemas de Álvaro de Campos, Excerto de Ode II:114-125, pp. 78-79.

18 Cf. VERDE, Cesário, op. cit., «O Sentimento dum Ocidental», IV:4, p. 137.

 

 

Bibliografia

 

BERARDINELLI, Cleonice (Ed.). Poemas de Álvaro de Campos. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1990.

CAEIRO, Alberto. Poesia. Fernando Cabral Martins e Richard Zenith (Ed.). Lisboa: Assírio & Alvim, 2004.

PESSOA, Fernando. Páginas sobre Literatura e Estética. Organização, introdução e notas de António Quadros. Mem Martins: Publicações Europa-América, 1986.

SOARES, Bernardo. Livro do Desassossego. Richard Zenith (Ed.). Lisboa: Assírio & Alvim, 1998.

VERDE, Cesário. Cânticos do Realismo e Outros Poemas. Teresa Sobral Cunha (Ed.). Lisboa: Relógio d’Água Editores, 2006.

WORDSWORTH, William. The Prelude 1799, 1805, 1850. J. Wordsworth, M. H. Abrams, S. Gill (Ed.). New York; London: W. W. Norton & Company, 1969.

WORDSWORTH, William, COLERIDGE, Samuel T. Lyrical Ballads. R. L. Brett and A. R. Jones (Ed.). London; New York: Methuen, 1963.
 
 

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