PENSAMENTO ANIMAL, PENSAMENTO POÉTICO: A BENÇÃO ANTES DO SABER

Maria Elisa Rodrigues Moreira
Universidade Federal de Minas Gerais
 
 

Você acredita mesmo, mãe, que aulas de poesia podem fechar matadouros?
Não.
Então para que fazer isso?
(…)
Eu só não quero ficar sentada, calada. (J. M. Coetzee, A vida dos animais)
 
 
Permitamo-nos uma longa citação de Italo Calvino, que funcionará como um fio a nos guiar num labirinto de ideias, uma vez que seus rastros deixarão marcas indeléveis ao longo de todo esse texto:

Repetidas invasões afligiram a cidade de Teodora ao longo dos séculos de sua história; para cada inimigo desbaratado, surgia um novo que ameaçava a sobrevivência dos habitantes. Depois de expulsar os condores do céu, foi necessário enfrentar a proliferação das serpentes; o extermínio das aranhas permitiu que as moscas se multiplicassem e negrejasse; a vitória sobre os cupins deixou a cidade à mercê das traças. Uma a uma, as espécies incompatíveis com a cidade sucumbiram e foram extintas. Graças à fúria de dilacerar escamas e cascos, de arrancar élitros e penas, os homens deram a Teodora a imagem exclusiva de cidade humana que ainda a caracteriza. (…)

Ao menos era nisso que os habitantes de Teodora acreditavam, longe de supor que a fauna esquecida estava se despertando do letargo. Relegada por longas eras a esconderijos apartados, desde que fora despojada do sistema das espécies agora extintas, a outra fauna retornava à luz dos porões da biblioteca onde se conservavam os incunábulos, saltava dos capitéis e dos canais, empoleirava-se no travesseiro dos dormentes. As esfinges, os grifos, as quimeras, os dragões, os hircocervos, as harpias, as hidras, os unicórnios, os basiliscos retomavam a posse de sua cidade. (Calvino 144-145.)

Que a ficção coloca-se como espaço de ricas possibilidades para a reflexão acerca da produção de saberes não é reivindicação nova, e podemos remontar sua explicitação em termos de um saber narrativo a Jean François Lyotard em A Condição pós-moderna, quando o filósofo francês caracterizava este, principalmente, por retirar de cena exigências típicas do saber científico e por insistir na irredutibilidade do que há de plural no mundo, incorporando, em si mesmo, a multiplicidade dos jogos de linguagem.

Mas a utilização poética para tratar da questão animal e para abordar o universo e o pensamento zoo aparece contemporaneamente tanto como recurso estético quanto reflexivo, seja na literatura ou na filosofia, e com um vigor capaz de ultrapassar e embaralhar as fronteiras que, em Lyotard, ainda parecem muito nítidas, entre os diferentes campos do saber. Procurando nos guiar pela narrativa de Calvino – de uma Teodora constantemente invadida por animais, que são também seguidamente exterminados pelo homem como forma de garantir a esta uma imagem exclusiva de “cidade humana”, por fim invadida pelos animais dos sonhos (para retomar a expressão de Jorge Luis Borges), estes sim aparentemente impossíveis de serem exterminados, marcados que são por seu caráter poético e narrativo –, procuraremos esboçar no espaço deste artigo uma breve reflexão a respeito da ênfase dada por autores como Jacques Derrida e J. M. Coetzee à poética e à ficção como espaços privilegiados para a reflexão sobre o animal, sobre a relação entre homem e animal e sobre os limites que, simultaneamente, aproximam e afastam homem e animal, literatura e filosofia, ciência e poesia.

Chama-nos a atenção, em A vida dos animais, o efeito que provoca a opção de Coetzee pela utilização da narrativa como forma para conduzir suas conferências na Universidade de Princeton – em lugar do tradicional ensaio filosófico que é, normalmente, a forma que domina as Tanner Lectures. Num duplo jogo referencial, o escritor vai tratar o tema da relação entre homens e animais por meio de uma ficção que apresenta uma escritora convidada a proferir duas palestras em uma universidade, nas quais opta por abordar a temática zoo. Suas duas palestras, assim, enfocam não apenas as questões éticas que envolvem a relação entre homens e animais e as diversas implicações daí advindas, mas todo o potencial da ficção para tratar essa questão: Coetzee narra o processo da participação acadêmica de Elizabeth Costello, a personagem-palestrante-escritora no evento de Appleton College, suas apresentações, suas posições e as reações às mesmas. Narra, assim, ao mesmo tempo, o lugar da ficção no espaço da produção de saber, a universidade.

Esse movimento complexo embaralha as fronteiras e as complexifica, multiplicando-as a ponto de não ser possível pensar nas mesmas em termos de oposições simplistas e binárias como as comumente traçadas, seja em termos das relações homem/animal ou ciência/poesia, aspecto que parece ser também um dos pontos chave para o pensamento derridiano em relação à questão:

(…) a limitrofia, eis aí pois nosso tema. Não apenas porque se tratará do que nasce e cresce no limite, ao redor do limite, mantendo-se pelo limite, mas do que alimenta o limite, gera-o, cria-o e o complica. Tudo o que direi consistirá sobretudo em não apagar o limite, mas em multiplicar suas figuras, em complicar, em espessar, em desfazer a linearidade, dobrar, dividir a linha justamente fazendo-acrescer e multiplicar-se. (Derrida, O animal 58)

Nesse movimento, é interessante observarmos o efeito provocado pelas conferências de Coetzee, em especial por sua opção pela ficção. Como de costume no caso das publicações referentes aos ciclos de conferências em questão, solicita-se que quatro estudiosos de diferentes áreas do conhecimento – “de diversas perspectivas que raramente se integram”, “que pertencem a disciplinas acadêmicas inteiramente distintas, que não são nem ao menos disciplinas afins” (Gutmann 13) – comentassem as palestras de Coetzee. E uma questão que foi marcante nesses comentários, além das discussões relativas às abordagens apresentadas pelo escritor a respeito da relação entre homem e animal, foi a questão de sua opção pela narrativa.

Qual o motivo dessa persistência, dessa reverberação, desse incômodo provocado pela narrativa? Porque os animais dos sonhos são aqueles que voltam para povoar a “imagem exclusiva da cidade humana”, de onde esse vigor da poesia que a leva a ser considerada a única voz possível para o animal? Qual a relação das fronteiras homem/animal, ciência/poesia e pensamento/conhecimento?

Derrida afirma que “(…) o pensamento do animal, se pensamento houver, cabe à poesia, eis aí uma tese, e é disso que a filosofia, por essência, teve de se privar. É a diferença entre um saber filosófico e um pensamento poético”. (Derrida, O animal 22). O pensamento do animal não seria também o único pensamento possível sobre o animal? Pensar poeticamente o animal não seria multiplicar as fronteiras entre homem e animal, e assim espessar também as fronteiras entre a poesia e a ciência, entre o pensamento e o conhecimento?

Se dentre todos os animais, o animal que logo sou é “o único sem voz no coro infinito das vozes animais” (Agamben), e se em lugar dessa voz, “provamos do falar, do pensar” (Agamben), ao pensarmos a poesia como uma prevenção do conhecimento, como uma “benção antes do saber” (Derrida, Che cos’è 7), parece-me que aí sim poderíamos pensar o poético como esse lugar que adentraria as fronteiras e irromperia os limites dos confins homem/animal, pois o poético viria assim antes da distinção, antes da perda da voz provocada pelo pensar.

Que o pensamento do animal caiba à poesia é uma tese, conforme afirma Derrida, fundada no redobramento dos limites entre um pensamento poético e um saber filosófico, entre poesia e ciência, entre homem e animal. Derrida inicia Che cos’è la poesia1 afirmando que “para responder a uma tal pergunta (…) pedem-te que saibas renunciar ao saber” (5), pois a poesia não se sabe a partir do conhecimento e do pensamento, mas apenas aprende-se del cuore, de cor, de coração:

Ela vê-se ditada, a resposta, sendo poética. E, por isso, tendo de se dirigir a alguém, singularmente a ti, mas como se se dirigisse ao ser perdido no anonimato, entre cidade e natureza, um segredo partilhado, a um tempo público e privado, absolutamente um e outro, absolvido de fora e de dentro, nem um nem outro, o animal lançado na estrada, absoluto, solitário, enrolado em bola junto de si. (5)

A poesia já funciona, assim, nessa zona de espessamento de limites, de passagem de fronteiras, de forma a justificar a potência do poético e da narrativa para a discussão de uma questão também ela fronteiriça e fugidia, movida por embaralhamentos e deslocamentos contínuos. A ficção estaria, assim, sempre no espaço desse “a seguir” derridiano, mobilizadora de possibilidades para o pensamento zoo, ética e esteticamente:

Se eu sigo esta sequência, e tudo no que me preparo a dizer deveria reconduzir à questão de que o ‘seguir’ ou ‘prosseguir’ quer dizer, e ‘ser depois’, e à questão do que faço quando ‘eu sigo’, e digo ‘eu sou’, se eu sigo esta sequência, aí então me transporto dos ‘fins do homem’, portanto dos confins do homem, à ‘passagem das fronteiras’ entre o homem e o animal. Ao passar as fronteiras ou os fins do homem, chego ao animal: ao animal em si, ao animal em mim e ao animal em falta de si-mesmo, a esse homem de que Nietzsche dizia, aproximadamente, não sei mais exatamente onde, ser um animal ainda indeterminado, um animal em falta de si-mesmo. (Derrida, O animal 14-15)

É esse o movimento que com tanta força faz reverberar as conferências de Coetzee, dupla sinalização da questão, simultaneamente saber filosófico e pensamento poético, absolutamente um e outro, e por isso nem um nem outro. Como reagir a esse texto, a benção que antecede e simultaneamente corporifica o saber? O filósofo não sabe como reagir ao deslocamento das fronteiras – “prefiro deixar a verdade e a ficção bem separadas” (Singer 103) – nem à possibilidade do artifício trazida pela ficção – “Mas será que são argumentos de Coetzee? Esse é o problema. Por isso é que eu não sei como fazer a réplica dessa pretensa palestra. São os argumentos de Costello. O recurso ficcional de Coetzee permite que mantenha distância desses argumentos. E tem essa personagem, Norma, nora de Costello, que faz todas as objeções óbvias aos que Costello diz. É um recurso maravilhoso, na verdade” (Singer 109). Como responder ao que parece artifício, ao que se coloca como poesia e pensamento, ao que invade as fronteiras do espaço do pensamento científico e o contamina com a falta, com a inconclusão? Ele opta, como única alternativa possível, por responder com outra narrativa.

Por isso cabe à poética o pensamento do animal, por ela possibilitar que se produzam essas “palestras enganosamente transparentes” (Garber 89) proferidas por Coetzee em Princeton, nas quais um escritor nos apresenta a narrativa de uma escritora que fala sobre os animais e a relação dos homens com os animais e que afirma que “os escritores nos ensinam mais do que sabem” (Coetzee 63). Porque “o poema chega-me, benção, vinda do outro. Ritmo mas dissimetria”, “apenas uma contaminação, tal e tal cruzamento, este acidente. Esta volta, a reviravolta desta catástrofe” (Derrida, Che cos’è 9), porque a ficção embaralha assim o um e o outro, o homem e o animal, a poesia e a filosofia, é que é possível a seguinte afirmação: “Nessas duas elegantes palestras, pensamos que John Coetzee estivesse falando de animais. Seria possível, porém, que o tempo todo ele estivesse perguntando: ‘Qual o valor da literatura’?” (Garber 101).

Retomemos nosso fio nesse labirinto de fronteiras multiplicadas em que não há limites a serem ultrapassados. A imagem exclusiva da cidade humana não é a cidade da qual foram expulsos sistematicamente todos os animais. Eles nos acompanham desde a origem. A imagem exclusiva da cidade humana é a cidade da qual retomam a posse os animais da zoologia dos sonhos borgiana, é a cidade que sempre pertenceu a eles, é a última Teodora apresentada por Calvino. O “próprio” do homem, assim, evoca o animal, a ficção e o pensamento, num movimento complexo que os coloque sempre num espaço de passagem, espaço este potencializado pela poética, capaz de lhes possibilitar o solo comum e o cuore de onde possam ser ditos, repetidos e recriados constantemente.
 
 
Notas
 
1Em O animal que logo sou? Derrida vai retomar esse texto, publicado originalmente em 1988, no qual ao discutir a questão da poesia já se vale da figura animal do ouriço como elemento chave para sua argumentação.

 
 
REFERÊNCIAS
 

Agamben, Giorgio. “O fim do pensamento”. Terceira Margem. 2004. Centro de Letras e Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro. 7 de novembro de 2008.

Berger, John. “Por que olhar os animais?” Sobre o olhar. Barcelona: Gustavo Gilli, 2003: 11-32.

Calvino, Italo. As cidades invisíveis. São Paulo: Cia. das Letras, 2004.

Coetzee, J. M. A vida dos animais. São Paulo: Cia. das Letras, 2003.

Derrida, Jacques. Che cos’è la poesia? Coimbra: Ângelus Novus, 1992.

____________. O animal que logo sou. (A seguir). São Paulo: Ed. UNESP, 2002.

Garber, Marjorie. “Reflexões”. A vida dos animais. J. M. Coetzee. São Paulo: Cia. das Letras, 2003: 86-101.

Gutmann, Amy. “Introdução”. A vida dos animais. J. M. Coetzee. São Paulo: Cia. das Letras, 2003: 7-16.

Lyotard, Jean-François. A condição pós-moderna. Rio de Janeiro: José Olympio, 2002.

Maciel, Maria Esther. O animal escrito: um olhar sobre a zooliteratura contemporânea. São Paulo: Lumme Editor, 2008.

Singer, Peter. “Reflexões”. A vida dos animais. J. M. Coetzee. São Paulo: Cia. das Letras, 2003: 102-110.
 
 

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