Unicamp, IFCH
No decurso da década de 1930, vários escritores nordestinos intensificaram a construção estética de um povo exaurido em suas narrativas ficcionais. É o caso do romancista Jorge Amado, com suas leituras sobre os trabalhadores pobres nas fazendas da Bahia que cultivavam cacau, em romance publicado em 1933, Cacau. E o segundo autor, menos conhecido, Amando Fontes, escritor premiado pela publicação do romance Os Corumbas em 1933, que versava em linhas gerais sobre os sertanejos que se deslocam do sertão fustigados pelas secas ou das usinas de açúcar em franco declínio, para cidade, a fim de trabalhar nas fábricas de tecidos. Acredito que seja uma oportunidade imprescindível para a compreensão dos debates políticos daquele momento, a aproximação desses escritores, bem como outros, com intuito de apreender historicamente o que denomino como retórica da pobreza, que conflui em boa parte destes autores nordestinos na figuração do povo. Neste sentido, é bom relembrar o conceito de retórica como ilustrado pelo historiador François Hartog: “[…] retórica significa arte de persuadir: como fazer crer? Precisamente pela movimentação de figuras e seus procedimentos pelo narrador” (315)
Os escritores do nordeste, em geral, criaram uma estética a respeito das populações de seus estados natais. Lembro nesse momento dos personagens de Graciliano Ramos, Fabiano e família, caminhando pelo sertão de Alagoas. Também é o caso dos personagens de Jorge Amado no interior da Bahia, ou mesmo, de Amando Fontes, Os Corumbas, família pobre do interior de Sergipe. Esses personagens foram tecidos no contexto histórico específico, onde o romance alcançou status de nobreza no quadro da produção editorial dos anos 1930, com o surgimento de grandes editoras, a exemplo, da José Olympio.
Amando Fontes, autor central desta análise, inseriu sua narrativa nesse contexto, em que o “romance do norte” detinha uma expressiva fatia do mercado editorial. O que pode ser comprovado pelo leitor através das revistas literáriasLanterna Verde e Boletim de Ariel. Essas duas revistas dentre outras promoviam um intenso debate entre os escritores e críticos. Havia discussão sobre as novidades do mercado editorial brasileiro e internacional. Nesses periódicos, encontrei um debate profícuo a respeito do romance do escritor Amando Fontes, o que demonstra tacitamente a sua presença, bem como, a preocupação dos intelectuais brasileiros em pensar o romance e suas implicações políticas.
O autor do romance Os Corumbas foi premiado pela Fundação Felipe de Oliveira em 1933, sendo conferida a primeira comenda desta entidade. Pouco conhecido na contemporaneidade, Amando Fontes fincou sua presença entre os literatos supracitados após a publicação de seu primeiro livro, o que certamente lhe conferiu visibilidade intelectual e política. Esta assertiva foi confirmada nos anos seguintes, quando foi eleito deputado federal pelo estado de Sergipe, ficando no cargo até a decretação do Estado Novo varguista, em 1937, ano que marca também a publicação do seu último romance, Rua do Siriri. Esse último livro, não obteve a mesma repercussão de crítica e de leitores do primeiro romance. O escopo dessa obra é a vida de um grupo de prostitutas pobres, figuras inseridas nos dilemas da família Corumba que havia perdido três filhas para o mercado das denominadas “mulheres de vida fácil”.
Quanto à trajetória, o escritor sergipano apresentou uma exígua produção literária. Mesmo assim, acredito que a crítica subestimou o que realmente significou o papel de seu romance na década de 1930. Penso que, uma parcela dos críticos inviabilizou por muito tempo a análise de obras não consagradas após a sua publicação. É o caso da obra de Amando Fontes, autor renomado nas rodas literárias cariocas de meados dos anos 30. Entretanto, tornou-se um desconhecido e muito relacionado de forma descaracterizada aos debates apaixonantes nas revistas literárias. Um único crítico que traz a discussão sem contornos do preconceito é Luis Bueno no livro Uma história do romance de 30, publicado em 2006. O problema envolvido desta falta de interesse decorre, principalmente, da crítica que avalia como essenciais à questão do regionalismo, ou por tomá-las de forma depreciativa como reportagem ou documento, deixando de lado os aspectos preponderantes para compreensão dessas narrativas.
Quanto a este último aspecto, acredito que a forma do romance, como foi debatida nos anos 1930, principalmente, pela voz do crítico Octávio de Faria, trazia a lume jogos de poder que definiram o tipo de gênero narrativo que deveria ser o romance. Para Faria, o romance de Amando Fontes, “numa grande fidelidade à sua função de romancista, apresenta apenas o que viu, o que lhe parece ser a vida proletária em Aracaju, sem nada forçar em benefício do seu credo pessoal”. Enquanto que, Jorge Amado e Oswald de Andrade seriam o oposto de Amando Fontes, pois eles teriam utilizado suas obras ao “serviço de uma corrente social”. O crítico estava se referindo ao livro Cacau de Jorge Amado e, Serafim Ponte Grande, de Oswald de Andrade, que são um dos romances mais lidos e difundidos no ano de 1933. Não assimilo esse juízo de valor do crítico a respeito do romance de forma pueril, pois esta postura estética de desqualificação aos romancistas engajados está eivada por uma delimitação do que era ou não um romance naquele período. Esta peculiaridade demandaria uma reflexão mais detida e cuidadosa, entretanto, sinalizo para o leitor esse aspecto preponderante, que o próprio Amando Fontes assinala, ao preferir pensar que sua obra não deveria insurgi-se contra os capitalistas, e a favor do proletariado. Segundo ele, o escritor deveria descrever e não julgar.
As implicações políticas mais atraentes das obras de Amando Fontes estavam na concepção sentimental dos pobres e excluídos na cidade fabril, no qual, o palco era Aracaju, capital do estado de Sergipe. Compreender o porquê do seu interesse pelos excluídos tornou-se um problema relevante ao acompanhar a repercussão de sua obra no meio literário dos anos 1930. Essas figuras atraiam escritores e leitores, não só por sua força de adesão, mas, sobretudo pela utilização de um acervo estético e retórico que escrutinava a vida das populações sertanejas e do seu processo de desenraizamento na cidade de moldura urbana e fabril. Trama esta, exposta por Maria Stella Bresciani ao descrever o processo de desenraizamento vivenciado pelos moradores das metrópoles do século XIX. Seu sentido perpassa pela “perda da identidade social”, por uma imagem de crise e por último, “do homem arrancado de sua íntima relação com a natureza, mas paradoxalmente apontam para a nova condição humana de vencedor da natureza” (37).
O romance Os Corumbas revela a forma degradante da vida de uma família de sertanejos na cidade urbana. Este é um dos traços que tornaram a narrativa uma novidade, pois Amando trazia o problema nefasto da exploração desses atores nas fábricas do Aracaju. Deterioração dos valores familiares, visto que, as filhas dos Corumbas são levadas à prostituição. E o único filho homem, Pedro, foi preso e escoltado para uma prisão no Rio de Janeiro, sob acusação de envolvimento nas greves e atos públicos promovidos pelo movimento operário sergipano.
As formas estéticas propostas na escrita de Amando Fontes no que concerne à pobreza da família Corumba sublinham em destaque a formação deste intelectual. A análise dos seus personagens é construída pela apreciação das peculiaridades “raciais”, que é orientada por um positivismo de crença na potencialidade de perfazer uma figuração verossímil dos personagens e do ambiente. Este é apontado como um dos pontos centrais dos leitores intelectuais que viam na obra um meio de conhecer o sofrimento dos sergipanos, como a propaganda do livro transcrito em um dos mais importantes periódicos literários da década de 1930 no Brasil, o Boletim de Ariel:
Plenamente vitoriosa a estréia deste excelente escritor nortista. Consagrado que foi pelos representantes mais idôneos da nossa critica, e entre eles, pelo nosso eminente colaborador João Ribeiro, nenhuma dúvida nos resta quanto a tratar-se de um dos melhores romances do ano.
Como bem disse outro magnífico animador de almas e cenários do Norte, o Sr. Jorge Amado, ler Os Corumbas equivale a fazer uma viagem a Sergipe, onde decorrem os acontecimentos do livro. E essa viagem, sob certos aspectos, será uma viagem de instrução. Sim, quantos detalhes se encontram ai de que nós outros cariocas, sempre um tanto distraídos em relação aos nossos irmãos longínquos, nem desconfiávamos.(28)
Deste anúncio é clarividente a experiência da leitura de romances no Brasil daquelas primeiras décadas do século XX, como meio de conhecimento. Ou seja, um claro disseminador de imagens retóricas que perpetuam um olhar de tragédia aos flagrantes infortúnios das famílias pobres do norte e nordeste, que procuraram as cidades com intuito de sobreviverem ao franco domínio de setores ligados às usinas e às fábricas desta parte do país.
E é perfazendo esse caminho de tragédia, e também, de desenraizamento que penso nas experiências da pobreza como um elemento deste gênero do discurso. O romance agrega um papel relevante nas sociedades modernas, pois congrega os elementos ou expressão da democracia. Desta maneira, aproximo a obra de Amando Fontes à rede de debates e discussões sobre o direito dos trabalhadores nas fábricas do Brasil, no prelúdio da industrialização.
Formado em direito pela Faculdade Baiana de Direto no final da década de vinte, este jovem escritor deixa claro sua filiação ao conhecimento letrado do período, exposto em sua obra, principalmente através da tragédia da família Corumba, representantes da miscigenação brasileira.
O primeiro personagem figurado por Amando Fontes é o velho João Piancó que aparece em destaque no romance. Seu perfil é de um pequeno proprietário de terra, que pode ser identificado como a matriz do coronel; todos devem favores a ele, pois representa a única oportunidade de trabalho, ou seja, sobrevivência. Essa centralidade constrói-se por ser um elo entre os sertanejos e a festa ou rito católico do São José. Justifica-se esse rito pelo único meio de conseguir a sobrevivência do trabalho na terra. O poder simbólico desta festa renova a comunidade para esperança de chuva, e por conseqüência, de trabalho na lavoura. Nesse tocante, a festa ao São José revela no texto de Amando os elementos que conferem a coesão social do catolicismo no interior do norte brasileiro.
Compõe-se um quadro de falência da política e da confirmação do status quo pela religião predominante, o Catolicismo Romano. Religião essa, que assegura uma explicação confortadora para a condição de infortúnio destas figuras, pois a única esperança advém da fé em São José. O santo emana as forças místicas de um bom ano nas colheitas, por meio das chuvas que caem no mês de março, trazendo fartura em junho, mês da festa de São João, época da colheita. A religião católica naturaliza a precariedade da vida por meio da crença no sobrenatural, ou melhor, na fé irrestrita da solução dos problemas referente à seca, instituindo sua plena dominação política e cultural, esvaziando a essência política deste problema crônico.
Para tecer essa retórica de tragédia, o escritor Amando Fontes nos apresenta o pai da família Corumba. Chama-se Geraldo Corumba, o gaitista mais conhecido da região, que é convocado por Piancó para compor o cortejo em homenagem ao santo. É bastante curioso como Amando figura este personagem, pois suas peculiaridades corporais fortalecem os indícios de sofrimentos e privações:
Justamente pelas onze da manhã foi que chegou Geraldo, cavalgando um ruço magro e perereca. Era moreno-claro, de estatura mediana, corpo delgado e ágil. Estava sem casaco, na sua camisa nova de riscado, calças brancas seguras por um largo cinturão de couro, com vistosas fivelas de metal. À cabeça, um largo chapéu de palha de carnaúba, circulado por uma fita escarlate, quebrado atrás e empinado na frente, emprestava-lhe um ar pimpão e alegre. (5)
Quase todas as peculiaridades deste personagem indicam ruína e deterioração, pois é figurado como homem de corpo magro e pouca estatura, resultado das precárias condições de vida. Somente os adereços de sua roupa lhe conferem um ar de vaidade e alegria. Até mesmo seu meio de locomoção potencializa a imagem de precariedade dominante na parte do romance que se destina a revelar como se vive no sertão.
A descrição do fenótipo dos personagens indica as discussões raciais que o texto certamente esta dialogando.Moreno-claro como traço característico desse personagem, e sua futura esposa Josefa, que é “meio loira, os olhos claros e fulgentes”, finca o ideário do branqueamento ora em voga no Brasil. Quando figura outros personagens Amando Fontes confirma essa premissa, isso ocorre ao descrever o comportamento de um vaqueiro “preto velho”, que abusou das bebidas e queria disparar um bacamarte; outro “negro jovem” teria zombado da imperícia do idoso.
Outro aspecto essencial encontra-se no espaço da narrativa, que é emoldurado com os ingredientes da tópica da seca. A primeira grande seca do século XX no nordeste, a de 1905, que destrói as esperanças do velho Piancó, e o leva à morte por desgosto – o que na realidade já estava prescrito em sua alcunha, que significa em Tupi, terror e pavor. Seca, que é identificada por “miséria” e “torrão maldito”.
O desertar é a solução tomada pelo casal Corumba já com três filhos; e desolados, restando-lhe andar para obter o mínimo: água e comida. Um recurso utilizado como uma imagem retórica dos romancistas desse período, a exemplo deRaquel de Queiroz, em seu livro O Quinze e, Graciliano Ramos, com Vidas Secas.
Como retirantes, os Corumbas foram acolhidos no Engenho Ribeira, situado no município de Capela, onde viveram por dezessete anos. Nesse período, a família foi acrescida por mais três filhos: duas meninas e um garoto, este morreu prematuramente. O número de meninas não era propício para o trabalho do campo, ou mesmo nos canaviais. Não conseguiam muito do árduo trabalho nas usinas e nos engenhos, e a explicação desta falta de perspectiva era fruto da decadência do açúcar. Do trabalho só conseguiam para a subsistência, no geral o dinheiro resume-se a “migalhas”. Os usineiros e senhores de engenhos paulatinamente reduzem a jornada de trabalho tornando-o quase inócuo, restavam-lhe o sonho da matriarca Josefa Corumba: mudar para Aracaju, a capital do estado de Sergipe.
Na Capital, havia emprego decente para as duas meninas mais velhas. Era nas Fábricas de Tecidos. Estavam assim de moças, todas ganhando bom dinheiro… Pedro não custaria em conseguir um bom lugar, como ferreiro ou maquinista… Uma outra vida, enfim. Vestia-se melhor, andava-se no meio de gente… Depois, tinha assim uma certeza, uma espécie de pressentimento, de que lá as filhas logo casariam. Isso, as mais velhas. As duas meninas novas iriam para a escola. Nem precisavam até trabalhar. Caçulinha, que era tão viva e inteligente, bem poderia chegar a professora… (10)
Em 1939, o escritor norte-americano John Steinbeck discorria em seu livro As vinhas da Ira (The Grapes of Wrath), a respeito dos fracassos da família Joad, que são agricultores pobres, desalojados do estado de Oklahoma em sua jornada às lavouras da Califórnia em busca de trabalho. Por este livro, o autor foi premiado e prestigiado no cenário norte-americano com o maior prêmio literário americano, o Pulitzer.
Essa narrativa alinha-se à discussão da sobrevivência dos trabalhadores pobres,¾ neste caso ao problema da crise de 1929 ¾, e como a exploração também se evidencia no meio rural, e que havia essa preocupação da subsistência das famílias como uma preocupação política de primeira ordem. Entretanto, o que chama a atenção é a mesma atenção dispensada com a vida de pessoas oriundas do campo/sertão, que foram repelidas por questões vinculadas às intempéries da natureza. No caso dos personagens de Steinbeck, a fuga dá-se em função das tempestades de areia, rumo agora, à “terra prometida”, a Califórnia, onde se propagavam a idéia de fartura e muito trabalho. A epopéia relatada realça o inequívoco êxodo das famílias rumo às cidades durante as primeiras décadas do século passado, onde são subordinadas aos métodos industriais agrícolas e à supremacia de grandes empresas capitalistas. Não foi por acaso que recorri a essa narrativa, visto que, o mesmo recurso sentimental estava correlacionado à família Corumba e à família Joad: o desejo de uma nova vida na cidade.
No caso do romance de Amando Fontes, o palco é a cidade de Aracaju, capital do estado de Sergipe, que é vislumbrada pela personagem Josefa como espaço de sonhos, em contraste com o sertão, da vida sob condições precárias. Essa opção notoriamente demarca a narrativa de Amando Fontes em uma perspectiva, a princípio, dualista ou dicotômica entre campo e cidade, algo já revelado por Raymond Williams em seu livro O campo e a cidade na história e na literatura. O primeiro, como espaço da experiência da seca e miséria; e no segundo como propulsor das capacidades humanas evidenciadas pelo sonho de trabalho e estudos. Entretanto, esse olhar dicotômico esmaece no desenrolar do enredo devido às penúrias e desencantos da vida citadina. Demonstra-se desta feita, que essa transição entre campo e a cidade foi dolorosa e de conseqüências imprevisíveis na vida destas pessoas.
Mesmo felizes com a idéia de morar na cidade, a família Corumba deseja sondar de antemão quais as condições de vida em Aracaju, por meio do mestre Almerindo, irmão de Josefa que trabalhava numa fábrica da cidade como foguista. O mestre os advertiu por meio de uma carta, que a vida na cidade não era muito boa, contudo, reiterava que era “melhor do que a vida sem futuro aí do mato”, principalmente pelos garotos, assim, garantiu de antemão trabalho para as duas sobrinhas mais velhas. Almerindo enfatiza sem rodeios a visão do sertanejo que havia migrado para cidade. Ele define o espaço do sertão/mato, rememorado a partir das condições de vida impressas na idéia de lugar marcado pela falta de futuro.
Desta feita, torna-se categórico afirmar que o campo não é idealizado por Amando Fontes, pois suas personagens estão destituídas de qualquer sonho de uma vida melhor neste espaço, seu olhar não é idealizado nem bucólico. Não só por este aspecto, as personagens vivenciam os vícios, como o abuso de bebidas alcoólicas, representando um espaço gerador de distúrbios, por último, a desolação também deflagra as potencialidades da morte, bem emblemático na morte por desgosto de Piancó, representante do latifundiário em ruína.
Enfim, o campo não é idealizado na acepção de lugar de paz, harmonia e tranqüilidade, pondo-se deste modo, em contraste ao olhar de outros romancistas como afirma Durval Albuquerque Jr:
Para autores como Raquel de Queiroz e José Américo, o sertão aparece como o repositório do verdadeiro caráter nacional, reduto de uma sociabilidade comunitária, familiar e orgânica, onde os valores e os modos de vida contrastam com a civilização capitalista moderna, com a ética burguesa assentada no individualismo, no conflito e na mercantilização de todas as relações (122).
No decorrer do romance Os Corumbas, Amando Fontes revela a vida desta família retirante, seus infortúnios no campo exteriorizam o interesse em entendê-los como pessoas sofridas, impondo um tom angustiante, e que mesmo neste estado, conseguem sonhar, esperançosos por enquadrar-se no local que tanto ouviam falar.
Na Estação Murta, a família Corumba aguardou com expectativa, e muitos sonhos de uma vida melhor no novo destino: a cidade. A estação de trem, como símbolo do capitalismo, é apresentada pela primeira vez no texto, espaço das inovações tecnológicas e de reflexão da família.
E é neste momento que Amando Fontes ressalta a saudade desta família numa ótica nostálgica e saudosista da vida e amigos do Engenho, evidenciando as contradições inerentes a uma leitura telúrica destes personagens. Eles estão destruídos como a terra em que vivem, mas ao mesmo tempo, quando sonham com a nova vida na cidade, ou seja, no desconhecido, fluem reações de riso, contentamento e “Felicidade” que os figuram em benevolentes com a “vida plácida do Engenho, da própria terra que deixaram”. Terra essa, que os relegam a um destino quase que sem expectativas para um futuro. Entretanto, plácido é o oposto da vida desses sujeitos, pois não há nenhuma descrição próxima da tranqüilidade, paz e serenidade no período transcorrido nas dependências do Engenho. As contradições das lembranças ou o rememorar do vivido dos Corumbas alude à destruição da capacidade de avaliar, isso nos remete à constante tópica de uma parcela dos escritores do norte em tecer uma imagem de futuro para esta parte do país, como ficou sublinhado na leitura de Durval Albuquerque Jr.
Somado a este aspecto, Amando, através de seu narrador faz uma leitura benéfica do trabalho desenvolvido nas usinas de cana-de-açúcar, que evidencia forte ligação deste literato com os grupos que dominavam a política partidária em Sergipe nas primeiras décadas do século passado. Não parece forçoso indicar as implicações políticas dessa representação positiva do trabalho nas usinas.
Amando Fontes, com sua escrita, esboça literariamente a carência de perspectiva também no sertão como já foi aludido, pois o problema da família Corumba revela emblematicamente as peculiaridades da carência de direitos essenciais para o exercício da cidadania e que, independente do local, seja no campo ou na cidade, os dilemas na essência são os mesmos. A zona rural é utilizada por este escritor como espaço de transição para cidade, configurando um olhar de renovação dentro do conjunto de obras publicadas no período, a exemplo de Jorge Amado, e seu romanceCacau. Acompanhando a leitura desta obra, o personagem central Sergipano, também faz a transição para a cidade grande, mas o espaço da cidade é descrito na última página, quando este personagem adere ao ideário marxista de consciência de classe, e resolve viajar para o Rio de Janeiro a fim de agrupar-se ao movimento comunista.
Suas vidas, na realidade, podem bem expor os insucessos dos egressos da escravidão no Brasil. Estes foram vilipendiados e tratados como cidadãos de segunda classe, quando não, muito menos, nem mesmo como pessoas, que pode ser conferido por meio da fala de Josefa quando expôs a Geraldo sobre os benefícios da vida na cidade: “… Vestia-se melhor, andava-se no meio de gente”. Márcia Naxara descreveu em seu livro a exatidão da visibilidade do brasileiro para a intelectualidade do final do século XIX e primeiras décadas do século XX. Segundo a historiadora, as representações pautavam-se pelo descrédito, “pela idéia de atraso, do arcaico, do primitivo” (117).
O sonho de viver na cidade entranhava o coração dos sertanejos em sua epopéia rumo ao desconhecido. O que eles não esperavam era a destruição desse anseio por uma vida menos sofrida. A descrição que emerge da narrativa é de atores como destituídos das condições mínimas de vida; esses sujeitos foram figurados como seres privados de dignidade, enfim silenciados e nulos politicamente. Não eram tratados como pessoas dignas de direitos sociais e políticos, evidenciando desta forma, as diversas faces das humilhações vivenciadas por essa população. Humilhação identificada no que, Pierre Ansart denominou por “um povo vencido, obrigado a se conformar a um jugo execrado”. E, mais, estes são sujeitos nulos pela impotência de contornar o estado de humilhação.
As peculiaridades dos pobres e excluídos nas narrativas de autores do nordeste brasileiro, e especificamente, do romance social de 1930, possibilitam ao historiador delimitar, não de forma escancarada, os compromissos políticos que permeiam essa escrita. Esta última “é coisa política porque seu gesto pertence à constituição estética da comunidade e se presta, acima de tudo, a alegorizar essa constituição” (Rancière 7). Acredito que a literatura exige uma leitura cuidadosa, não apressada, pois ela é fruto inequívoco de um constructo. Não é espelho da sociedade, mas fruto de uma construção do mundo sensível, pois delimita os corpos e o que é permitido a cada ator ou personagem.
Essa dimensão teórica da escrita ficcional mostra as matizes dos pobres e excluídos do romance social de 1930. A preocupação por descrever a forma de viver desses personagens, os sonhos da vida na cidade e a seqüente desventura desses atores nesse espaço que caracteriza o problema político à questão social, trouxeram a tona o problema dos direitos. Os direitos sociais desses personagens oriundos do interior do nordeste brasileiro estavam em pauta. A imagem que se veiculava do nordeste, associava-se às “obras contras a secas”, como destacou Gilberto Freyre, em 1936.
O trabalho de Amando Fontes pautou-se em trazer a lume os desafios dos retirantes do nordeste, no contexto da cidade fabril que se agregava ao problema da seca referido por Freyre. Esta discussão intensificou-se pelos diversos embates políticos entre movimentos políticos como o integralismo, o comunismo, o catolicismo, o anarquismo, dentre outros, que se colocam como defensores da causa operária. O escritor Amando Fontes colocou-se como um fiel crítico das condições sociais das classes pobres, ao descortinar a derrota da família Corumba, que ao final da narrativa retorna ao sertão sem os filhos e sem esperança. Nesta perspectiva, sua opção estética perpassava pela exposição dos problemas, sem, contudo tomar partido pelos proletários, ou sertanejos. Um ato retórico pautado pelo ideário de “ser fiel na interpretação da alma, dos sentimentos de nosso povo, simples, primitivo, expressando ainda as suas maiores dores e tragédias” (1934:111). Ato retórico que significava uma adesão ao outro, as suas figuras, sem, contudo revelar uma denúncia enfática às precárias condições humanas do povo nordestino, pautada pela idéia de luta entre proletários e capitalistas. Utilizou em sua escrita, a célebre idéia de Walter Benjamin, a respeito do romance: “Escrever um romance significa, na descrição de uma vida humana, levar, o incomensurável a seus últimos limites. Na riqueza dessa vida e na descrição dessa riqueza, o romance anuncia a profunda perplexidade de quem a vive”. (201)
Certamente, não se vincula totalmente a idéia do crítico Octávio de Faria, ao estocar Jorge Amado e Oswald de Andrade por utilizarem cor política em seus livros. Enquanto que, para Amando Fontes não interessava utilizar a literatura como uma ferramenta de luta partidária, como os mestres o haviam ensinado. Rejeitou veementemente tomar partido pelos operários ou pelos patrões, o escritor deveria fazer arte em sua acepção. Essas idéias foram emitidas na entrega do prêmio Felipe de Oliveira, em uma audiência solene, em que, respondeu às críticas dos que o viam como um autor populista, por não revelar a revolta ao leitor brasileiro. Entretanto a narrativa de Amando Fontes partilha as dores dos retirantes sob a dominação política dos donos das fábricas, que no decorrer do romance vão corroer o caráter destas figuras, impondo um sentido de derrota angustiante.
Referências
Albuquerque Jr., Durval Muniz de. A invenção do Nordeste: e outras artes. Recife: Massangana; São Paulo: Cortez, 1999.
Amado, Jorge. Cacau. Rio de Janeiro: Record, 1996. (1ª. Ed. 1933).
Ansart, Pierre. “As humilhações políticas”. Marson, Izabel & Naxara, Márcia (org.). Sobre a humilhação. Sentimentos, gestos, palavras. Uberlândia: EDUFU, 2005.
Benjamin, Walter. “O narrador: Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”. Magia e Técnica, arte e política. Obas escolhidas. São Paulo: Editora Brasiliense, 1996.
Bresciani, M. Stella Martins. “Metrópoles: as faces do monstro urbano. (As cidades no século XIX)”. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.5, n 8/9, set 1984/abr 1985.
Bueno, Luís. Uma história do romance de 30. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Campinas: Editora da Unicamp, 2006.
Faria, Octávio de. “Jorge Amado e Amando Fontes”. Boletim de Ariel. Ano III – n.1. Outubro, 1933.
Fontes, Amando. Os Corumbas. 25ª. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2003. (1ª. Ed.1933)
_____. Rua do Siriry. Rio de Janeiro: José Olympio, 1937.
_____. “Discurso de Amando Fontes na Sociedade Felipe de Oliveira”. In: Lanterna Verde. Rio de Janeiro, 1º de maio de 1934.
Freyre, Gilberto. Nordeste. Aspectos da influência da cana sobre a vida e a paisagem do nordeste do Brasil. 6ª. Ed. Rio de Janeiro: Record, 1989. (1ª. ed. 1936).
Naxara, Márcia Regina Capelari. Estrangeiro em sua própria terra. Representações do Brasileiro. 1870/1920. São Paulo: Annablume, 1998.
Steinbeck, John. As vinhas da Ira. São Paulo: Abril Cultural, 1982
Hartog, François. O espelho de Heródoto: ensaio sobre a representação do outro. Tradução de Jacynto Lins Brandão. Belo Horizonte: Ed, UFMG, 1999.
Rancière, Jacques. Políticas da escrita. Tradução de Raquel Ramalhete et al. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995.
Williams, Raymond. O campo e a cidade na história e na literatura. Tradução de Paulo Henriques Britto. São Paulo: Companhia das Letras: 1989.
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