Caim, de José Saramago: o mito por trás do dogma

Audrey Castañón de Mattos
Universidade Estadual Paulista (Brasil)
audreymattos@hotmail.com

 

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Resumo

 

Embora, no decorrer dos séculos, o entendimento do acervo mitológico das antigas civilizações tenha sido reorganizado pelas sociedades ocidentais, que passaram a vê-los como algo próximo da ficção, o mito bíblico, pelo contrário, apesar de seus mais de dois mil anos, chegou à contemporaneidade ainda com a força de um relato histórico. Largamente difundido no Ocidente pelas religiões cristãs, os relatos que compõem as Escrituras, ou pelo menos grande parte deles, são aceitos como espécies de verdades sagradas. A questão de por que ou como tais relatos se mantiveram tão arraigados na crença de milhares de pessoas, resistiram às ondas de ceticismo, de cientificismo e de racionalismo que, ao longo destes vinte séculos, modificaram e conformaram as civilizações é o motivo em torno do qual se erige o romance Caim, de José Saramago, uma releitura do Velho Testamento. Neste artigo, analisamos os procedimentos discursivos com que o narrador do romance coloca em xeque a lógica dessa crença.

 

Palavras-chave

 

José Saramago, Caim, mito bíblico, mito, literatura, ficção.

 

Abstract

 

Although, over the centuries, the understanding of the body of myths of the old civilizations has been reorganized by the western societies, that now see it as something like fiction, the biblical myth, on the contrary, in spite of its more than two thousand years, has reached the contemporaneity with the power of a historical report. Spread over Occident by Christian religions, the reports that compose the Scriptures or at least a great part of them are accepted as sort of sacred truths. The subject of why, or how, such reports remain so ingrained in thousands of people, resisted to the waves of skepticism, of scientism and of rationalism that, along these twenty centuries, have modified and conformed the civilizations is the reason which with Portuguese writer José Saramago’s novel, Cain, is built around, a re-reading of the Old Testament. In this paper, we analyze the discursive procedures, which with its narrator explores to defy the logic of that faith.

 

Key words

 

José Saramago, Caim, biblical myth, myths, fiction, literature.

 

 

 

Introdução

A leitura do romance Caim, de José Saramago, revela a posição irônico-crítica do narrador frente ao hipotexto bíblico –o Velho Testamento– de que se serve para (re)contar sua história. Trata-se de uma ironia ainda mais aguda e de uma postura ainda mais denunciadora dos paradoxos inerentes ao mito do que aquela já flagrada em O Evangelho segundo Jesus Cristo, romance do mesmo autor.

Leitores em geral têm posturas semelhantes diante de certos tipos de produtos ficcionais. A ficção, cujo contrato de leitura requer uma suspensão temporária da descrença, não suscita, em geral, sérios questionamentos acerca das soluções que apresenta para os impasses do enredo, pois o observador sabe que existem possibilidades infinitas no mundo que a ficção encerra. Cremos que, em relação ao mito, o observador contemporâneo –ainda que entregue a uma leitura crítica– comporta-se da mesma forma. Assim, diante dos poemas de Homero, o leitor atual aceitaria naturalmente os paradoxos que lhe são inerentes, provavelmente pelo fato de que, não lhe tendo sido imputados como expressões de uma verdade histórica, a contemporaneidade, que os considera como heranças dos antigos mitos gregos, os aborda da mesma forma que à ficção. Consequentemente, acreditamos que tais obras dificilmente seriam alvo de um trabalho sério em que, submetidas ao crivo da razão, se lhe esmiuçassem, à luz do pensamento ocidental contemporâneo, as contradições ou irracionalidades.

O mito bíblico, pelo contrário, apesar de seus mais de dois mil anos, chegou à contemporaneidade ainda com a força de um relato histórico. Largamente difundido no Ocidente pelas religiões cristãs, os relatos que compõem as Escrituras, ou pelo menos grande parte deles, são aceitos como espécies de verdades sagradas. A questão de por que ou como tais relatos se mantiveram tão arraigados na crença de milhares de pessoas, resistiram às ondas de ceticismo, de cientificismo e de racionalismo que ao longo destes vinte séculos modificaram e conformaram as civilizações, embora prontamente se coloque, parece ser de difícil solução. Entretanto esse é o motivo em torno do qual se erige a releitura do Antigo Testamento realizada no romance Caim, de José Saramago. Julgamos que a credibilidade sobre a qual repousam os episódios bíblicos que servem de base para o romance, mais que eles próprios é o que instiga o narrador de Caim a preencher, com a lógica, suas lacunas e contradições. Por meio de mecanismos de argumentação e retórica, tal narrador desempenhará, no enredo, papel tão ou mais relevante que o do próprio Caim, protagonista de uma aventura através do tempo.

O próprio percurso das diferentes mitologias através dos tempos motiva o questionamento em torno da credibilidade que os eventos bíblicos (os quais passaremos a tratar simplesmente por mito bíblico) despertam. A interpretação racional dos mitos gregos, por exemplo, foi intentada na filosofia antiga por sofistas, estoicos, epicuristas e neoplatônicos que, por meio da relação entre o conhecimento e a narrativa mitológica, propuseram leituras alegóricas (sofistas), simbólico-filosóficas (Platão) ou mesmo lógicas (neoplatônicos) (Bastazin, 84). Na Idade Média, teólogos cristãos reduziram os antigos deuses a demônios, desacreditando a mitologia antiga; o Renascimento a entendeu como fórmula de valor moral e pedagógico e, no século XVIII, a mitologia foi vista pelos iluministas “como fruto da ignorância de um olhar obscuro e deturpado do homem antigo.” (Bastazin 84).

Paul Veyne, ao estudar a “pluralidade das modalidades de crença” (9), tendo como objeto a relação entre o homem grego e seus mitos, afirma que havia na Grécia um domínio do sobrenatural e que tal “estado de coisas poderia ter durado mais de mil anos” e que se modificou não em virtude da descoberta da razão ou da invenção da democracia, mas devido à transformação da configuração do campo do saber “pela formação de novos poderes de afirmação (a pesquisa histórica, a física especulativa) que concorriam com o mito e, diferentemente dele, colocavam expressamente a alternativa do verdadeiro e do falso” (Veyne 35).

Não apenas a mitologia greco-romana passou por esse processo de questionamento. Em outras partes do mundo, principalmente onde adentrou o cristianismo, mitos antigos foram desacreditados, conforme demonstra o excerto a seguir, extraído de O mundo de Sofia: “Antes de o cristianismo chegar à Noruega, acreditava-se aqui no Norte que Thor cruzava os céus numa carruagem puxada por dois bodes. E quando ele agitava seu martelo, produziam-se raios e trovões.” (Gaarder 35).

Não é difícil verificar que, contrapondo-se a mitologia de outros povos ao mito bíblico, a primeira perdeu credibilidade enquanto o último parece dela gozar inadvertidamente: deixou-se de acreditar em vários deuses e em suas capacidades de produzir trovões ou controlar a fúria de oceanos, para se acreditar em um único deus capaz, entretanto, de prodígios semelhantes.

Contemporaneamente, a crença no mito bíblico, ou em aspectos dele, é um fato verificável entre os diversos estratos sociais, inclusive entre aqueles cujos membros têm acesso aos níveis superiores da educação formal. As inúmeras discussões entre evolucionistas e criacionistas, no tocante ao surgimento do homem e de outros seres vivos no mundo, dão testemunho disso. Em uma rápida pesquisa em um livro didático de Ciências, adotado por uma escola brasileira ligada à igreja Adventista para o último ano do Ensino Fundamental, encontramos, entre outros, o exemplo abaixo, apresentado como conclusão a um capítulo em que se trata da origem do mundo vivo:

Pode-se apenas considerar com um grau de respeito os persistentes esforços dos evolucionistas em encontrar um mecanismo plausível para a sua teoria. Sua perseverança é elogiável. Eles propuseram uma teoria após outra num período de dois séculos.
[…] Mas, após tal busca tão prolongada e virtualmente fútil por um mecanismo evolutivo, parece que os cientistas evolutivos deviam [sic] considerar seriamente a possibilidade da criação por um Planejador (Ebling, Nair; Fraiberg, Márcio e Cláudio Leal 38).[1]

Partindo de constatações como essas, mostraremos como o narrador do romance Caim, de José Saramago, põe em xeque, por meio de estratégias discursivas, a lógica da crença diante das inconsistências do mito. Previamente, contudo, apresentaremos brevemente o percurso teórico acerca do mito e da religião, cujos fundamentos nos servirão de suporte para a análise dos procedimentos linguísticos e discursivos em Caim.

 

  1. Misticismo e religião: o reviver do mito

O progressivo relacionamento entre o mito bíblico –que entendemos como um dos mediadores das relações do Homem ocidental com o mundo– e a ciência, parece-nos, ainda que soe contraditório, um dos fatores que propiciam uma constante renovação da credibilidade do primeiro, pois é certo que, se hoje não se acredita mais nos deuses responsáveis por cada um dos fenômenos naturais a que o homem está exposto, isto se deve ao conhecimento científico que, por um lado, explica satisfatoriamente a origem de trovões, chuvas, ventos, fertilidade de solos, e de outros fenômenos que hoje são vistos com naturalidade, mas, em contrapartida, ainda não encontrou respostas para questões cruciais sobre o universo, como a sua origem. Se, por um lado, a ciência, com suas explicações, ajudou a desacreditar os múltiplos deuses das mitologias antigas, por outro, sua limitação acaba por reforçar a crença em um Criador e, consequentemente, no caso do Ocidente pelo menos, no relato bíblico.

A aura de mistério em torno dessas questões não respondidas certamente é um dos fatores que propicia o misticismo que alimenta a fé no mito sem questioná-lo. E o misticismo é, ele mesmo, uma experiência de natureza “altamente contraditória e mesmo paradoxal” (Scholem 6).

O misticismo que, nas palavras de Tomás de Aquino, é o conhecimento de Deus pela experiência –“cognitio dei experimentalis” (apud Scholem 6), pode ser uma das chaves para a compreensão da força que os mitos religiosos ainda exercem sobre as pessoas. Scholem afirma que, ao contrário da filosofia, o misticismo “não voltou as costas ao lado primitivo da vida, àquela região decisiva em que os mortais têm medo da vida e pavor da morte, e sobre a qual a filosofia racional nada sabe responder de inteligente” (35). Foi a partir de seus temores, prossegue Scholem, que o homem teceu seus mitos.

Uma afirmação do estudioso que se destaca diz respeito à relação entre misticismo e religião institucional. Scholem afirma que não existe “misticismo no abstrato, isto é, uma percepção ou fenômeno que independa de outros fenômenos religiosos”. O que existe é “apenas o misticismo de um sistema religioso particular, misticismo cristão, islâmico, judaico, e assim por diante” (SCHOLEM 7). Decorre, portanto, que a experiência mística do contato com Deus não ocorre fora dos pressupostos de uma religião, o que inclui seus ritos, dogmas, leis e escritos. Assim, começa-se a esboçar um leve entendimento a respeito da credibilidade em que o mito bíblico está assente.

Scholem demonstra que o misticismo é um estágio no desenvolvimento histórico da religião e “faz seu aparecimento sob certas condições bem definidas”(8), pois está relacionado com uma determinada fase da consciência religiosa da qual não se pode separar. Em contrapartida, não é compatível com outros estágios, que simplesmente não dão margem ao seu aparecimento. No primeiro estágio não há lugar para o misticismo, pois o mundo é divino e repleto de deuses com os quais o homem depara em todo momento, com eles “pode misturar-se sem recorrer à meditação extática”. Não existe a consciência do abismo entre o humano e o divino. Nesse momento, “a Natureza é o cenário da relação entre o homem e Deus” (Scholem 9). O segundo período que “não conhece qualquer misticismo” é o momento em que ocorre o irromper da religião. A religião, afirma Scholem, tem a “suprema função” de “destruir a harmonia onírica do Homem, Universo e Deus, isolar o homem dos outros elementos do estágio onírico de sua consciência primitiva e mítica”. Isso porque é a religião que cria o profundo abismo entre o Deus infinito e o Homem, criatura finita:

O homem toma consciência de uma dualidade fundamental, de um vasto golfo que nada pode cruzar, exceto a voz: a voz de Deus, orientadora e legisladora em Sua revelação, e a voz do homem na oração. As grandes religiões monoteístas vivem e se desdobram na consciência sempre presente desta bipolaridade, da existência de um abismo que jamais poderá ser transposto. Para elas o cenário da religião não é mais a Natureza, mas a ação moral e religiosa do homem e da comunidade dos homens, cuja interação realiza a história, de certa forma, como o palco em que é representado o drama da relação entre o homem e Deus (SCHOLEM 9).

O misticismo, portanto, prossegue Scholem, não nega o abismo e, percebendo sua existência, inicia a investigação do segredo capaz de fechá-lo, capaz de agrupar os fragmentos produzidos pela religião e recuperar a antiga unidade destruída por ela. Mas isso, num novo plano, “onde o mundo da mitologia e o da revelação se encontram na alma do homem” (10). Dessa forma, a alma, e não mais a Natureza, se torna o cenário da relação com Deus. A preocupação do homem agora é com a trajetória de sua alma através da “multiplicidade abismal das coisas” em direção à “Realidade Divina”, ela sim, agora concebida como “a unidade primordial de todas as coisas” (10).

De certa forma, para Scholem, o misticismo significa um “reviver do pensamento mítico” embora alerte que não se deva ignorar a diferença entre aquela unidade primordial, que precede a dualidade, e a unidade que precisa ser recuperada “em uma nova irrupção da consciência religiosa” (Scholem 10).

Depreende-se das proposições de Scholem que a institucionalização da fé por meio das diferentes religiões propiciou o surgimento do misticismo, o qual requer um abandono, ainda que parcial, do racionalismo, para que a unidade com deus possa ser alcançada. Algumas explicações místico-religiosas se apegam justamente a esse aspecto da crença. É o caso da criação do mundo a partir do nada. Uma vez mais, é Scholem (25) quem esclarece que, para os místicos, tal “nada” não é mera negação e que somente não nos apresenta atributos “porque ultrapassa o alcance do conhecimento intelectual” e, ainda, que é “mais real que qualquer outra realidade”.

O narrador de Caim, assim como o próprio protagonista, questionam justamente essa lógica que implica em uma fé não raciocinada e que, no âmbito do romance, é vista como uma armadilha retórica; auxiliada pelo narrador, a personagem Caim responde a essa armadilha questionando tanto os pontos claudicantes do mito quanto a suposição de que os desígnios divinos estão além da compreensão humana. Ao examinarmos a argumentação levada a cabo tanto pela personagem Caim quanto pelo narrador, identificamos a estrutura do silogismo; o questionamento é realizado no interior do próprio mito, evidenciando-lhe não apenas as inverossimilhanças, mas o próprio absurdo que é a ideia de tal mito gozar de credibilidade.

A exposição da narrativa bíblica ao escrutínio da lógica marca o início da jornada de Caim, quando do diálogo entre ele e deus, a respeito da morte de Abel. Tendo assassinado o irmão pelo motivo de haver deus recusado sua oferta e aceitado a de Abel, Caim proclama a deus a sua parcela de culpa e ainda questiona-lhe o não ter agido para impedir-lhe o ato criminoso e proteger o filho inocente e claramente favorito:

[…] Como tu foste livre para deixar que eu matasse Abel quando estava na tua mão evitá-lo […] Tu é que o mataste [diz o senhor], Sim, é verdade, eu fui o braço executor, mas a sentença foi ditada por ti, O sangue que aí está não o fiz verter eu, Caim podia ter escolhido entre o mal e o bem, se escolheu o mal pagará por isso, Tão ladrão é o que vai à vinha como aquele que fica a vigiar o guarda, disse caim […] (Saramago 35).

As objeções de Caim aos desígnios de seu criador, apoiadas pelo narrador, configuram o discurso do romance como uma brecha em que se vão ruindo os relatos em que se assenta. No capítulo sexto, diante de Abraão, a quem deus ordenara a imolação de seu único filho, Isaac, como prova de obediência, e do anjo enviado pelo Senhor, Caim questiona não apenas a ordem divina, mas o ato do pai. O resmungo do anjo – “mais um racionalista” – indicia a natureza da crítica que opõe a requerida fé cega à mediação da razão. O recado do anjo, de que todos os povos do mundo se sentiriam abençoados porque Abraão cumprira a ordem de Deus é assim reexaminado por Caim: “não compreendo como irão ser abençoados todos os povos do mundo só porque Abraão obedeceu a uma ordem estúpida”(Saramago 81). Embora aparentemente simplificada, a crítica do romance é profunda e desmascara aspectos da religião que são objetos de estudo de antropólogos e mitólogos. No episódio do sacrifício de Isaac, o narrador, escancarando seu próprio processo argumentativo, propõe: “imaginemos um diálogo entre o frustrado verdugo e a vítima salva in extremis” (Saramago 81), no qual ficam patentes alguns aspectos da religião enquanto instituição.

 

  1. Rituais e símbolos sagrados: o mito revestido de autoridade

Clifford Geertz (82) nos mostra como a perspectiva religiosa difere do senso comum na medida em que caminha em direção a realidades “mais amplas” com a “preocupação definidora” de sua aceitação e da fé nelas. Também difere da arte porque enquanto esta manufatura deliberadamente “um ar de parecença e de ilusão” ela, a perspectiva religiosa, “aprofunda a preocupação com o fato” e repousa nesse sentido do “verdadeiramente real” e suas atividades simbólicas se devotam a produzi-lo, intensificá-lo e torná-lo inviolável: “a essência da ação religiosa constitui, de um ponto de vista analítico, imbuir um certo complexo específico de símbolos –da metafísica que formulam e do estilo de vida que recomendam– de uma autoridade persuasiva.”

Quando Isaac, no diálogo imaginário proposto pelo narrador, pergunta a seu pai “que mal te fiz eu para teres querido matar-me, a mim que sou o teu único filho”, a resposta que recebe desencobre uma faceta dessa autoridade: “A idéia foi do senhor, que queria tirar a prova, […] da minha fé, da minha obediência.” Mais à frente o menino revela ao pai que não se entende com tal religião e Abraão lhe responde simplesmente: “Hás-de entender-te, meu filho, não terás outro remédio.” (Saramago 81). O questionamento do narrador de Caim em relação à ordem de deus e à atitude de Abraão –“O lógico, o natural, o simplesmente humano seria que abraão tivesse mandado o senhor à merda, mas não foi assim” (Saramago 79) –repousa, portanto, não na ridicularização do mito, que é paradoxal por natureza, mas nos complexos meandros da estrutura da religião enquanto instituição e sistema cultural e nas formas com que exerce sua autoridade. Não é ao deus dos cristãos ou a uma religião particular que a crítica de Caim se dirige. Ao salientar os aspectos antropomórficos do deus aludido na Bíblia, que incluem uma relação de defeitos reconhecidamente humanos, como a inveja e o rancor, Caim se propõe desmascarar o mito por trás do dogma e, consequentemente, as ações meramente humanas que são cometidas supostamente com o aval de seu deus e, por isso, divinizadas.

O sacrifício de Isaac está ligado à realização de um ritual, o comportamento consagrado que dá origem à convicção de que “as concepções religiosas são verídicas e de que as diretivas religiosas são corretas.” (Geertz 82). O ritual, também entendido como um símbolo e, portanto, revestido de autoridade, é o caminho pelo qual se fundem o mundo vivido e o mundo imaginado –o novo mundo que o homem deseja ao adotar uma religião. Para Geertz, entretanto, o papel da intervenção divina, qualquer que seja, está “fora do contexto dos atos concretos de observância religiosa que a convicção religiosa faz emergir no plano humano” (83).

O romance de Saramago se constrói de forma a salientar tanto o caráter mitológico do texto-fonte quanto algumas das complexas relações entre o mito e o homem. Deixando entrever algumas das teorias de estudiosos do mito, o texto vai dando indícios da natureza de sua análise por meio da intertextualidade com outros relatos míticos ou da escolha de expressões como “infância do mundo” (13) que localiza o tempo dos eventos narrados no estágio em que deuses e homens conviviam, o que, sem dúvida, recupera toda uma tradição mitológica.

Quando da expulsão de Adão e Eva do Jardim de Éden, Deus, conforme a Bíblia, assim se dirige a Adão: “[…] o solo será maldito por tua causa. É com fadiga que te alimentarás dele todos os dias da tua vida; ele fará germinar para ti espinho e cardo, e tu comerás a erva do campo.” E, concluindo a passagem das Escrituras temos: “[…] O Senhor Deus o expulsou do jardim de Éden para cultivar o solo do qual havia sido tirado.” (Gn. 3-4 14).

No livro I de As metamorfoses, de Ovídio, no capítulo “As quatro idades”, encontra-se esta passagem:

[…] seguiu-se a idade de prata […] Então pela primeira vez, o ar se abrasou, inflamado pela secura […] Então, pela primeira vez, os homens procuraram abrigos. Seus abrigos foram grutas e as ramagens das árvores e traves ligadas com cortiça. Então, pela primeira vez, as sementes foram lançadas ao solo e, sob o peso do jugo, gemeram os touros.” (Ovídio I 13).

Comparando-se os dois excertos é notável como a expulsão do casal bíblico corresponde ao fim da idade do ouro na mitologia grega. Cotejando com a leitura do episódio da expulsão de Adão e Eva em Caim, verifica-se que a fala do narrador solidariza-se tanto com o texto de Ovídio quanto com a narrativa da Bíblia, hipotexto do romance.

Fora do jardim do éden a terra era árida, inóspita, o senhor não tinha exagerado quando ameaçou adão com espinhos e cardos. Tal como também havia dito, acabara-se a boa vida.
[…]
A sua primeira morada foi uma estreita caverna, em verdade mais cavidade que caverna, de tecto baixo, descoberta num afloramento rochoso ao norte do jardim do éden quando, desesperados, vagueavam à procura de um abrigo (Saramago 19).

Mantendo-se em mente a hipótese de que o fato de o mito bíblico ainda gozar de credibilidade, a despeito dos avanços científicos e tecnológicos logrados pela humanidade, é o leitmotiv da releitura realizada nesse romance de Saramago pode-se supor que tal credibilidade se afigura como um incômodo, do ponto de vista do observador crítico contemporâneo, na medida em que, por trás dela, pode haver, camuflados, movimentos de manipulação do mito com fins específicos –o poder de instituições religiosas, por exemplo. Paul Veyne (41), em sua análise das modalidades de crença, afirma que “a crença mais difundida é aquela em que se acredita sobre a fé de outrem”. Segundo ele, essa modalidade de crença poderia, efetivamente, estar a serviço de “empreendimentos individuais que opunham sua verdade ao erro generalizado ou à ignorância.” Retomando o diálogo imaginário entre Isaac e Abraão, nota-se que o narrador tem essa percepção da crença: “E que senhor é esse que ordena a um pai que mate o seu próprio filho. É o senhor que temos, o senhor dos nossos antepassados, o senhor que já cá estava quando nascemos.” (Saramago 82, grifo nosso).

O mito, visto como ilocução que só se pode realizar quando seu emissário é reconhecidamente competente e honesto, situa-se fora da alternativa do verdadeiro e do falso, principalmente, conforme Paul Veyne, antes de o campo do saber ter sido reconfigurado por novos poderes de afirmação, como a pesquisa histórica ou a física. Baseados, inicialmente, no “diz-se” acerca de deuses e heróis, poetas e multiplicadores dos relatos míticos tinham, pois, de investir-se a si mesmos da necessária credibilidade (Veyne 35). O discurso de Caim preocupa-se em expor tais particularidades do mito e, ao expô-las, o narrador assume-se como crítico que conhece os meandros da formação do tecido mítico: “De muitas destas histórias não poderia Caim, obviamente, ter sido testemunha directa, mas algumas, quer fossem verdadeiras ou não, chegaram ao seu conhecimento pela sabida via de alguém que o havia ouvido de alguém e o veio contar a alguém.” (Saramago 102).

No interesse da manipulação de certos relatos míticos, tomam-se providências para que tais relatos apresentem uma quantidade de informações precisas e minuciosas que lhes possa revestir da necessária credibilidade. Paul Veyne dá, desse procedimento, o exemplo do missionário padre Huc que há um século e meio trabalhava na conversão de tibetanos ao cristianismo:

Tínhamos adotado um modo de ensino completamente histórico, com o cuidado de afastar dele tudo que pudesse provocar controvérsia e espírito de disputa; nomes próprios e datas bem precisas impressionavam-lhes muito mais do que raciocínios dos mais lógicos. Quando eles sabiam bem o nome de Jesus, de Jerusalém, de Pôncio Pilatos e a data de quatro mil anos após a criação do mundo, não duvidavam mais do mistério da Redenção e da pregação do Evangelho (apud VEYNE 35).

O procedimento é retomado em Caim, porém de forma irônica e com vistas ao seu escancaramento, estratégia largamente adotada pelo narrador: “Levaram tudo a moisés e ao sacerdote […] que se encontravam nas planícies de moab, junto do rio Jordão, em frente de Jericó, precisões toponímicas que aqui são deixadas para provar que não temos estado a inventar nada.” (Saramago 105, grifo nosso).

 

  1. A retomada do tempo sagrado: o mito diante do homem atual

No romance, depois de assassinar Abel, Caim é condenado por deus a peregrinar pelo mundo; a partir daí o tempo linear é abandonado na narrativa e o trajeto de Caim é marcado não pelo avanço no espaço, nem pela passagem do tempo, mas pelas mudanças sucessivas de presentes: “[…] em nossa opinião entender-nos-íamos melhor se lhe chamássemos outro presente, porque a terra é a mesma, sim, mas os presentes dela vão variando, uns são presentes passados, outros presentes por vir […]”(Saramago 77). Tal abordagem remete ao entendimento do tempo enquanto entidade fluente e transitória que pode ser interpretada sob duas perspectivas. De um lado como imobilidade, como presença constante de uma tensão dentro da qual se consumam as realizações artísticas. Por outro lado como experiência do “ainda não” (futuro), do “já não” (passado) e do “agora” (presente), facetas do tempo pelas quais a obra de arte transita ao criar-se (Grassi 64).

A esse respeito Vera Bastazin (99) pontua que o ritual ou fato mitológico carrega em si um modelo divino que aponta para a função do herói mitológico de “atualizar o que os deuses realizaram no princípio dos tempos”. No caso do herói Caim, seu constante alternar entre os diferentes presentes tem a função de atualizá-los sob o viés do olhar distanciado e crítico que ele assume, na privilegiada situação de poder conhecer os acontecimentos fora da ordem linear, colocando-se, dessa maneira, na posição do leitor contemporâneo, de quem todos os eventos presenciados por Caim são (supostamente) conhecidos na totalidade.

A retomada do conceito de tempo sagrado em Caim –illud tempus ou tempo das origens– o qual suprime as marcas de linearidade –o passado é um tempo que não mais existe e o futuro, que ainda não aconteceu, também não existe– mostra a forma com que o homem primitivo lidava com o mito; ao evidenciar como tal forma de relacionamento não condiz com o pensamento contemporâneo, o romance levanta suspeitas sobre a natureza da manipulação levada a cabo para manter o mito vivo nas sociedades atuais.

 

Conclusão

O romance de José Saramago ao mesmo tempo em que desvela o caráter mitológico dos eventos bíblicos sob uma perspectiva crítica, amparada nas teorias de estudiosos do gênero, subverte a ordem dos acontecimentos, de modo a colocar o herói na mesma posição do leitor do romance, supostamente conhecedor dos relatos bíblicos em sua totalidade; ao quebrar a linearidade, proporcionando a Caim o conhecimento do devir, o narrador oferece ao leitor a mesma oportunidade de olhar criticamente, assim como o herói, os acontecimentos presenciados por este último.

A trajetória do herói mítico também é retomada por meio da trajetória do personagem Caim, entretanto, com algumas subversões. O percurso heroico, que na mitologia é marcado pela partida, aventuras e vitória decisiva, é caracterizado em Caim, pelo constante embate entre o protagonista e aquele que deveria ser o símbolo da bondade e da proteção. Nega-se a sintonia do herói com o pai, premissa da trajetória mítica do herói.

Caim parte e vê-se envolvido –embora como simples observador– em diversas aventuras, as quais têm a função de desvelar-lhe o caráter do deus que a tudo governa. Para o leitor, apresenta-se a proposta de revisão dos próprios atos dos homens que, conforme pontua Dodds (36) sentem-se “inevitavelmente dependentes de um poder arbitrário” e caprichoso, mas, em contrapartida, a esse poder transferem responsabilidades que estão ligadas à sua própria natureza e à sua forma de estar no mundo.

Finalmente, a trajetória de Caim termina como começou, em um embate verbal com deus, em que predomina a argumentação lógica. Uma vez mais, evidencia-se o caráter mitológico dos relatos bíblicos, com a recuperação do tempo cíclico e do movimento de eterno retorno:

A resposta de deus não chegou a ser ouvida, também a fala seguinte de caim se perdeu, o mais natural é que tenham argumentado um contra o outro uma vez e muitas, a única coisa que se sabe de ciência certa é que continuaram a discutir e que a discutir estão ainda. A história acabou, não haverá nada mais que contar (Saramago 172).

 

 

Bibliografia

Bastazin, Vera. Mito e poética na literatura contemporânea. Um estudo sobre José Saramago. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2006.

A Bíblia. “Gênesis”. Tradução ecumênica. Texto bíblico integral. São Paulo: Edições Loyola, 1995.

Dodds, Eric Robertson. Os gregos e o irracional. São Paulo: Escuta, 2002.

Ebling Nair; Fraiberg, Márcio; Leal, Cláudio Ciências. Tatuí, SP: Casa publicadora brasileira, 2008.

Gaarder, Jostein. O mundo de Sofia. São Paulo: Cia das letras, 1995.

Geertz, Clifford. “A religião como sistema cultural”. In: A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008: 65-92.

_______. “’Ethos’, visão do mundo e a análise de símbolos sagrados”. In: A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008: 93-106.

Grassi, E. Arte e mito. Lisboa: Livros do Brasil, [s.d.]

Ovídio. “As quatro idades”. In: As metamorfoses. Rio de Janeiro: Tecnoprint, 1983: 13-14.

Saramago, José. Caim. São Paulo: Companhia da Letras, 2009.

Scholem, Gershom. “Características gerais do misticismo judaico”. In: As grandes correntes da mística judaica. São Paulo: Perspectiva, 1972: 3-38.

Veyne, Paul. Acreditavam os gregos em seus mitos? São Paulo: Brasiliense, 1984.

 

Notas

[1] Conforme informações contidas no próprio livro didático, os três autores possuem formação nas áreas de Ciências e Matemática; Teologia; Ornitologia e Ecologia (Leal); História; Pré-História e Evolução Humana; Ciências Biológicas e Engenharia Genética (Fraiberg); e em História Natural e Educação (Ebling).

 

 

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