Roa Bastos: A ditadura de Stroessner em Gaspar Francia

Rui Veiga
Universidade de São Paulo
Não queremos diálogo de nenhuma espécie. Primeiro mataremos todos os guerrilheiros e todos os seus simpatizantes; depois eliminaremos os indiferentes e finalmente acabaremos com os tímidos” (palavras do General Ramón Camps, interventor militar na província de Buenos Aires).1

 

A epígrafe ilustra incisivamente o modo pelo qual as ditaduras militares latino-americanas das décadas de 60 e 70 encaminharam as questões políticas internas de seus respectivos países. Paralelamente, serve de cunha, para que se aprofunde um debate em torno da questão do poder, da arte, da cultura e da própria ficção e as relações destas com a violência institucionalizada. Ou seja, iniciar uma discussão sobre os mecanismos pelos quais o poder político autoritário exerce sua dominação sobre a sociedade. Essa questão será abordada neste artigo pelos vieses das ordens política, da ficção e do discurso e pelo contexto histórico e ideológico à época da construção da narrativa a ser enfocada: “Yo el Supremo” de Augusto Roa Bastos. O romance foi escrito nos anos 60 e 70, período denominado por Claudia Gilman como “bloque de los sesenta / setenta” (Gilman 37), devido às características comuns a ambas as décadas na escalada da violência repressiva das ditaduras na América Latina.

Neste artigo, pretende-se, a partir da teoria literária de Walter Benjamin, aplicadas às ordens política e ficcional, colocar em discussão a relação entre a narrativa do escritor paraguaio Augusto Roa Bastos em Yo el Supremo2 e o processo da violência de estado das ditaduras da América Latina. Além disso, através da conceituação proposta por Noé Jitrik na relação referente / referido em Historia e imaginación literaria, discutiremos as relações entre o romance histórico clássico e a obra de Roa Bastos. Essa imersão na escritura do autor paraguaio porá em discussão a complementação obrigatória existente entre autoritarismo e violência institucional, que coexiste dentro da narrativa em questão, quando analisada no âmbito da representação, do conteúdo e do discurso do Supremo Ditador, personagem central do texto. Ou dizendo-se de outra maneira, buscaremos elucidar a relação entre tirania e poética da violência na trama encetada por Roa Bastos, sejam estas, manifestações na representação ou na política.

Contextualizando-se o tema, faz-se necessária uma apresentação do personagem central do romance: a figura histórica de José Gaspar Rodríguez de Francia, el Supremo Dictador e prócer da independência paraguaia (1813) e da transformação do país, o qual governou de 1814 a 1840 de forma autocrática, repressora e personalista. Historicamente é um personagem controverso proporcionador de debates apaixonados em torno de seu nome. Seus áulicos o consideram além do personagem central na construção do Paraguai moderno, autor do mais ousado projeto de autonomia nacional na América do Sul. Fundamentam sua assertiva nas realizações administrativas da ditadura: a construção da primeira linha ferroviária no Continente (1826), o desenvolvimento da indústria naval manter um ousado plano de distribuição de terras e um programa de ensino público gratuito que, em 1820, registrou índice de analfabetismo zero em crianças até catorze anos de idade.

Francia era um advogado e um intelectual ilustrado. Formado pelo Colégio Jesuíta de Córdoba na Argentina era admirador dos iluministas franceses e adepto da política do Diretório durante a Revolução Francesa. Em relação a Napoleão, costumeiramente colocava-se como seu compadre, embora nunca o tenha conhecido pessoalmente. Proprietário da maior biblioteca privada do país, Gaspar Francia lia sistematicamente Rousseau, Voltaire, Robespierre, Pascal, Morus e outros e os grandes nomes das literaturas espanhola, em especial Cervantes, e italiana, Dante.

Por sua vez, seus críticos –muitas vezes não de forma isenta– questionam o fato da Ditadura Francia ter suprimido todas as formas de democracia representativa do país; a prisão, a deportação e até mesmo a execução dos principais oposicionistas e possíveis adversários de Francia na disputa pelo poder central. No campo cultural, questionam-lhe o fechamento de todas as instituições de ensino superior, a proibição de circulação de jornais, de livros e revistas e uma forte política cultural intervencionista, na qual todos os espaços para o desenvolvimento de uma cultura não tutelada se fecharam.

Mas, acima de todos estes fatores, é inegável que seu governo pautou-se pela autocracia e pela perseguição política, religiosa, cultural e empresarial. Paralelamente, manipulou as massas pobres paraguaias, que, incorporadas a seu projeto, recebiam migalhas sociais, porém sem ter condições de definirem seu destino e superarem a miséria, que as afligia. O despotismo de Francia caracterizou-se ainda por compor um governo de uma única voz, a própria, sem ministros, parlamento ou cabildo, que contrabalançassem seu poder absoluto. Considerava-se a si mesmo como Pai da Pátria Paraguaia e o povo –em uma óptica paternalista– era tido como seu filho sem vontades próprias e totalmente dependente.

O segundo personagem do título deste artigo é o general Alfredo Stroessner, presidente perpétuo do Paraguai, que ascendeu ao poder em 1956 e governou ditatorialmente o país por mais de trinta anos. Em muito de suas ações estratégicas, no plano interno paraguaio, copiou atos de Francia, chegando mesmo a se colocar como ditador perpétuo e supremo mandatário do país. Igualmente ao que fizera El Supremo empreendeu uma política coercitiva no plano institucional; instaurou a tutela militar no poder político; prendeu, deportou e assassinou oposicionistas; cerceou de forma totalitária as liberdades democráticas e exilou um sem número de intelectuais, artistas e escritores.

Mas, o candidato a Supremo no século XX, não tinha qualquer leitura, além dos manuais militares e tratados de caserna. E muito menos, foi capaz de liderar a Nação através de um projeto de soberania nacional. Ao contrário, seu governo pautou-se pela subserviência no plano político e econômico aos ditames das políticas externas norte americana e brasileira e, no plano social, na defesa dos interesses da aristocracia rural exportadora de madeira e chá.

Ao final, ambas as ditaduras se assemelharam em resultados. Após a morte de Francia, sem sucessores formados, uma vez que ele não confiava em ninguém, o país se afundou em crises por vários anos. E, com Stroessner, o desastre paraguaio deu-se durante seu longo governo, com o aprofundamento da miséria interna e a criação de uma leva sem par de emigrados, produto da penúria e da falta de oportunidades internas no país. Ou seja, outra vez a frase forjada por Karl Marx na abertura de seu livro O dezoito brumário de Luís Bonaparte ganha atualidade ao ser adaptada da França de Luís Bonaparte, do segundo reinado ao Paraguai de Francia no século XIX e Stroessner no século XX: “A história se repete. Na primeira vez, como tragédia. Na segunda, a cópia, como sua negação: a farsa” (Marx 16).

Roa Bastos no plano estrito da ficção em Yo el Supremo decodifica e desconstrói o monólogo do Poder, que permeia as relações entre tirano e oprimidos. Ressalvamos que não entraremos neste artigo na questão da estrutura polifônica, que permeia inteiramente a obra de Roa Bastos em Yo el Supremo. Na ordem do Poder, delineia-se no texto a representação da figura do Supremo Ditador no sentido gramsciano3 de sociedade política, que para estabelecer sua dominação, abole as liberdades democráticas burguesas e subjuga o conjunto da sociedade civil. Pode-se afirmar que a voz única do Supremo Ditador mantém correspondência com as vozes únicas dos demais ditadores latino-americanos do século XX em seus respectivos países e, por proximidade natural, com o discurso do general Stroessner no Paraguai. Ou seja, a ficção gerada estabelece a relação direta de representação da ditadura e da violência inerente a esta.

A leitura do texto mostra a relação entre a sociedade latino-americana atual, suas ditaduras e mazelas sociais e sua representação dentro da ficção. Frisamos que o autor traçou em Yo el Supremo uma rota que parte de um referente do século XIX (a ditadura de Francia) e se encerra no desenho de mecanismos de repressão política de hoje, conforme salientou Jitrik (Jitrik 86). O autor destaca na ficção, a usurpação nascida de conluios entre as burguesias latino-americanas com as potências mundiais, que desembocaram em complôs, golpes e regimes fortes com a intervenção de países centrais. No referente4, a Inglaterra, no século XIX. No referido, os Estados Unidos no século XX.

Francia é retratado como o ditador típico, mas através de recursos do anacronimo e da relação referente / referido, é transportado para os dias vividos nos anos sessenta / setenta.como demonstra o discurso político contemporâneo em um dos múltiplos diálogos textuais com seu secretário e escrivão, Policarpo Patiños (também personagem histórico). Na menção a seguir, nota-se Francia acentuando o auto-conceito de pretensa e permanente abnegação e entrega ao país e, principalmente, a exacerbação da grandiosidade de seus atos.

Impedi as sucessivas invasões, que projetavam submeter o nosso país a sangue e a fogo. A de Bolívar, a partir do oeste, pelo Pilcomayo5A do império português-brasileiro, desde o leste pelas antigas rotas depredadoras dos bandidescos bandeirantes. Desde o sul, as constantes tentativas dos portenhos: a mais infame de todos, a que foi planejada pelo infame Puiggredón6 que reconhece em nosso país o destino mais rico de toda a América, e quis vir apropriar-se não só do nosso território, senão roubar lisamente o ouro de nossas arcas (Roa Bastos 320)

Na citação, a violência do discurso ufanista de Francia apresenta-se como instrumento de manipulação das massas paraguaias, no sentido que esse conceito tem para Serguei Tchakotine (277) do que como efetiva política de autonomia nacional. Inclusive, porque os feitos narrados são historicamente controversos. A ironia da ficção se insere na grandiloqüência da voz do Ditador e sua auto-suficiência. O teórico russo informa que, os símbolos que suportam o ufanismo são utilizados em momentos de crise ou de euforia como antídotos dos regimes autocráticos contra os processos de contestações críticas. Para isso, o Ditador faz concessões às massas e manipulam-nas mais adiante diretamente a favor de suas finalidades de dominação e controle total.

No plano da ficção, Roa Bastos representa El Supremo na condição de manipulador. No discurso, apresenta-se o Ditador, como servidor do povo. Na prática, descreve sua mão de ferro na dominação e no permanente estado de exceção. Situação, que Walter Benjamin caracteriza em seu ensaio “Sobre o conceito de história”7 (Benjamin Obras escolhidas I, 228) a propósito da ascensão do nazismo e da ideologia do nacional-socialismo e que pode ser estendida a regimes totalitários em geral. O pensador ligado à Escola de Frankfurt afirma, que o estado de exceção manipula e domina o oprimidos oculto numa suposta regra geral de exercício de poder. Nunca o estado é posto em benefício dos que ficam na parte de baixo da sociedade.

Desse modo, discordamos de interpretações a respeito do personagem Francia, que enveredam exclusivamente pela linha da análise do romance dentro de uma perspectiva estrita e redutora do debate sobre o governo de Gaspar Francia. Essas visões figuram, principalmente, em Hoppe Navarro (Navarro 73-104) e Cruz-Luis (Cruz-Luis 119). Olhares postos através do viés do etapismo político (Trotsky, 137-141), que privilegia o populismo das burguesias nacionais latino-americanas e que não contempla a truculência das ações políticas do Ditador sobre a população e opositores a seu governo, durante o regime de força por ele imposto. E também mascara os conluios que essa mesma burguesia articula com o capital internacional em detrimento das classes oprimidas.

No entanto, essa concepção é oposta à forma crítica como Roa Bastos o retrata, A representação do Ditador na obra não é a de protagonista de uma hagiografia, mas de um chefe de estado com suas ações e contradições. Esses críticos, nos textos mencionados, deixam de lado as formas pelas quais tal projeto era imposto na práxis política. Isto é, relegam a segundo plano os mencionados ingredientes da violência perpetrada contra a população, o cerceamento à liberdade artística e de expressão e a repressão policial. No caso específico, esses autores partidários relegam à indiferença aspectos, como as execuções e prisões de opositores. Situações às quais Roa Bastos, no âmbito da relação referente / referido, acentua o paralelismo, Francia / Stroessner com mordacidade e crítica virulenta. O artigo do crítico uruguaio, Gabriel Saad (43-55) realça as alegorias contidas em “Yo el Supremo” quanto aos centros de confinamentos, execuções e torturas no período da Ditadura Perpétua e, em cima dessas alegorias, relê o processo das ironias da política contemporânea, contestando a visão quase idílica dos autores citados sobre Francia.. Visão esta que pode ser sintetizada pela frase do também, uruguaio Eduardo Galeano (165) em apoio às ironias de Roa Bastos e sua similaridade extensível às ditaduras latino-americanas: “A grande ironia! O maior presídio político de meu país recebeu o nome de La Libertad”.

A alegoria ao presídio político de Tevegó (hoje San Salvador) registrada no desenrolar do romance retira qualquer expectativa lukácsiana e simbólica em “Yo el Supremo”, portanto quebra qualquer significado de herói em conflito que se queira deduzir sobre El Supremo no livro de Roa Bastos. A ironia e a alegoria negam-lhe o direito ao simbolismo e opõem a realidade ao ditador e a possibilidade dele ser colocado como herói lukácsiano em conflito cumprindo uma missão social e transcendente, como pretendem ler em Roa Bastos os áulicos do Supremo Ditador. Elas representam um homem fragmentado não linear e que domina a sociedade com múltiplos discurso manipuladores.

Logo no princípio do livro, há dois trechos, que apresentam a principal alegoria da violência e do poder ditatorial em “Yo el Supremo” contida nas passagens dos diálogos entre o Ditador e seu escriba, Patiño. Alegorias que contradizem a visão pseudo – revolucionária, que os exegetas tentam atribuir a Gaspar Francia:

De que falavas, Patiño? Da gente da vila de Tevegó8, Senhor. Custa muito ver que os vultos não são pedras, mas gente. Esses vagabundos, mal afamados, conspiradores, prostitutas, migrantes, trânsfugas de todos os naipes, que, em outros tempos, Sua Excelência destinou àquele lugar, já não são mais gente… (Roa Bastos 24).

Ou então na mesma página o comentário de Patino sobre os presos da mesma penitenciária:

Daqui de onde estou sentado até a mesa de onde Sua Senhoria tem a santa paciência de me ouvir, por exemplo, um vulto deste amontoado de pessoas9 levaria a idade de um homem para chegar. Isto quando se apressa muito para chegar. (Roa Bastos 24)

O paralelismo referente (Tevegó) / referido (San Salvador no governo Stroessner) é patente. O discurso da autonomia nacional é comum em ambos os ditadores. Em Francia é real, a tragédia. Em Stroessner, constitui-se na farsa histórica, que se repete.

Por sua vez, sobre a autocracia da ditadura de Francia, é importante ressaltar-se a concentração de poderes nele mesmo. Processo que apenas desvela sua incapacidade de delegar e de ouvir opiniões diferentes das suas. A monopolização do poder por parte de Gaspar Francia patenteia definitivamente no livro a solidão do poder ditatorial, onde as normas são: não confiar em ninguém e não aceitar qualquer idéia diferente da Sua própria:

Ademais de Ditador Perpétuo tenho que ser, ao mesmo tempo, ministro da guerra, comandante em chefe, supremo juiz, auditor militar supremo, diretor da Fábrica de Armamentos… e devo vigiar pessoalmente o mais insignificante artesão, a última das costureirinha, o último dos pedreiros e o último dos peões… (Roa Bastos 383).

Os nomes de Mariano Molas e Manuel de la Peña –para o Supremo/ Francia os eternos conspiradores– são lembrados em Yo el Supremo no episódio de abertura, quando uma proclama cravada na Praça de Armas no centro de Assunção questiona o Governo. O primeiro ato de reação de Francia foi ordenar a Patiños, que verificasse se ambos os oposicionistas continuavam presos em Tevegó, onde haviam sido colocados em 1819:

Não é de todo improvável, que os dois truões escri-vãos10 Molas e De la Peña hajam podido ditar esta mofa11. O tom mostra o estilo dos dois infames agentes dos portenhos. São eles. Imolo o Molas e despeino12 o Peña (Roa Bastos 8).

No discurso da ficção, há que se atentar para duas situações, que indicam a ação repressiva das ditaduras na América do Sul. A primeira a agressividade do discurso contra os dois oposicionistas, presos há quase vinte anos em Tevegó e o tratamento depreciativo aos opositores, utilizando-se de trocadilhos aos respectivos nomes de cada um dos desafetos: imolar Molas e despentear De la Peña. A segunda: a recorrente acusação de infiltração internacional nos problemas políticos do país por parte das ditaduras latino-americanos.

Para encerrar esse item, cita-se aqui outro diálogo entre Francia e Patino sobre a situação dos presos, que vai ao encontro da perspectiva ficcional analisada por Teresa Méndez-Faith sobre a coerção política inerente à narrativa, que transpira a poética da violência no livro:

… Senhor eles nada podem13. Estão encerrados na mais total escuridão… Excelência, mandei tapar a cal o canto das clarabóias, as frestas das portas, as falhas nas taipas e nos telhados. (Roa Bastos 9).

Por sua vez, o exílio, que muito influiu na obra de Roa Bastos, é uma forma de violência política, que mantém o desterrado flutuando entre dois mundos: o da realidade diária em seu país de destino e do banzo permanente criado pela terra distante. No entanto, trata-se de um processo com dupla face. Uma delas é a da nostalgia mencionada. A segunda face é sintetizada por Roa Bastos da seguinte maneira: com o tempo, o exílio deve ser visto e pensado como uma ampliação do mundo, uma maneira do desterrado não se sentir só, de ver como se apagam as fronteiras entre países e como o mundo fica mais amplo. Tanto no sentido espacial como temporal.

O exílio tem sido um dos meus grandes mestres. Ensinou-me a serenidade e a transformar a nostalgia num sentimento positivo, a transpô-la e projetá-la no futuro, a converter esperança na imagem de algo, que já experimentamos antes (Barnuevo 29- 30)

Logo, o exílio e a violência inerente a ele são componentes permanentes na narrativa de Roa Bastos. E, dentro desse contexto, a relação referente e referido permeia as páginas do livro. Tanto é assim que, indagado durante uma série de debates em Madrid, em 1986, sobre se “Yo el Supremo” é um romance histórico no sentido lukácsiano, Roa Bastos respondeu contundentemente:

Eu não quis..em nenhum momento escrever um romance biográfico do Doutor Francia”.14 “No meu caso, eu simplesmente quis fazer um romance, no qual todos os elementos da realidade paraguaia pudessem ganhar a dimensão de universalidade, que eu sempre desejei para a literatura, sem trair nem minhas raízes, nem minha essência.. os elementos da realidade paraguaia pudessem ganhar a dimensão de universalidade (Barnuevo 102).

Ou seja, o autor buscou na ficção estabelecer a verossimilhança e não apenas resgatar a história. Mas, conforme (Jitrik 86), o ficcionista toma a época da Ditadura Perpétua como referente para levantar o problema principal do Paraguai nos anos 60/70, a ditadura militar de Stroessner e, ampliando discutir as ditaduras, que aos borbotões se desenhavam no Continente. Simultaneamente, questiona o relacionamento sempre conflitado do Paraguai com seus vizinhos do Rio da Prata, a pauperização de sua população e a crescente dependência econômica do Brasil.

No livro, de forma alegórica, no sentido dado a esta expressão por Walter Benjamin, (Origem. . . 222) há diversos relatos, onde o autor lança mão do recurso do anacronismo. Rompendo a linearidade narrativa característica do romance histórico lukácsiano, menciona a visita do emissário do Império do Brasil, Correia da Câmara, a Assunção. Descrições pontilhadas de menções veladas à construção de Itaipu – que aconteceria somente nos anos 70 do século XX – à submissão futura do Paraguai e ao controle das águas do rio Paraná. Correia da Câmara é personagem histórico e sua visita realmente ocorreu em 1835. Essas tensões pontuam o texto em tudo aquilo que se refere ao relacionamento do Paraguai sob Francia com os países limítrofes. As violências na superestrutura dos discursos diplomáticos, mesclam-se à vida local; tensões, que a poética de Roa Bastos vem resgatar. Não para reduzi-la ao regional. O horizonte descrito na narrativa visa constantemente conferir-lhe valores universais, da relação países centrais com os países dependentes.

Mas o cerne provocador da questão literária proposta em Yo el Supremo é ainda mais profundo. O problema principal é levantado, quando se compara o Supremo de Ditador de Roa Bastos com outros protagonistas de romances e líderes carismáticos, personagens de outros “romances de ditadores”, de acordo com a feliz nomenclatura sugerida por ángel Rama (16-17). A pergunta que fica no ar é a seguinte: por que o ditador retratado pelo autor paraguaio é tão diferente dos personagens centrais de outros romances como o de Miguel Angel Astúrias em El señor presidente ou de Alejo Carpentier em El recurso del método ou mesmo em Gabriel García Márquez em El otoño del patriarca?

A resposta a esta pergunta deve ser buscada de forma equilibrada na literatura e na historia, muito embora a ficção detenha a primazia histórica no entendimento deste problema específico. A dimensão do problema proposto é ampla e, no plano contextual, decorre essencialmente do processo ditatorial (e da violência total inerente a ele), que se instalou na América Latina (mencionado no primeiro parágrafo deste texto) e tem a ver com a transformação havida na natureza das ditaduras continentais, após o aprofundamento da Guerra Fria. No plano interno da narrativa, devem ser mencionadas duas razões básicas apontadas por Roa Bastos Segundo ele, o Paraguai sempre se debateu com um duplo dilema: ser um país sem história e sem literatura.

Essa dialética é assim decifrada: um país sem história, porque a historiografia oficial paraguaia ocultou de seus habitantes o genocídio cometido pelas tropas da Tríplice Aliança (Argentina, Brasil e Uruguai) sobre a população civil guarani. E, por conseqüência, até o início do século XX, os trabalhos sobre o governo e a vida de Gaspar Francia pontuais não figuravam no escopo da história oficial.

E sem literatura, porque o isolamento paraguaio imposto por Francia (26 anos), pela Guerra da Tríplice Aliança (seis anos) e pela devastação (1870/ 1900) impediu o florescimento da principal tendência literária do século XIX, o romantismo. Isto significa que a literatura que espelhou a ascensão do capitalismo em escala mundial ficou alijada dos meios culturais paraguaios. Sobre isso, Marcelino Menéndez y Pelayo (312), sublinha: “Não existe história literária no Paraguai. Pelo menos não nos tempos modernos.” No que é complementado pelo crítico literário paraguaio Hugo Rodríguez Alcalá comentando sobre Yo el Supremo:

Tomou-se conhecimento (após a morte de Francia) de que havia acontecido –e seguia acontecendo– algo que se chamava –e chama-se– romantismo. Durante o fechamento não se escreveu dentro das fronteiras pátrias um único verso romântico. Nada que não fora um eco da cultura oficial vigente. (Rodríguez Alcalá 86).

Novamente, conforme acentua Noé Jitrik (88) as manifestações no referente encontram correspondência no referido. A “Generación del 40”, que renovou a literatura paraguaia na década de 40, foi praticamente toda posta no exílio pelas sucessivas ditaduras, que se instalaram no país após 1956. Assim, juntamente com Roa Bastos, outros escritores foram desenvolver suas obras no Exterior, no exílio. O vazio de produção cultural voltava a se instalar no país. Na prática, o referido Stroessner “copia” o referente Francia. Para se entender esse processo na história há que se compreender que o novo arquétipo da ditadura e o perfil do ditador mudaram completamente no final dos anos 50. Ditadores, que antes se imbuíam de preceitos de paternalismo dosado, personagens folclóricos, coloridos e pitorescos, foram substituídos na realidade por homens frios, calculistas e com projetos políticos tecnocráticos baseados no conceito hegemônico, imposto desde Washington, da segurança nacional e da luta contra o assim denominado inimigo interno, a subversão de esquerda. No novo contexto, sai o paternalismo de estado e entra o binômio: segurança nacional e desenvolvimento. Estavam jogadas as cartas do baralho das novas ditaduras. Conceitos muito bem colocados por Gramsci (87), quando estudou o fascismo italiano, e, por extensão, são passíveis de aplicação na América Latina moderna.

Por sua vez, o plano contextual-histórico propicia ao autor levar sua ficção para graus de subjetividade mais amplos, que os limites existentes até então nas escrituras enquadradas como realismo mágico ou real maravilhoso. A necessária inserção de elementos de anacronismo e dos diálogos intertextuais em Yo el Supremo foram possíveis, por exemplo, devido ao intenso subjetivismo contido nos diálogos Francia/ Patiño ou nas fábulas das conversações do Ditador com seu cão Sultán e em outras passagens. O recurso literário do intertexto foi fundamental para o escritor acentuar o caráter iluminista do personagem: sua “amizade” com Robespierre, a quem chama de compadre ou a descrição do relacionamento intelectual próximo entre Francia Napoleão distinguem a narrativa de Roa Bastos do pictórico e da visão da América Latina como “Continente das Bananas”.

Seu ditador é despótico, porém, no plano pessoal, um déspota esclarecido diferente de um patriarca populista qualquer. A complexidade literária da construção do personagem no universo da violência institucional e o sucesso dessa construção são a causa, talvez, da transformação literária provocada por Yo el Supremo na década de setenta, conforme atestam os inúmeros artigos, teses e livros sobre a obra de Roa Bastos.

E, sem esse instrumento literário da construção do despotismo do Supremo Ditador, não teria sido possível ao autor colocar sua narrativa nos parâmetros da correspondência entre referente/ referido; na superação do local pelo universal; na descrição ficcional dos mecanismos de manipulação das massas pela política e nem desenvolver de forma compatível a violência política institucionalizada e os microcosmos do Poder Supremo. E, adicionando-se, tampouco, teria o escritor êxito na construção ficcional de um personagem rico em contradições, com uma personalidade instável e inescrupulosamente dominadora, vivendo permanentemente em torno de si e jamais enxergando o “outro”, que para ele, é apenas mais um apêndice de seu imenso “Yo”.

Desse modo, pode-se inferir que diante desse quadro de intensa repressão política e da escalada das ações e da agressividade nos discursos oficiais, o escritor e exilado político, Augusto Roa Bastos, não poderia jamais ficar infenso ao que ocorria a seu redor. Pode-se assim afirmar com certeza, que a violência política em ascensão naquele período foi um dos elementos motores da construção da narrativa contida em Yo el Supremo e que influenciou toda a poética posterior de Roa Bastos.

Do ponto de vista da narrativa e sua integração crítica com a poética da violência e com a própria violência, a definição de Tereza Méndez Faith (240-241) em nossa opinião, apresenta a visão mais contundente sobre a obra em questão. A articulista lança um olhar literário profundo sobre os microcosmos dos espaços/ cárceres da narrativa de Roa Bastos em Yo el Supremo, caracterizando-os permanentemente como lugares exíguos e repressores, verdadeiras celas de cadeias. A narrativa está ambientada em cerca de 60% de seu desenvolvimento no escritório de despacho do Ditador, uma sala de modestas dimensões, dentro da qual são articuladas as estratégias de Poder do Supremo e emanam-se suas ordens a serem cumpridas, sem discussão, por todos os paraguaios.

Locais onde desfilam aos olhos do leitor a autocracia, a solidão do poder, o subjetivismo do personagem e sua relação com o escriba Patino, que caracterizam a opressão, que o leitor sente no desenrolar da trama urdida pelo autor paraguaio. Aliás, relação esta que lembra uma das obras do teatro vicentino Todomundo e ninguém nas muitas passagens do diálogo permanente nela contido entre Belzebu e seu escrivão Dinatos e as ironias traçadas por Gil Vicente quanto à relação dos personagens com o mundo lusitano do século XVI.

À semelhança de Gil Vicente, a tragédia, a comédia, o autoritário e a própria violência discursiva estão presentes nas páginas de Yo el Supremo. E também nos próprios fatos descritos (quando históricos) ou ficcionais, produtos da teia tecida, que, aos poucos, enreda o leitor e consolida as ironias de Roa Bastos sobre os poderosos e seu vão poder, da mesma maneira que o fizera quase cinco século antes o dramaturgo português.

Por sua vez, ao afirmar que não pretendeu jamais escrever um romance histórico, que retratasse a era de Francia literalmente, Roa Bastos fugiu da armadilha perigosa das biografias romanceadas. Fato que, em termos literários, conforme apontou corretamente Jitrik (37), proporcionou-lhe a oportunidade de permanentemente cotejar a relação complexa entre referente e referido sob a óptica ficcional. Sem historicismos. E, assim, mais uma vez, a literatura antecipa-se às ciências humanas, com o significante Francia corresponder constantemente, como é intenção clara e admitida pelo autor, ao significado corrente na obra: as ditaduras militares da segunda metade do século XX e a discussão de essência sobre a fenomenologia do Poder.

À diferença dos demais escritores latino-americanos, mesmo de nomes importantes como Alejo Carpentier e Gabriel García Márquez, que, até 1974 e nos anos imediatamente seguintes, ainda enxergavam as ditaduras sob as lentes do pictórico e do governante paternalista, o autor paraguaio, aprofundou a questão. Munido da poética da violência, dos cenários opressivos e da “polifonia da univocidade” avançou e pôs a nu – diga-se de passagem, antes que qualquer tratado de sociologia – cruamente em sua narrativa a descrição do novo figurino imposto ao comando político de cada um dos países latino-americanos. Novo comando caracterizado pela farda, pelo quepe e pelos centros de tortura. A ficção antecipou-se à história e previu o ocaso das liberdades democráticas. E o combustível, que alimentou essa máquina foi a violência articulada e institucionalizada, que se manifestou no discurso e na práxis política. Modelo político, que, nos anos do bloco definido por Gilman na obra mencionada neste artigo, se consolidou em toda a América Latina.

Notas

1 Entrevista em La Plata a Rui Veiga, Jornal Movimento página 13, edição de 25 de abril de 1977, São Paulo.

2 Primeira publicação mundial em junho de 1974 da Siglo XXI de Argentina Editores.

3 Referimo-nos aqui ao conceito criado pelo dirigente comunista italiano Antônio Gramsci em Notas sobre Maquiavel, a política e o estado moderno (páginas 238 e seguintes).

4 “Diremos inicialmente que referente, dito sumariamente, é aquilo que se retoma de um discurso já estabelecido ou donde se parte; referido é o que foi construído mediante certos procedimentos próprios da narração” (Jitrik 53).

5 Principal rio da Bolívia. Conduz os seus navegantes à região do Chaco paraguaio.

6 O invasor na realidade chama-se José Martín Pueyrredón. No entanto, Roa Bastos, desde seu exílio portenho, prepara um jogo de palavras (Puiggredón) contra o historiador argentino do século XX filiado ao Partido Comunista, Rodolfo Puiggrós, defensor de uma República única do Rio da Prata com capital em Buenos Aires e que englobaria Argentina, Uruguai e Paraguai. Puiggrós foi defensor de Pueyrredón. Evidencia-se nessa passagem a relação intertextual de anacronismo como muitas encontradas no livro.

7 Aforismo oitavo. Escreve Benjamin: “A tradição dos oprimidos nos ensina que o estado de exceção em que vivemos (refere-se ao regime de Hitler na Alemanha) é na verdade a regra geral” (Obras escolhidas I, 222-223).

8 Tevegó: principal presídio político do Paraguai sob o regime de Francia.

9 Refere-se aos presos de Tevegó.

10 Escri-vãos, ou escribas inúteis. Em espanhol, escribanos.

11 Refere-se à proclama.

12 Despeino significa em português despenteio, mas no caso também tem o sentido de escalpelar.

13 Referindo-se a Molas e De la Peña.

14 Raciocínio desenvolvido pelo escritor paraguaio na “Semana do Autor” realizada em Madrid em 1985

 

Bibliography

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