MADALENA E A RAZÃO EXCLUDENTE: UMA LEITURA DE SÃO BERNARDO, DE GRACILIANO RAMOS

Alan Oliveira Machado / Ewerton de Freitas Ignacio
Universidade Estadual de Goiás / Universidade Estadual de Goiás
 
 
São Bernardo, publicado em 1933, é o segundo romance de Graciliano Ramos. A fábula da obra, a despeito da elaborada trama (Tomachévski 1978), é simples: o narrador-protagonista é Paulo Honório, dono da fazenda São Bernardo, a qual conquistara por meio de muito esforço e de jogadas financeiras nem sempre honestas. Homem truculento e de poucas palavras, arranja casamento com Madalena, moça e professora da cidade, de humilde condição social. Posicionando-se contra muitas das atitudes do marido, que espolia seus empregados, sujeitando-os a uma vida de exploração e miséria, Madalena, cada vez mais, passa a ser incompreendida por ele, cujo ciúme, com o passar do tempo, só faz aumentar, chegando ao ponto de ele sentir ciúmes do padre e de todos os trabalhadores da fazenda. Não suportando mais as vicissitudes de sua vida, a mulher acaba por se matar, deixando, ao marido viúvo, um fardo de solidão e desencanto, de que ele tenta se livrar – inutilmente – por meio do exercício da escrita dos fatos que compõem o enredo de sua vida.Desse modo, na obra, considerada por Alfredo Bosi como um romance de “tensão crítica” (Bosi 392), tem-se o registro da história de uma mulher que, depois de se casar com o fazendeiro, vê-se no centro de um jogo de forças e poder protagonizado pelo marido que, na ânsia de se apropriar de tudo, coisifica os seres humanos, sejam aqueles com quem faz negócio e usurpa, sejam os trabalhadores da fazenda, lançando-os num processo de exploração selvagem, justificado pela razão dominante, razão de molde e extração feudais que dominava a mentalidade do campo (Williams 1989).

Nas palavras de Bosi, no romance de tensão crítica o “herói opõe-se e resiste agonicamente às pressões da natureza e do meio social, embora formule ou não, em ideologias explícitas, o seu mal-estar permanente” (Bosi 392). Em São Bernardo, a tensão sobre a qual o crítico discorre é tão intensa quanto explícitas se mostram as ideologias em combate.

Nesse sentido, tem-se, nessa obra do criador de Angústia, um proprietário de fazenda que, se por um lado se posiciona de modo até certo ponto crítico contra um tipo de feudalismo rural ainda persistente no Brasil dos anos de 1930 (Cardoso 1997), sendo adepto e defensor da modernização industrial – em cujo contexto o país ensaiava os primeiros passos – e de sua utilização no campo, por outro lado reproduzia pragmaticamente, na sua relação com a terra e o meio social à sua volta, o que havia de mais desumano no trato com as pessoas, configurando-se isso, para alguém que vivia um contexto de modernização das formas e relações de trabalho, algo arcaico e injustificável.

Esse comportamento autoritário e arbitrário do narrador-protagonista deixa-se evidenciar, dentre outros momentos, nos instantes em que ele repreendia com severidade seu Ribeiro, homem de idade já avançada, que havia sido contratado como guarda-livros. Tais reprimendas se davam em razão de o empregado conversar amigavelmente, durante o expediente, com Madalena e com a tia da moça, algo que, para os padrões do ciumento narrador, era considerado descabido, despropositado.

Em atitudes que valorizam as máquinas e seu poder de produção, Paulo Honório trata os seres humanos à sua volta também como máquinas cujo funcionamento deve direcionar-se unicamente à promoção de sua satisfação pessoal. Nesse aspecto, não é gratuito o fato de, em certo momento na narrativa, ele dirigir-se a seu Ribeiro – personagem que no passado gozou de uma invejável posição social, mas que perdeu o antigo poderio com o advento dos novos tempos – com palavras duras, valendo-se de uma metáfora alusiva à violência com que a realidade da modernização, com suas máquinas, médicos, advogados, leis e costumes, destroçaram o antigo modelo social e patriarcalista, dizendo-lhe: “tenho a impressão de que o senhor deixou as pernas debaixo de um automóvel, porque não andou mais depressa?” (Ramos 36). Interessante observar novamente que Paulo Honório, se por um lado “andou mais depressa”, não permitindo que o maquinismo dos tempos modernos o atropelasse, como fez com seu Ribeiro, acabou adotando, numa medida conciliatória, um posicionamento patriarcalista, em cujo funcionamento ele era a figura principal, sendo, portanto, o único cujas decisões efetivamente tinham poder.

As benesses da modernização, desse modo, serviam-lhe bem enquanto estivesse a serviço dos seus interesses pessoais de proprietário rural. Assim, em sua fazenda, grassava a mais dura exploração e exclusão dos trabalhadores, mantidos como animais da propriedade: “As criaturas que me serviram durante anos eram bichos. Havia bichos domésticos, como o Padilha, bichos do mato, como o Casimiro Lopes, e muitos bichos para o serviço do campo, bois mansos” (Ramos 182). Mesmo as crianças que estudavam na escola da fazenda – aberta por Paulo Honório com a finalidade de agradar ao governador – eram tratadas como animais, pois, segundo ele, tratava-se de “bezerrinhos mais taludos [que] soletravam a cartilha e aprendiam de cor os mandamentos da lei de Deus” (Ramos 182).

Como contraponto ao comportamento truculento e insensível de Paulo Honório, tem-se as atitudes de sua esposa, Madalena, que, em pequenas ações cotidianas, faz emergirem de forma incômoda os elementos que a racionalidade capitalista pragmática do marido apaga sob o discurso contraditório de que, no plano social, as coisas não precisam mudar na fazenda São Bernardo. Os principais elementos que Madalena faz emergir estão ligados à educação e a melhores condições de vida dos trabalhadores, reduzidos à condição de animais. Nesse plano, Madalena desponta como uma espécie de heroína que se compadece com a lastimável situação dos colonos da fazenda e que se põe a contestar as injustiças cometidas pela forma de o marido gerir a propriedade. Mulher de camada pobre, instruída, com rara formação em escola normal e aberta à discussão de ideias políticas socialistas, Madalena foge ao padrão feminino vigente na época, padrão este bem ilustrado na fala de Paulo Honório: “Dirijo-me a uma senhora, e ela se encolhe e se arrepia toda. Se não se encolhe nem se arrepia, um sujeito que está de fora jura que há safadeza no caso” (Ramos 65).

Tem-se, pois, nas páginas de São Bernardo, o registro do embate de dois mundos: de um lado, o de Paulo Honório, capitalista declarado, para quem as pessoas, assim como tudo, têm um preço, o que se evidencia quando ele se dirige ao antigo dono de sua fazenda, agora reduzido à condição de professor da escola rural aberta pelo narrador: “nem sei quanto você vale. Uns cem mil reis por mês.” (Ramos 50). Para o narrador, ainda, os trabalhadores da fazenda são apenas engrenagens do processo de produção, não importando se suas condições de vida os degradam ou não. De outro lado, tem-se o mundo de Madalena, para quem a situação dos colonos é deplorável, motivo pelo qual ela se põe a auxiliá-los à revelia do marido. Nesse sentido, sua primeira ação, ao tornar-se senhora da fazenda São Bernardo, foi sair pela propriedade com finalidade de conhecer a realidade da vida dos colonos. Depois de constatar o estado de penúria em que eles viviam, recorreu ao marido, cobrando-lhe providências:

Outra coisa, continuou Madalena. A família de mestre Caetano está sofrendo privações.
– Já conhece mestre Caetano? perguntei admirado. Privações é sempre a mesma coisa. A verdade é que não preciso mais dele. Era melhor ir cavar a vida fora.
– Doente…
– Devia ter feito economia. São todos assim, imprevidentes. Uma doença qualquer, e é isto: adiantamentos, remédios. Vai-se o lucro todo.
– Ele já trabalhou demais. E está tão velho!
– Muito, perdeu a força. Põe a alavanca numa pedra e chama os cavouqueiros para deslocá-la. Não vale os seis mil-réis que recebia. Mas não tem dúvida: mande o que for necessário. Mande meia cuia de farinha, mande uns litros de feijão. É dinheiro perdido (Ramos 96).

A posição de Paulo Honório, porém, mantém-se a mesma. Mandar o necessário para um trabalhador que envelheceu trabalhando para a fazenda, a troco de migalhas, é mandar “meia cuia de farinha e uns litros de feijão”. Mesmo assim, esse socorro não se efetivaria sem a intervenção de Madalena, cuja luta, a partir do instante em que passa a morar na fazenda, é pela humanização das condições de trabalho e de vida dos empregados do marido. Ela possui uma visão de mundo distinta da do marido, conforme assevera Padilha, professor da escolinha da fazenda, depois de ter sido pressionado pelo patrão num acesso de desconfiança e ciúme: “Dona Madalena, seu Paulo embirra com o socialismo. É melhor a senhora deixar de novidade. Essas coisas não servem” (Ramos 147).

Ressalte-se, ainda, que Madalena não pensa essa humanização fora do direito a condições dignas de moradia e de educação, porque insiste: “As casas dos moradores, lá embaixo, também são úmidas e frias. É uma tristeza” (Ramos 162). Para Paulo Honório, porém, as benesses da modernidade serviriam apenas para maximizar-lhe os lucros, restringindo-se, portanto, ao domínio de novas técnicas agrícolas, posse de maquinários e maior controle de produção. Os elementos que propiciaram o desenvolvimento dessas máquinas e técnicas, no caso a sofisticação da educação e das condições de vida, podiam ser postos de lado.

Esse comportamento do narrador-protagonista encontra ecos na realidade circundante, haja vista ser característico de um Brasil rural híbrido. Nos anos de 1930, período em que se ambienta a narrativa de Graciliano Ramos, ao passo que os grandes centros do país substituíam as práticas ligadas ao antigo regime – arcaico e patriarcalista – por uma nova mentalidade capitalista, o campo sofria as pressões entre se adaptar às novas regras e manter as práticas da casa-grande. De acordo com Thomas Skidmore, o sistema político, com os chefes políticos do interior – os antigos coronéis – que governavam seus domínios patriarcais com mão de ferro, estava em declínio, “como resultado das mudanças econômicas que minavam a tradicional estrutura econômica do atrasado interior brasileiro.” (Skidmore 22). Nesse âmbito, a conjunção entre passado rural e modernidade capitalista, verificável no comportamento de Paulo Honório, e a visão social humanista de Madalena, evidencia o conflito que marcará predominantemente as páginas de São Bernardo, selando o destino angustiante de um, e o destino trágico do outro.

Segundo Boaventura de Sousa Santos, pensador português da atualidade, ao discorrer sobre o que denomina “sociologia das ausências e das emergências”, afirma que “Há produção de não-existência sempre que uma dada entidade é desqualificada e tornada invisível, ininteligível ou descartável de um modo irreversível” (Santos 787).

Pode-se observar, nesse aspecto, que em São Bernardo existe apenas um modelo e apenas uma voz, qual seja a de Paulo Honório. Tudo o que escapa à ordem racional do proprietário da fazenda é objeto de desprezo e, portanto, invariavelmente relegado à condição de algo inexistente, posto que invisível.

A voz de Madalena, no entanto, não ecoa no vazio: Paulo Honório, ainda que não concorde com as ponderações da esposa, tem de ouvi-la, do que resultam embates erigidos a partir da constituição de duas racionalidades: uma que reduz o presente a uma linearidade racional, que para se manter hegemônica sustenta uma espécie de “não-existência” da heterogeneidade, da multiplicidade de fatores e realidades sociais presentes no espaço da fazenda, e outra que faz com quem essa existência apareça excluída da linha de interesses hegemônicos, dilatando o presente de modo a gerar uma tensão degradante daquela racionalidade. Na massa verbal da narrativa, Paulo Honório encolhe o presente entre as quatro paredes da casa da fazenda, resumindo-o a cálculos de produção e a lucro, negligenciando os elementos que persistem fora desses contornos que indicam os limites de sua racionalidade, tornando esses elementos inexistentes ou, como melhor define Santos, “não-existentes” (Santos 786). A despeito desses embates, e mesmo que o discurso de Madalena não caia no vazio, ele é tido por Paulo Honório como discurso descabido, nulo, merecedor de uma condição de invisibilidade.

Isso se torna evidente no episódio em que ela, com o intuito de atualizar a escola da fazenda, por meio de investimentos em materiais didáticos, defendeu a ideia de que se fazia necessário e importante um maior cuidado com a educação das crianças, pois daí adviria o seu crescimento intelectual e melhores condições de vida, ela “Foi à escola, criticou o método de ensino do Padilha e entrou a amolar-me reclamando um globo, mapas […] folhetos, cartões e pedacinhos de tábua para os filhos dos trabalhadores” (Ramos 107). O marido, que desprezava a utilidade da educação, irritou-se com as interferências da esposa na forma como se processava o ensino na escola da fazenda e, muito a contragosto, só concordou em adquirir novos materiais didáticos porque entreviu, nesse gesto, a possibilidade de agradar ao governador, com cuja boa vontade gostaria de contar.

De igual modo, irritavam-no as doações de alimentos e roupas feitas pela mulher às famílias de trabalhadores. Ora, se ele ignorava – por considerar invisíveis – os problemas e dificuldades pelos quais passavam seus agregados, achava justo discordar do posicionamento da esposa, antes julgando seus atos descabidos e motivados por interesses escusos, uma vez que os ciúmes que sentia de Madalena faziam com que ele entrevisse a realidade de uma forma distorcida.

Ressalte-se que, além de ignorar o quadro de uma realidade miserável em que seus empregados sobreviviam, Paulo Honório ainda perseguia e espancava alguns deles em virtude da desconfiança de que a atuação de Madalena estava desvirtuando o dócil comportamento dos colonos, infundindo-lhes desobediência e desapego ao trabalho. Em um desses instantes de fúria, ele desabafa, com fúria: “Sim senhor! Conluiada com o Padilha e tentando afastar os empregados sérios do bom caminho. Sim senhor, comunista! Eu construindo e ela desmanchando” (Ramos 130). Dessa maneira, enquanto Madalena, com tintas de utopia e comportamento de heroína, buscava melhorar a situação de abandono absoluto dos empregados, as críticas e a perturbação de Paulo Honório seguiam cada vez mais ásperas, cada vez mais contundentes:

– A culpada é Madalena, que tinha oferecido à Rosa um vestido de seda. […] Não pelo prejuízo, é pelo desarranjo que traz a esse povinho um vestido de seda.
Além de tudo vestido de seda para Rosa, sapatos e lençóis para Margarida. Sem me consultar. Já viram descaramento assim? Um abuso, um roubo, positivamente um roubo (Ramos 119-122).

No episódio do qual o fragmento acima foi retirado, o narrador fica enfurecido ao tomar conhecimento de que sua mulher havia dado um vestido de seda rasgado para Rosa, mulher de Marciano, mulher com quem ele mantivera relações sexuais fortuitas por certo tempo. Quanto aos lençóis, foram dados para Margarida, mulher que, em sua juventude, fora uma verdadeira mãe para ele. Esse sentimento de sovinice que o ataca antecipa o sentimento doentio que, em ritmo acelerado, o acometerá até o dia em que Madalena, cansada de ser incompreendida, se mata.

Segundo Georg Lukács (94), o herói moderno apresenta um caráter problemático, ou seja, ao contrário do herói clássico, que era capaz de realizar sólidas façanhas e de protagonizar grandiosos feitos, o herói da modernidade sonha, deseja e tropeça na realidade que sempre engole seus projetos e esfacela seus desejos. O herói moderno, quando consegue apontar para saídas e soluções, o faz mais pelos seus fracassos do que por seus feitos.

Olhando por esse ângulo, Madalena, mais que uma heroína problemática, é uma heroína cristã, bem no sentido de que o herói cristão não raro se imola em prol da libertação de alguém ou de algum povo (Jaeger 1991). Seguindo-se este raciocínio, o primeiro ato heroico de Madalena teria sido o de submeter-se a um matrimônio meramente comercial com o fito de proteger a tia, já velha, que a criou e educou. A partir daí, empenhada na restauração e libertação de um “povo” desumanizado, a professora conseguiu um feito maior: desencadeou um processo de re-humanização do opressor, resgatando-o do estado bruto de existência a que as relações sociais capitalistas o condenaram. A trajetória de Madalena na fazenda São Bernardo, não sem incômodo, fez aparecer aos olhos do marido, representante de uma racionalidade comercial que reduz a vida à condição de mercadoria, a noção da coisificação/animalização do homem.

Afirmamos não sem incômodo porque a trajetória de Paulo Honório rumo à percepção de que explorava as pessoas sob sua autoridade fez-se de modo gradual, solidificando-se apenas a morte de Madalena. Isso não implica afirmar que, após a morte dela, ele tenha se arrependido de seus feitos e se tornado alguém mais humano. Apenas pôde ler, com mais isenção, a realidade à sua volta, sem necessariamente sentir desejo de transformá-la. Nesse sentido, o ato de escrever a própria história representa não uma oportunidade de redenção, mas sim uma possibilidade de conseguir entender melhor os contornos de tudo quanto vivenciou.

De certa forma ecoa, no romance de Graciliano Ramos, o que Umberto Eco assevera ao empreender uma releitura de Hegel e Marx, sobre o fato de que “alienar-se em algo significa renunciar a si mesmo para entregar-se a um poder estranho, tornar-se outro em se fazendo algo” (Eco 228 – grifo do autor).

Paulo Honório, na medida em que não consegue pensar em outra coisa a não ser maximizar o lucro da fazenda e nem parar de se deixar levar pela sandice do ciúme exacerbado que sente por Madalena, não consegue mais se ver livre do persistente, obcecado desejo – que, na verdade, é mais o sentimento de uma missão a ser cumprida – de flagrar a esposa em um momento de traição, chegando, mesmo, ao ponto de colocar os negócios em segundo plano. Na medida em que parece se distanciar de seus antigos anseios – aumentar os lucros, ter uma esposa e filhos que carregassem seu nome e herdassem sua fortuna – para entregar-se a um “poder estranho” (Eco 228), tornando-se um tipo de detetive cujas preocupações só seriam dissipadas se flagrasse a suposta traição da esposa.

Novamente reportando-nos ao que Boaventura de Sousa Santos assevera sobre a “sociologia das ausências e das emergências” (Santos 785), pode-se constatar que, em outro momento da narrativa, o narrador, impiedosamente, reduz um empregado seu à triste situação de um verdadeiro farrapo humano, como se torna visível no diálogo que entabula com a esposa, ao ser repreendido por ela logo após ter espancado Marciano:

– Como tem coragem de espancar uma criatura daquela forma?
– Ah! Sim! por causa do Marciano. Pensei que fosse coisa séria. Assustou-me.
(…) – Ninharia, filha. Está você aí se afogando em pouca água. Essa gente faz o que se manda, mas não vai sem pancada. E Marciano não é propriamente um homem.
– Por quê?
– Eu sei lá. Foi vontade de Deus. É um molambo.
– Claro. Você vive a humilhá-lo.
– Protesto! Exclamei alterando-me. Quando o conheci já era molambo.
– Provavelmente porque sempre foi tratado a pontapés.
– Qual nada! É molambo porque nasceu molambo (Ramos 109-110).

Nem após sua morte, Madalena consegue desnaturalizar por completo a questão da diferença, aos olhos de seu marido dominador, entre ele e os seres sob seu jugo. Nesse sentido, se por um lado a condição dos desvalidos foi percebida por Paulo Honório, fazendo com que ele pudesse sentir o mal-estar dos desafortunados que foram vitimados por sua lógica exploradora, por outro lado esses desvalidos continuam sendo considerados como “bichos” e despidos, portanto, de sua condição essencial de seres humanos: “Cinqüenta anos perdidos, cinqüenta anos gastos sem objetivo, a maltratar-me e a maltratar os outros. […] Bichos. As criaturas que me serviram durante anos eram bichos” (Ramos 181-182).

Não suportando mais viver presenciando arbitrariedades, fossem as cometidas contra os empregados da fazenda, fossem as cometidas contra ela mesma, posto que sempre era vítima do ciúme do marido, que lhe fazia falsas acusações de infidelidade, Madalena definha e acaba por tomar uma atitude que, embora não impensada, foi drástica: deixa uma carta para Paulo Honório e se mata.

Interessante observar que, se por um lado Madalena, resistindo às pressões do marido, cuja intenção era a de torná-la apenas mais uma aquisição a compor o plantel da fazenda, acabou por se definhar e morrer, por outro lado foi por meio dessa mesma resistência que ela acabou se fortalecendo, à proporção que fez desfilar, diante do marido, as vítimas do sistema que ele defendia como algo normal. Desse modo, à medida que se debilitava na luta contra os desmandos do marido, a professora propiciava e fortalecia a irrupção de outro tipo de mentalidade, voltada para a igualdade, para a divisão equitativa da riqueza, fazendo brotar, em suma, o ideário socialista. Essa direção social se evidencia nas longas conversas travadas entre ela, Padilha, Gondim, Padre Silvestre e Pereira. Em uma dessas palestras, ela se refere a uma possível revolução comunista nestes termos: “– Seria magnífico, interrompeu Madalena. Depois se endireitava tudo” (Ramos 128).

Guardadas as devidas e necessárias proporções, o temperamento decidido, altivo e esclarecido de Madalena assemelha-se ao de uma personagem real dos anos de 1930: Olga Benario, a judia-alemã, militante internacional do comunismo, que chegou ao Brasil como escolta do capitão Luis Carlos Prestes. Sua missão era protegê-lo durante a viagem, que teve escalas em vários países, como forma de despistar os órgãos de combate ao comunismo. Pelo retrato que Fernando Morais (1987) pinta de Olga Benario, o de uma mulher corajosa, independente, cujo comportamento destoava do que a etiqueta social determinava ser o perfil da boa mulher nos anos da década de 1930, conseguimos vislumbrar os traços de Madalena, professora de sentimentos e ideário comunistas, dada ao debate e que, de imediato, rejeitou as funções que o marido lhe havia destinado no espaço do casamento e da casa da fazenda. Outro ponto em comum entre essas duas personagens – uma histórica e outra ficcional –, é o fato de que elas pagaram o mesmo preço pela manutenção de seus ideais: pagaram com suas vidas.

Ainda a respeito das duas sociologias a que se refere Boaventura Sousa Santos (2006), a das “ausências” e a das “emergências”, e agora à guisa de conclusão, é preciso acrescentar que elas são bases da crítica à racionalidade moderna. O pensador português se detém especificamente na análise de duas formas dessa razão: “razão metonímica” e “razão proléptica”, por entender que essas duas formas, ainda presentes como modo de pensar dominante, não foram debatidas a contento. A razão metonímica seria a “que se reivindica como única forma de racionalidade e, por conseguinte, não se aplica a descobrir outros tipos de racionalidade (…) se o faz, fá-lo apenas para torná-las em matéria-prima” (Santos 780); e a razão proléptica a “que não se aplica a pensar o futuro, porque julga que sabe tudo a respeito dele e o concebe como uma superação linear, automática e infinita do presente” (Santos 781).

É contra essas duas facetas das razões tratadas por Santos que, na narrativa de Graciliano, Madalena se insurge, sendo esse também o motivo de provocar tanta fúria no marido, crente nas características lineares do progresso e nas verdades construídas sob sua ordem lógica, mas cego em meio à realidade encoberta por essa teia racional que submete o todo a uma parte e julga o mundo a partir dessa parte como se fosse um todo.

A herança da passagem de Madalena pela fazenda São Bernardo é a ruína, não porque esta já não existisse ali, mas porque o proprietário não conseguia enxergá-la. Essa ruína não é apenas material, é também racional, existencial e humana. No cenário que Graciliano Ramos constrói no desfecho de sua narrativa, o próprio homem, “dínamo emperrado”, conforme expressão de Lafetá, em nota a 47ª edição do romance, aparece desfigurado, arruinado em todas as instâncias, culpado e angustiado porque, enfim, consciente, capaz de ver fora do trilho de sua racionalidade o estado de degradação do indivíduo e do social em grande parte sustentado pelas suas próprias ações. Essa consciência, embora amargurada e reativa, talvez tenha sido o principal resultado da luta encampada por Madalena ao longo da narrativa.

Mais difícil do que eliminar a miséria humana é impedir que ela continue a ser produzida. Na medida em que Paulo Honório, após o suicídio da esposa, tem os ânimos arrefecidos, tornando-se um sujeito reflexivo e sorumbático, tem-se a nítida impressão de que o dínamo que produzia repetidamente o ciclo de desumanização, nos domínios da fazenda São Bernardo, foi emperrado pela atuação da resistente Madalena, e definitivamente desativado com sua morte.
 
 
Bibliografia

Bosi, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 43. ed. São Paulo: Cultrix, 2006.

Cardoso, Fernando Henrique et al. O Brasil republicano. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997.

Eco, Umberto. Obra aberta: forma e indeterminação nas poéticas contemporâneas. São Paulo: Perspectiva, 1969.

Jaeger, Werner. Cristianismo primitivo e paideia grega. Lisboa. Portugal: Edições 70, 1991.

Lafetá, João Luiz. “O mundo à revelia”. In: – São Bernardo. 47. ed. São Paulo: Record, 1988.

Lucáks, Georg. Teoria do Romance. Lisboa: Ed. Presença, s/d.

Morais, Fernando. Olga. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

Ramos, Graciliano. São Bernardo. 47 ed. São Paulo: Record, 1988.

Santos, Boaventura Sousa. “Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências”. In: SANTOS, Boaventura de Sousa (Org.). Conhecimento prudente para uma vida decente: um discurso sobre as ciências revisitado. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2006.

Sennett, Richard. Carne e pedra: o corpo e a cidade na civilização ocidental. Rio de Janeiro: BestBolso, 2008.

Skidmore, Thomas. Brasil: de Getúlio a Castelo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.

Tomachévski, Boris et al. Teoria da literatura: formalistas russos. 4. ed. Porto Alegre: Globo, 1978.

Williams, Raymond. O campo e a cidade na história e na literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

 
 

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