AS PRIMÍCIAS: PERSONAGENS E SENTIDO ALEGÓRICO NO TEXTO DRAMÁTICO

Lourdes Kaminski Alves
Universidade Estadual do Oeste do Paraná
 
 

FUNÇÃO SEMIOLÓGICA DO CENÁRIO E CATEGORIAS DO TEMPO E DO ESPAÇO: TEXTO E CONTEXTO
Nos últimos anos da década de 1970, Dias Gomes escreve As Primícias, período em que começava a distensão política no país. A peça é escrita numa linguagem metafórica, já que a censura continuava a existir, podendo ser lida como uma sátira ao poder absoluto que começava a desmoronar, talvez advindo, daí, o projeto estético e ideológico da peça, que difere das demais peças do autor quanto à estrutura e o tratamento das personagens. Segundo o próprio Dias Gomes, em As Primícias (…) lançava mão do medieval ‘direito de pernada’, ou, direito da primeira noite’ – jus primae noctis – para denunciar que outras formas do direito de violentar ainda estavam em vigor (Gomes, apenas um subversivo 300).

A peça foi encenada pela primeira vez em 1977 e teve sua primeira edição publicada pela editora Civilização Brasileira em 1978. As Primícias apresenta uma trama ambientada em uma “aldeia da Europa ou da América Latina entre os séculos VI e XX” (Gomes 07). Interagem na peça as personagens: Proprietário, Mara, Lua, Donana, Vigário, Senhora, 1a Donzela, 2a Donzela, 3a Donzela e 1o Noivo, além dos figurantes: Padrinho, Madrinha, 2o Noivo, 3o Noivo e 4o Noivo. A princípio, a peça foi escrita para um musical, tendo seu suporte de linguagem explorado por meio do verso, de modo que a estrutura rítmica do coro chama a atenção do leitor/platéia; escrito em redondilha menor lembra o ritmo das cantigas de amor medievais. A peça divide-se em sete quadros, cuja ação dramática concentra-se em três cenários fechados, que, por sua vez, dialogam entre si, denotando sentidos opositivos que irão refletir diretamente nos significados da trama.

Apesar da variedade de atos e de cenas, o enredo dramático está norteado pela unidade de ação. Entende-se por unidade de ação a concentração do interesse dramático sobre um episódio único, escolhido como o núcleo da peça. O material mítico ou história ficcional sofre um recorte qualitativo; o autor seleciona um momento, um episódio de substrato factual, como centro da representação. Será a partir desse centro e em função dele que os espectadores ficarão conhecendo, por meio das personagens, os acontecimentos anteriores e posteriores. Essa concentração é indispensável para se conseguir a densidade dramática, pois, a diluição da história ficcional, em vários episódios, e em tempos e lugares diferentes desvirtuariam a atenção do público com relação à carga semântica que a ação dramática quer transmitir.

Em As Primícias o cenário que comporta a casa da noiva é descrito como um ambiente pobre, rural e festivo, sugerindo a imagem de uma aldeia antiga e seus camponeses. Na descrição da capela, simbolizada pelo altar enfeitado de rosas e iluminado pela luz do luar, com a presença da cruz de Cristo, tem-se a representação de imagens que evocam o sentido mítico-religioso que perpassa toda a ação dramática. A casa do Proprietário é um índice do espaço da nobreza em oposição à casa de Mara. A sala da Casa Grande, o quarto do Proprietário e a grande cama, cujos lençóis brancos são trocados pela Senhora, com esmero, de quem prepara uma mesa para um banquete ou para uma celebração, ratificam a ideia de poder.

No primeiro quadro, a representação dramática tem início com o coro. Ao contrário do coro da tragédia antiga, que era formado por anciãos e pessoas importantes, aqui é formado por três donzelas. No entanto a função tradicional do coro se mantém. As donzelas cantam e dançam ao som de um sino festivo, por meio do qual, se conhece o desenrolar dos acontecimentos.  O sino, ao mesmo tempo em que é revestido de um valor simbólico, funciona como índice, anunciando a celebração do casamento dos noivos Lua e Mara. O coro canta a paixão carnal e as núpcias, deixando entrever, logo no início, a dúvida e a ambiguidade de sentido sobre o destino da noiva: 1ª Donzela – Cuidado com o bolo/ foi feito de nuvens/ e de fios de luar (As Primícias, p. 12).

Tal como na tragédia antiga há uma polaridade entre o coro e a personagem. O coro, elemento coletivo e anônimo tem o papel de exprimir em seus temores, suas esperanças e julgamentos, os sentimentos dos espectadores que compõem a comunidade cívica. A personagem, elemento individualizado cuja ação forma o centro do drama representa a figura de um herói de uma outra época. A duplicação do coro e do herói trágico corresponde, na própria linguagem da tragédia, uma dualidade; de um lado, o lirismo coral, de outro, os protagonistas do drama, uma forma dialogada, cuja métrica é mais próxima da prosa. As personagens tornam-se objeto de um debate  – são postas em questão diante do público.

Em As Primícias a balada do coro metaforiza a força guerreira do noivo e o destino frágil da noiva, assumindo por meio da linguagem um tom expressionista, que ora se dirige à noiva, ora ao noivo, porém o sentido das palavras do coro remete para o destino da noiva que se encontra selado. Aproximando-se do quadro trágico do século V, em que o herói deixava de ser um modelo, na medida em que se tornava para si mesmo e para os outros, um problema.

Na fala do Proprietário está presente o determinismo das condições sociais e políticas que impera nos domínios de suas terras e no destino dos homens. Ao ser caracterizado por um papel social, ao invés de um nome, remete a uma situação universal de abuso de poder:

 

Proprietário – Casar, casar… isso é bom pra aumentar a população. Precisamos de mão de obra num país em construção. Por incrível que pareça, em toda essa região, não se chega a dois braços por légua de extensão. Muita terra sem proveito, sem render fruto ou tributo, sem a menor serventia. Até dói no coração. Por isso eu digo, vocês precisam casar e ter muitos, muitos filhos mesmo, que pra todos eles eu tenho o futuro assegurado: uma pá e uma enxada, um bom pedaço de terra. Quem sabe até um arado? Palavra, em minhas terras ninguém fica sem trabalho, ou sem minha proteção. (As Primícias, p.16)

 

Por meio da fala do Proprietário se estabelece a descrição da ação, apontando para a ideia de um ritual que lembra as festas populares de celebração no período medieval.  A ação dramática é constantemente interrompida pelo coro que canta as virtudes do Proprietário, ratificando o sentido da ação. Como se observa, a função do coro nesta peça é fundamental, ao mesmo tempo em que traz por meio da cantiga uma simbologia que lembra os rituais medievais, assegura o fio condutor da trama, interpretando os estados de espírito das personagens.

Na tragédia antiga o coro representa o meio geral, absolutamente impessoal, dos sentimentos, representações, ideias, em que se desenvolve uma ação determinada.  No segundo quadro, a ação dramática muda de cenário para a sala da Casa Grande, aparecendo a primeira peripécia, representada pelo pedido do Vigário ao Proprietário, na tentativa de convencê-lo a desistir da primeira noite de Lua e Mara, localizando-se também, a partir deste quadro, o nó, ou acontecimentos que precedem o clímax. No terceiro quadro, tem-se novamente a mudança de cenário; a ação dramática volta para a casa da noiva, o padre anuncia que o Proprietário não abriu mão do ritual. Todas as personagens, com exceção dos noivos, consentem a arbitrariedade do Proprietário sobre suas vidas, deixando entrever as vozes da submissão ao poder pelo medo da punição. Atitude que coloca em oposição e reforça o perfil dos protagonistas Mara e Lua, delineando seu caráter trágico, com o juramento que realizam entre si.

O cenário em As Primícias tem importância fundamental para compreensão da peça. A encenação desempenha no teatro a mesma tarefa que a descrição exerce no gênero narrativo. Serve para mostrar o meio em que as personagens cumprem seus destinos. Sabe-se que a função do cenógrafo é montar um cenário que esteja de acordo com o assunto da peça, expressando o momento histórico e a condição social das personagens.

Segundo Peacock (1968), a função semiológica do cenário basicamente está ligada às categorias do tempo e do espaço. O teatro clássico sempre foi parcimonioso no uso das categorias do tempo e do espaço. A lei das três unidades prescritas por Aristóteles (1984), praticada com tanto rigor pelos dramaturgos do neoclassicismo francês, especialmente Racine, não permitia mudanças de cenário, nem que a ação dramática se desenvolvesse durante um longo tempo. Por fidelidade ao princípio da verossimilhança e da coerência interna da peça e por sustentação da intensidade dramática, a ação principal não podia ocupar um tempo superior a um dia natural e não podia acontecer em lugares diferentes. O que ocorria em outros tempos e em outros lugares não era representado, mas narrado pelas personagens.

Especialmente a partir da revolução promovida pelo Romantismo, o teatro se liberou dos grilhões da estética clássica, fazendo com que as personagens dramáticas pudessem expressar não somente as angústias do momento presente, mas também as recordações do passado e os sonhos do futuro, vivendo sua problemática existencial em lugares e tempos diferentes.

O teatro contemporâneo, especialmente quanto ao aspecto cenográfico, adquire cada vez mais requintes surpreendentes que ao mesmo tempo em que ganha em expansão de linguagem e expressão afasta-se de suas origens populares. Em As Primícias o coro tem também o papel de interferir como juiz, alertando Mara para que ela não ultrapasse o métron, ou seja, a medida de cada um, assim como na tragédia antiga.

A personagem Mara poderá ser traída pela força da hybris. Ela defende os princípios nos quais acredita, demonstrando força moral e ética, diferentemente das demais personagens. Exceder o métron é uma insolência feita a si próprio e aos deuses. A punição será automática, já que contra o herói lança-se a áte (cegueira da razão). Este processo desencadeia o acontecer trágico: Mara – Eu até mais do que ele (o noivo) tenho motivo pra discordar, porque é meu corpo, é minha virgindade que vira tributo (As Primícias, p. 29).

O caráter trágico da protagonista começa a ser delineado quando a mesma se dirige ao Vigário (denominação escrita com inicial maiúscula, ressaltando o papel social), o mesmo representa o poder da igreja. O padre é a única personagem que está na condição de argumentar com o Proprietário, representante da força da tradição e do Estado, passando então a ser o interventor que deverá trazer a sentença à heroína.

Também nesta peça Dias Gomes trabalha cuidadosamente o texto das rubricas, linguagem visual, em que a marca da subjetividade do dramaturgo acentua a força do caráter de Mara e aquilo que a coloca superior às outras mulheres da aldeia: Todos se cercam da mesa. MARA empunha a facaCantam, enquanto Mara parte o bolo, servindo a um por um (As Primícias, p. 31 – Rubrica).

A peça é permeada pelo conflito que tem como unidade o “direito de pernada” ou jus primae noctis, criando uma série de relações opositivas.  O noivo, Lua, aparece como personagem ancorada em Mara. Lua não tem a mesma integridade absoluta da personagem Mara. É ela a personagem feminina que tem a consciência de que não deve ceder. O medo e a submissão das demais personagens vão reforçando a integridade moral da protagonista: Mara – Mãe, eu e Lua tomamos uma decisão. Vamos nos rebelar, dizer não ao Proprietário… Sabemos que isso vai nos custar alguma coisa. Mas estamos dispostos a pagar o preço (As Primícias, p. 61).

Assim como as personagens de Sófocles que sentem necessidade de explicar suas ações e de dizer quais são suas regras de conduta, Mara lança a pergunta para poder responder a que veio: Mara – E quando, quando vai chegar?!  Se alguém não começa, mesmo se arriscando, nunca, nunca que as coisas vão mudar! (As Primícias,p. 63).  A força da igreja, representada pelo Vigário, é que conduz Mara ao “cadafalso”, representado pelo quarto do Proprietário. Compungida pela força da Igreja e do Estado, não resta outra saída para a dignidade da heroína a não ser ceder. Assim como em Antígona, de Sófocles, em que o coro da tragédia antiga canta a derrota da heroína, aqui, também, o coro ratifica a ação das personagens e canta a queda da protagonista.

No quarto quadro, tem-se nova mudança de luz e nova peripécia, com a chegada tardia de Lua. O coro encerra o quadro cantando a dor do noivo diante do aviltamento. No decorrer da ação dramática, observa-se a oposição em relação aos gestos atitudinais entre os protagonistas Lua e Mara. Enquanto ele faz largo uso da palavra para tentar convencer-se a si próprio e aos demais sobre a inclemência do Proprietário, Mara emprega a ação para mostrar que é preciso agir para não perder a dignidade e não morrer: Lua – Levá-la… Numa bandeja de prata! Enfeitada com os ramos da minha vergonha! (As Primícias, p. 71).

Também o quarto quadro termina com a retirada das personagens de cena e a entrada do coro, executando função explicativa sobre os sentimentos das personagens. No quinto quadro, a cena dramática desenrola-se em novo cenário; o quarto do Proprietário, diante da cama que será trocada por um lençol branco, aos olhos assustados de Mara. Novamente, é reforçada a oposição que diferencia Mara das demais personagens, ao lado da Senhora que tem a sina de trocar lençóis na cama de seu próprio marido. Atitude que mais uma vez chama atenção para o perfil moral e ético da heroína.

Tal como em Antígona as personagens são levadas mais a pensar sobre o seu destino do que mostrar isso em cena; assim, a ação dramática revela o conflito da protagonista, colocando-a por diversas vezes em condição de reflexão sobre a ação do Proprietário e a submissão das outras personagens. No entanto, Mara desculpa a reação destas, compreendendo-as circunscritas à relatividade do tempo e da história, o que, mais uma vez, lhe dá a certeza de que não poderá ceder.

O quinto quadro culmina com o acontecimento que conduzirá ao clímax, representado pela fuga de Mara para ir ao encontro do noivo.  No sexto quadro, tendo por cenário a capela, ocorre a peripécia representada pela captura de Mara e Lua, indiciando que a heroína não poderá fugir à sua sina. São encontrados pelos quatro noivos que pagaram o tributo exigido pelo Proprietário. Eles, diferentemente de Mara e Lua não têm consciência do aviltamento, agem pelos princípios do pensamento primitivo, têm apenas a certeza que sempre foi assim e assim deverá ser até o fim dos tempos.

O sétimo e, último quadro, desenrola-se no cenário do quarto do Proprietário, antevendo o clímax com o acontecimento patético representado por mais uma peripécia; a protagonista, motivada pela vergonha e pelo aviltamento a que está para ser submetida, fingindo ceder, golpeia o Proprietário no ventre. A ação da heroína marca a ironia trágica cujo sentido se inscreve claramente sob os olhos dos espectadores, enquanto as personagens nem sempre lhe distinguem o sentido. Na tragédia antiga a ironia trágica é explicada pelo emprego, por uma personagem, de fórmulas com um duplo sentido que o seu interlocutor não está em condição de compreender, mas de que o espectador pode compreender o alcance. A ironia trágica é assim denominada porque implica um espectador que assista à ação e que esteja em condições de compreender; também assim denominada porque, na maioria das vezes, contém uma ameaça de morte, implícita, mas iminente. Sófocles faz largo uso de cenas que contemplam tal procedimento.

Na tragédia grega, a ironia trágica não está ligada ao desejo de uma das personagens; não implica que uma engane a outra, que é a sua vítima ignorante; ela ilustra a ignorância dos homens enganados pelos próprios deuses, inspira a distância entre os deuses e os homens. No drama contemporâneo, a ironia trágica se manifesta na relação entre forças opostas, evidenciando as antinomias de classe social, religião, cultura e outros aspectos relacionados a conflitos entre valores.

O desfecho é conduzido pela visão quase naturalista da morte do Proprietário, seguido pelo tom heróico de uma nova história que se anuncia. Mara é reconhecida como heroína porque foi capaz de libertar seu povo inaugurando um tempo novo, diferente dos heróis trágicos da tragédia antiga.  A protagonista Mara instaura um novo horizonte a partir de uma insubordinação em relação ao destino e ao direito, desequilibrando o mundo que não mais será o mesmo.

Neste sentido, peça As Primícias não tem o mesmo caráter de tragédia em sua plenitude, parecendo haver uma manipulação do gênero por parte do autor, em prol do ideológico. Contudo, mantém a intertextualidade com a tragédia antiga no que se refere à estilização da heroína, à presença das antinomias radicais e à função interventiva do coro.

A peça apresenta uma heroína que se aproxima da ironia trágica e da composição estética dos heróis medievais que atravessam perigosos obstáculos, lutando com a consciência do coletivo a fim de livrar a cidade de algum monstro ou segredo da esfinge para depois merecer a recompensa. Diferentemente da tragédia antiga, um novo tempo histórico permite à heroína, por conhecer e enfrentar o perigo, fugir ao naufrágio inevitável a que estão submetidos os heróis trágicos.

O reconhecimento da heroína é a liberdade por extensão de todas as outras mulheres e dos homens que não terão mais que consentir. Pela sua força heroica, somente ela tem o direito de exibir o troféu representado pelo lençol imaculado, ato de bravura como bandeira desfraldada. É um tempo que pode ser anunciado pela voz feminina que se dirige às testemunhas (plateia), importando apenas que tudo esteja restaurado, e que o povo possa seguir em paz: Senhora – Minhas senhoras e senhores, cabe a mim participar que o nosso bem-amado Proprietário está morto. Tombou em ação heróica, cumprindo o seu dever, vitimado por seu zelo no exercício do poder (As Primícias, p. 100).

Há um deslocamento quanto à estrutura da tragédia antiga, devido ao sentido da peça. A fábula segue a estrutura tradicional das narrativas antigas, momento inicial de tranquilidade (casamento de Lua e Mara em um ambiente festivo quase bucólico); conflito e desestruturação (os noivos não podem fugir à arbitrariedade do jus primae noctis); ação heroica (Mara enfrenta a tradição e põe fim ao sacrifício); restabelecimento da tranquilidade e da ordem inicial (Mara tem o direito de carregar a bandeira da dignidade, da moral e da ética, porque venceu o aviltamento e a tirania, instaurando novamente a paz).  Porém, a ordem inicial não é a mesma ordem após a ação da heroína, ocorre uma ruptura do sentido último da realidade e do horizonte existencial do homem.

A peça As primícias participa do trágico por meio da situação trágica, em que ocorre a libertação do terrível, de acordo com a proposição de Albin Lesky (1982). Conforme o teórico, também na situação trágica pode-se deparar com os elementos que constituem o trágico; há as forças contrárias que se levantam para lutar umas contra as outras, há o homem, que não conhece saída e vê sua existência abandonada à destruição, mas essa falta de saída não é definitiva. A ironia trágica da situação reside na grande derrocada final do Proprietário, corresponde à ironia caracterizadora do desejo de manutenção da ordem e do poder, cuidando, no entanto, de manter as aparências de coerência, camuflando o vínculo com os preceitos da tradição.

Parece certo que a peça não pode ser lida como O pagador de promessas  e O santo inquérito quanto ao conflito trágico cerrado, porém, tem sua importância noconjunto da produção de Dias Gomes,  na medida em que revela a diversidade de estilo do dramaturgo e uma nova situação ficcional possível para o teatro contemporâneo. Se já não é possível a realização plena do herói trágico nos moldes da tragédia antiga, ainda existem ideais que devem ser perseguidos, a partir de novos projetos estéticos e ideológicos a serem exigidos pela criação dramática.

A PERSONAGEM E O SENTIDO ALEGÓRICO

Como já foi dito, o processo de construção estético-dramático da peça funciona alegoricamente. O Proprietário, personagem cuidadosamente elaborada, poderia ser o modelo do político beneficiado por estruturas interioranas atrasadas e pelo eleitorado cabresteiro. A personagem do Proprietário evoca a figura do senhor feudal, que tem subordinado a si todas as outras classes sociais, manipuladas habilmente pela religião e pela força do ritual e do poder do mito.

Além disso, a figura do proprietário é revestida de um tom religioso, às vezes sendo comparada à figura de pai eterno, o que reforça a ironia trágica que perpassa toda a cena. Seguro de si, crente de que raciocinava de forma correta e coerente, uma vez que agia segundo as normas instituídas, justificadas e aceitas até então, o Proprietário mostra-se arrogante e poderoso, comparando-se ao grande pai. É esta sua desmedida, este seu enfrentamento ousado do poder que torna possível o conhecimento da possibilidade de uma outra ordem. O Proprietário exige que se cumpra o ritual, independente do pedido do Vigário e dos noivos. Aqui, se estabelece seu erro trágico, harmatía, a conduzi-lo à derrota e à morte humilhante no papel que exercia.

A fala do Proprietário reforça a importância e o entendimento do ato do jus primae noctis, indiciando o peso da luta que será empreendida pela heroína:

 

Proprietário – Porque o sangue derramado ratifica uma aliança, sela um pacto político, um contrato social onde os que estão por cima e os que estão por baixo se unem espontaneamente no sublime amor carnal para declarar sua completa  concordância com a ordem e com as posições aqui estabelecidas. Este o sentido do ato, o mais é asneira ou maldade de  quem quer deturpar os fatos.  (As Primícias, p. 45)

 

A lógica da personagem Mara como personagem heroica, detentora de uma totalidade ética e moral contem em si o elemento trágico, não pelo seu fim, mas pelo que ousou, desafiando a tradição cultural e religiosa da época, sendo digna de se colocar no lugar do masculino e inverter a ordem e, como mulher, carregar a bandeira imaculada (o lençol branco). Neste desafio e nesta ousadia, assenta o seu destino final, radicalmente perturbador da normalidade, característico do drama trágico.

A alegoria está marcada pela plasticidade do cenário que remete ao mundo medieval, quase evocado pela lenda; revela-se por meio das guirlandas de flores, da chuva de arroz, das noites de luar, do sangue das donzelas, da fertilização dos campos, do tributo ao proprietário, da obediência e da servidão ao tempo, da manutenção da ordem e da autoridade, do tom religioso, dos rituais de passagem, do tom da celebração, das baladas em redondilha menor.

Tudo isso que se apresenta como pano de fundo para a peça e que, ao mesmo tempo, está repleto de ritmo e de imagens mítico-religiosas envolve as personagens com as características de um mundo primitivo, que pode se estender alegoricamente, para além do tempo histórico insinuado na trama dramática por meio da expressividade linguística e sonora do texto.

SÍMBOLOS-FORÇA E A LINGUAGEM DRAMÁTICA

A peça é alimentada estruturalmente por um conjunto de símbolos-força, que desde sempre tem constituído matéria fundamental da literatura e da arte. Um conjunto de semantemas míticos, estruturando um discurso narrativo ficcional pode ser percebido em imagens como: o bolo da noivafios de nuvem e de luar, expressões que compõem uma  imagem arquetípica da noiva.

Os símbolos da força e do poder são restaurados por expressões como: espada e cetro do senhor que remetem ao sentido do falo masculino e às ideias de autoritarismo e força de um regime marcado pelo patriarcado.

As imagens de lençóis brancos e mácula no lençol aparecem como símbolos de pureza, também possuem força indicial de um ritual de passagem.

Por sua vez, a cama do proprietário e a mesa posta são imagens que sugerem atos de celebração. O altar, interior da igreja, lugar em que os noivos procuram refúgio é um símbolo que representa um microcosmo catalisador do sagrado. “O altar simboliza o recinto e o instante em que um ser se torna sagrado, onde se realiza uma operação sagrada” (Chevalier; Gherbrant 40). Também o sangue das virgens é uma imagem arquetípica que remete às festas da colheita e da fertilização do solo presente em todas as civilizações agrárias. Esses símbolos-força estatuem-se como uma espécie de operadores mítico-narrativos do texto dramático, assim designados por se constituírem como núcleo relacional entre personagens; são, igualmente, elementos escaladores do tempo ou do espaço histórico da narrativa, constituindo-se importantes elementos catalisadores dos sentidos da ação dramática da peça, já que estes símbolos, enquadradores da história e como que a ela exteriores, funcionam como atrativos imaginários que, no seu conjunto, dotam-na de um sentido de características míticas.

Importante observar que os símbolos-força que enquadram e animam o texto dramático da peça parecem ter sido extraídos conscientemente, pelo dramaturgo, de um latente fundo cultural das leituras da civilização ocidental, formado pelo sistema das grandes narrativas. Tais como os contos populares e as lendas medievais, conjunto perfeitamente justificável com o legado de uma civilização de raízes judaico-cristã e greco-romanas, esses símbolos, na peça, evocados pelo processo de composição do dramaturgo e pela representação das personagens na ação dramática, emergem tocando diretamente o inconsciente do leitor ou da plateia animados por um fundo civilizacional comum, processo que ativa a compreensão dos significados da trama.

Dada a natureza da expressividade linguística da peça, há de se pensar ainda nos nomes e nas representações das personagens. O nome de Lua, o noivo, parece dar conta do sentido de a personagem somente existir ao lado da noiva Mara.

Conforme Chevalier; Gherbrant (2001) é em correlação com o simbolismo do sol que se manifesta o da lua. A lua não tem luz própria, é o princípio passivo do sol. Na ação dramática, porém, o dramaturgo revoluciona este princípio simbólico da passividade feminina e atribui ao noivo capacidades intuitivas e frágeis, quase contemplativas ao lado de Mara que assume o elemento ativo.

No entanto, é importante observar que, ao final da trama, as duas personagens assumem o mesmo valor de protagonismo, nenhuma delas sendo superior a outra. Mara não se compreende sem Lua e este também não tem existência dramática sem Mara. Exatamente como o par antitético mais intimamente complementar de dia-noite, claro-escuro, sol-lua. A lua, devido às suas fases é também símbolo de ritmo biológico da terra, é medida do tempo, frutificadora da vida, guardadora do destino dos homens depois da morte e das cerimônias de iniciação.

E é deste modo que a personagem Lua é aquele que acolhe as vontades inconscientes dos outros homens e, em conjunto com Mara, move as forças rígidas da tradição, simbolicamente a primavera mítica que arranca a humanidade da noite da religião medrosa do terror e da tirania, remetendo por extensão ao tempo da ação dramática que se desenrola pelo espaço de uma tarde ao amanhecer de um novo dia. As outras personagens, tais como o Proprietário, a Senhora, o Vigário e Donana, passam a simbolizar numa só realidade: a morte humana, o pensamento falso e passivo, a vontade resignada das comunidades vencidas por regimes totalitários, o passado e a tradição.

O poder tem seu representante na imagem do falo do homem, como uma espada, ou o cetro da autoridade dos Senhores, cuja predominância política tem modelado a sociedade à medida da sua ideologia, criado o corpo de leis à medida dos seus interesses, e usado discricionariamente o poder político de Estado, diferenciando os homens segundo sua origem social, o seu estatuto econômico, a sua crença religiosa, ou filosófica e a sua cor de pele. O Proprietário, no entanto, sintetiza igualmente todas as personalidades individuais que, destacando-se sobre a comunidade, a instrumentalizam enquanto alavanca da perpetuidade da sua suposta superioridade e suporte do seu aparente brilho.

A força masculina está em oposição direta à feminilidade da protagonista. Mara representa a mulher livre do futuro que luta ao lado do homem e com ele vive e decide, podendo ser vista em grandeza ao lado de outras personagens femininas da dramaturgia a exemplo de Julieta, Inês, Isolda, Heloísa. A vontade de Mara fundir-se-á com a das outras mulheres, como exemplo de determinação e de reconhecimento, e ambas fundir-se-ão à vontade de outros, até que todos os homens e mulheres um dia sejam libertos. Nesse aspecto, As Primícias não encontra diálogo direto com Antígona de Sófocles, pois em suas tragédias Eros é encarado como força subjetiva, como força cósmica da natureza. Porém, a realização de Eros como força objetiva e como paixão subjetiva aparece em Eurípides, opondo-se como revolucionário à tragédia mais antiga, para quem o pathos da paixão tinha por si mesmo de passar ao primeiro plano, numa versão do drama que chegou até os tempos atuais.

Diferentemente, de Antígona de Sófocles, em que o amor de Hemon aparece apenas concisamente e sem traços subjetivos, a protagonista Mara em As Primíciasencontra a salvação motivada pela força do pathos. A forma diferente de tratar do trágico no drama contemporâneo conduz para a mudança do sentido que hoje lhe é atribuído.

Nesse ponto é importante que se clarifique aonde reside o caráter trágico da heroína. Normalmente se entende o gênero trágico, tendo o herói como princípio e fim da tragédia.  Mas tal limitação não é suficiente. Quando se mostra o teor do trágico tão só a partir do homem, esquece-se um outro pressuposto sem o qual a tragédia não chegaria a concretizar-se.  Refere-se àquela realidade que permite o próprio advento do herói trágico. Conforme  Bornheim (1992), este outro elemento fundamental é o sentido da ordem dentro da qual se inscreve o herói trágico.

Se o homem é um dos elementos fundamentais do trágico, outro pressuposto não menos importante é constituído pela ordem ou pelo sentido que forma o horizonte existencial do homem. Evidentemente, a natureza da ordem é variável podendo ir do cosmo ao sentido último da realidade.  Mas só a partir desses dois pressupostos se torna compreensível o conflito que caracteriza a ação trágica. Estar em situação trágica remete àqueles dois pressupostos e, a partir da bipolaridade da situação, faz-se possível o conflito.

De acordo com Aristóteles (1984), não é o caráter que determina o trágico, e sim a ação; o caráter é próprio do homem e restringe-se a ele; a ação, pelo contrário, deve ser compreendida, em última instância, a partir daquela polaridade anteriormente referida; o homem e o mundo em que ele se insere.  No momento em que estes dois polos, de um modo imediato ou mediato, entram em conflito, tem-se a ação trágica.

O conflito se compreende, assim, como suspenso na tensão entre os dois pólos. Deve-se mesmo afirmar que todo trágico reside nesse estar suspenso na tensão entre os dois pressupostos fundamentais. E se é assim, o resultado imanente ao conflito deve ser considerado de importância secundária. Isso significa que a ação trágica não precisa redundar necessariamente na morte do herói, embora a morte possa causar um impacto trágico maior.

De modo algum, porém, é lícito considerar o final feliz como incompatível com a tragédia; se assim fosse, uma boa parte das tragédias gregas não deveria ser classificada como tragédia. Como lembra  Bornheim (1992), o mais importante, longe de ser a morte do herói, é a reconciliação dos dois polos ou a suspensão do conflito, embora a reconciliação possa acontecer por meio da morte. Herói e sentido da ordem se resolvem, pois, em termos de conflito e reconciliação.  Na media em que um dos pressupostos perde sentido e força, o teor trágico da ação enfraquece, perde a sua razão de ser. O fundamento último e radical do trágico é precisamente a ordem positiva do real, desde que o real tenha valor positivo, é possível  verificar o trágico.
 
 
Bibliografía
 
Aristóteles. Arte retórica e arte poética. Trad. Antônio Pinto de Carvalho. São Paulo: Abril, 1984.

Bornheim, Gerd A. O sentido e a máscara. São Paulo: Perspectiva, 1992.

Chevalier, Jean e Gheerbrant, Alain. Dicionário de símbolos. Trad. Vera da Costa e Silva et al. Rio de Janeiro: José Olympio, 2001.

Gomes, D. Dias Gomes: apenas um subversivo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.

___. As primícias. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.

___. O santo inquérito. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.

___. O pagador de promessas.  Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.

Lesky, Albin. A tragédia grega. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 1982.

Sófocles. Édipo Rei; Édipo em Colono;  Antígona. Trad. Mário da Gama Kury. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.

Peacock, R. Formas da literatura dramática. Rio de Janeiro: Zahar, 1968.

Touchard, Pierre-Aimé. Dionísio: apologia do teatro. Trad. Maria Helena Ribeiro da Cunha e Maria C. Queirós de Morais Pinto. São Paulo: Cultrix, 1978.
 
 

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