Este texto tem como ponto de partida os bestiários medievais e a tentativa de esboçar uma definição direcionada aos estudos literários em jogos ficcionais de catalogação de animais reais ou imaginários dentro da literatura. De modo mais específico, recorremos à definição de Virginia Naughton, em seu livro Bestiario medieval:
El “bestiario” constituye uno de los tópicos alegóricos fundamentales de la Edad Media, y a partir de su lectura es posible reconstruir las relaciones que el hombre medieval mantenía con la naturaleza, y al mismo tiempo nos permite localizar su posición en el esquema general de las cosas creadas. Junto a esta zoología simbólica, debe situarse también aquella medicina imaginaria, y al igual que los bestiarios, la base de su credibilidad y amplia aceptación surgía de combinar algunas observaciones empíricas con propósitos morales y religiosos, y todo ello, en el marco de una profusa y abundante imaginería (18).
Especificamente na literatura hispano-americana, dois escritores argentinos criaram obras importantes, cada um a sua maneira, apropriando-se desse tipo de literatura e a reutilizando de maneira criativa. Foram eles: Jorge Luis Borges e Julio Cortázar. Portanto, será interessante traçar um movimento nos dois livros destes autores que partem desse universo: O livro dos seres imaginários (1978), de Jorge Luis Borges e Margarita Guerrero, e Bestiario (1951), de Julio Cortázar
Para pensá-las como duas obras literárias autônomas, e tendo em vista os bestiários como uma espécie de catalogação de seres reais e imaginários que na idade média possuíam uma finalidade pedagógica, Borges e Cortázar, dentro de uma produção autoral, assumiram um novo traço aos seus bestiários, isto é, desviam de uma esfera pedagógica ou moralizante e recriam a possibilidade de catalogação na literatura, além de serem livros que são referência de utilização neste processo entre autores que se valem deste procedimento criativo.
Os livros partem do mesmo universo imaginário, mas em relação ao seu aspecto formal são obras com marcações distintas. Borges se aproveita da estética enciclopédica do saber de um bestiário tradicional, enquanto Cortázar utiliza fragmentos de diversos animais de uma maneira mais vertiginosa no cotidiano das personagens de seus contos. Aqui, para ambos, torna-se necessário acrescentar um outro ponto: a forma de catalogação. É interessante discutir a catalogação, questão que Maria Esther Maciel levanta em seu livro A memória das coisas (2004), sobretudo dentro da obra de Jorge Luis Borges, Peter Greenaway e Arthur Bispo do Rosário. A catalogação neste caso fornece subsídios para que se elabore a compreensão de que listas, inventários e catalogações podem ser utilizadas dentro da literatura como parte do processo criativo do escritor. E, especificamente, esta questão é importante para se trabalhar em relação a Jorge Luis Borges e Julio Cortázar, nos livros especificados.
Em As palavras e as coisas, Michel Foucault nos apresenta um instigante prefácio, no qual se refere a “uma certa enciclopédia chinesa”, de Jorge Luis Borges, que contém a seguinte classificação dos animais:
os animais se dividem em: a) pertencentes ao imperador, b) embalsamados, c) domesticados, d) leitões, e) sereias, f) fabulosos, g) cães em liberdade, h) incluídos na presente classificação, i) que se agitam como loucos, j) inumeráveis, k) desenhados com um pincel muito fino de pêlo de camelo, l) et cétera, m) que acabam de quebrar a bilha, n) que de longe parecem moscas. (XI).
Essa “vizinhança súbita das coisas sem relação” nos leva a imaginar uma possibilidade de elementos sem relação que estão ligados sucessivamente por letras em ordem alfabética. E dentro desta ordem uma desordem se monta, como se Borges ao intitular seu texto como uma certa enciclopédia estivesse consciente de um caráter ambíguo da enciclopédia de tentar ordenar o que é naturalmente desordenado. Nessa perspectiva, fazer uma leitura destes “bestiários de autor” (aos quais se incluem Borges e Cortazar) pode, inclusive, ajudar a transitar por procedimentos similares dentro da literatura hispano-americana contemporânea.
Como provocação à leitura destes próprios livros, mais um prefácio é curioso de destacar, o de O livro dos seres imaginários, de Jorge Luis Borges e Margarita Guerrero. Especificamente para atentar três momentos, que aqui aparecem fragmentados. O primeiro surge como uma justificativa a respeito do nome do livro:
O nome deste livro justificaria a inclusão do príncipe Hamlet, do ponto, da linha, da superfície, do hipercubo, de todas as palavras genéricas e, talvez, de cada um de nós e da divindade. Em suma, quase do universo. Ativemo-nos, contudo, ao que imediatamente sugere a locução “seres imaginários”, compilamos um manual dos estranhos entes que engendrou, ao longo do tempo e do espaço, a fantasia dos homens (13).
O segundo momento condiz com o próprio ritmo de um livro conter em si uma biblioteca, retomando aqui o sentido da “Biblioteca de Babel”, do movimento dos livros direcionado a um plano infinito: “Um livro desta índole é necessariamente incompleto; cada nova edição é o núcleo de edições futuras, que podem multiplicar-se ao infinito” (13).
E o terceiro momento trata de uma proposta de ritmo de leitura. E é aqui que o caráter enciclopédico vai encontrar o melhor ambiente para se manifestar, pois o conhecimento enciclopédico, por mais circular que seja, não consegue ser esgotado sucessivamente e situa-se como se separado, catalogado e amparado em diversos saberes:
Como todas as miscelâneas, como os inesgotáveis volumes de Robert Burton, de Fraser ou de Plínio, O livro dos seres imaginários não foi escrito para uma leitura ininterrupta. Desejaríamos que os curiosos o freqüentassem como quem brinca com as formas variáveis que revela um caleidoscópio (Borges, Guerreiro 13).
E com uma leitura caleidoscópica que este texto percorre essas possibilidades de Borges e Cortázar junto ao diálogo com bestiários. Julio Cortázar, por exemplo, possui uma outra forma de apropriação, pela palavra. A palavra bestiario apropriada pelo autor para sua primeira reunião de contos, de 1951, parte por um outro caminho do qual Jorge Luis Borges e Margarita Guerrero tomaram. Não há uma catalogação de animais de maneira sistematizada, e sim nos seus oito relatos, um cotidiano vertiginoso onde os animais surgem de onde menos se espera.
Em Cortázar, vamos encontrar um diálogo semelhante com Borges em suas Histórias de cronópios e de famas, onde o autor de Bestiário cria esses “seres imaginários” e elabora todos os costumes, origens (fase mitológica), além de consensos e desentendimentos entre eles. Voltando ao Bestiario, o próprio conto que dá título ao livro, o autor nos apresenta um tigre que altera a rotina de uma família que vive na província. A família e a convidada, como que ameaçados, sempre se certificam de onde estariam o tigre para que, assim, pudessem evitá-lo. E, quando se torna possível perguntar: qual a relação do conto de Cortázar (147), além do título, depara-se com esse fragmento: “Hoja número 74: verde, forma de corazón, con pintitas marrones.” Trata-se de duas crianças que catalogam folhas do jardim com o propósito de construir um herbário. Cortázar, portanto, inclui neste conto a catalogação na própria narrativa e nas mãos das crianças. Depois do herbário, as crianças catalogam formigas (um formigário) e ainda abrangiam na pequena coleção: insetos, caracóis (divididos por tamanhos e cores) e flores. Já a família, ameaçada pela presença do animal selvagem dentro da casa, segue sua rotina e assim evita os cômodos onde o animal possa estar.
E por que o tigre? A pergunta, longe de ser respondida, pode encontrar apenas uma reverberação em O livro dos seres imaginários (159), quando “para os anamitas, tigres ou gênios personificados por tigres regem os rumos do espaço”.
Além da especificidade da escolha do tigre de Cortázar é interessante se ressaltar a questão do exercício da animalidade do autor (Maciel 197) – e por que não prolongar também esse exercício ao livro de Borges e Guerreiro. Maria Esther Maciel no seu texto Zoopoéticas contemporâneas, aborda essa questão que toca o limite de espelhar-se no animal: “Falar sobre um animal ou assumir sua persona não deixa de ser também um gesto de espelhamento, de identificação com ele. Em outras palavras, o exercício da animalidade que nos habita” (197).
Quando Sylvia Molloy no prefácio do Livro dos seres imaginários retoma o prólogo do Manual de Zoologia Fantástica, do Borges, ela recupera justamente esse momento onde, uma vez criança, não só Borges, mas cada um de nós, pela primeira vez, diante do “espetáculo” de um jardim zoológico nos deparamos com animais nunca antes vistos (9). Então, retomando a animalidade que habita cada um de nós, as visitas ao zoológico muitas vezes representam mais um assombro diante do outro (o animal) do que realmente assumir uma persona. Portanto, é a literatura o espaço privilegiado para essa animalidade humana que se sustenta não apenas em termos de metáforas ou alguma figura de linguagem outra, mas por intermédio do artifício ficcional, a pele do escritor torna-se outra. O escritor torna-se outro tal como “Baldanders”, esse ser cujo nome pode ser traduzido por Já diferente ou já outro. Por esse Já outro, assim está em O Livro dos seres imaginários:
Em um bosque, o protagonista depara com uma estátua de pedra, que lhe parece o ídolo de algum velho templo germânico. Toca-a e a estátua lhe diz que é Baldanders e assume as formas de um homem, de um carvalho, de uma porca, de um salsichão, de um prado coberto de trevo, de esterco, de uma flor, de um ramo florido, de uma amoreira, de uma tapeçaria de seda, de muitas outras coisas e seres, e então, novamente, de um homem (194).
Salvo a questão da metamorfose, presente em diversas mitologias e culturas, esse antigo sonho do homem de alterar sua matéria, tomar outras formas e voltar à sua humanidade ileso, a questão do escritor com o animal vai além destas transformações, pois a escrita toca um gesto com uma palavra singular animal e não animais, palavra única que contém espécimes tão distintos agrupados, como criticou Jacques Derrida, em O animal que logo sou (2002). Esse agrupamento ironicamente parece ter uma lógica desconcertante como em “uma certa enciclopédia chinesa”, contida no texto de Jorge Luis Borges, “O idioma analítico de John Wilkins”, o qual Michel Foucault cita no prefácio de As palavras e as coisas.
O interesse renovado pelos bestários medievais, sobretudo na América Latina, tem uma grande influência depois da publicação do Manual de Zoologia Fantástica, de Jorge Luis Borges, este que foi ampliado em O livro dos seres imaginários. Curiosamente, o título do primeiro livro de Julio Cortázar, Bestiario também está nesse repertório que, de maneira anacrônica, traz um pouco deste universo medievo, extraído de seu contexto sócio-histórico. Da mesma forma, Virginia Naughton explicita essa relação:
En nuestra época, el interés por los bestiarios se ha renovado gracias a las expresiones estéticas y literarias que lo han tomado por objeto. Entre ellas, la admirable Zoología Fantástica de Borges, nuestro mayor escritor, y otras contribuciones procedentes de la música, la pintura y la escultura. Y si bien en el hombre medieval la dimensión de “lo maravilloso” formaba parte de lo cotidiano, en nuestro tiempo lo interrumpe, lo subvierte, para abrir así un espacio misterioso y recóndito, y tal vez en ello resida el interés renovado por aquellas descripciones fantásticas (Naughton 22)
Esse anacronismo também é ressaltado por Sylvia Molloy, que explica que Borges tem uma leitura “generosa e anacrônica”, resgatando diversos monstros de um esquecimento e, sobretudo, inserindo-os em uma atualidade, “dotando-os de nova e frágil vida” (Borges, Guerrero 11).
A fragilidade da vida não está presente apenas nestes seres imaginários, mas em toda a humanidade. A imagem do homem, este ser dotado de racionalidade, assim traçada por diversos filósofos, escritores e pensadores como um animal superior, se mostra fragilizada em diversas obras de escritores que se sentem em uma outra pele, uma pele de animal. Essa pele não tomada apenas pela sua superfície, mas conforme apresentamos no diálogo com as “zoopoéticas contemporâneas” de Maria Esther Maciel, um exercício de outridade (200). A racionalidade do cuidado e do medo da animalidade tal como Julio Cortázar abordou em seu conto Bestiario, onde é preciso checar qual cômodo da casa foi ocupado pelo tigre, para assim evitá-lo. Ou o próprio estado de maravilhamento do homem ao se deparar com outros seres, como diversos de O livro dos seres imaginários. Maravilhamento este que não deixa de passar por uma vergonha. Talvez a vergonha que leve o próprio homem a escrever, como o disse Gilles Deleuze, em A literatura e a vida: “A vergonha de ser um homem: haverá razão melhor para escrever?” (11).
Referências
Borges, Jorge Luis; Guerreiro, Margarita. O livro dos seres imaginários. Trad. Carmen Vera Cirne Lima. São Paulo: Globo, 2006.
—. O idioma analítico de John Wilkins. In: Outras inquisições. Obras completas, Vol. II. Trad. Sérgio Molina. São Paulo: Globo, 1999.
Cortázar, Julio. Bestiario. Buenos Aires: Suma das letras, 2003.
__________. Histórias de cronópios e de famas. Trad. Gloria Rodriguez. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
Deleuze, Gilles. “A literatura e a vida”. Crítica e Clínica. Trad. Peter Pál Pelbart. São Paulo. Ed. 34, 1997.
Derrida, Jacques. O animal que logo sou. Trad. Fabio Landa. São Paulo: Unesp, 2002.
Foucault, Michel. As palavras e as coisas. Trad. Salma Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
Maciel, Maria Esther. “Zoopoéticas contemporâneas”. Remate de Males, Campinas, 27.2, p. 197-206. jul/dez. 2007.
______. A memória das coisas. Ensaios de literatura, cinema e artes plásticas. Rio de Janeiro: Lamparina, 2004. Naughton, Virginia. Bestiario Medieval. Buenos Aires: Quadrata, 2005.
Yelin, Julieta Rebeca. Nuevos imaginarios, nuevas representaciones. Algunas claves de lectura para los bestiarios latinoamericanos contemporáneos. Nueva York: LLJournal, Vol 3, Nº 1 (2008). 12 de setembro de 2008
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