HUMANIZAÇÃO DA FIGURA FEMININA EM O MITO, DE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

Antonio Rediver Guizzo / Maíra Soalheiro Grade / Antonio Donizeti da Cruz
Unioeste / Unioeste / Unioeste
 
 
Toda tentativa de apreensão logicizante do significado de um poema incorre em uma inadequação dos aparatos teóricos frente à densidade e plurissignificação do objeto estético. Mas, se a consciência da impossibilidade do esgotamento dos sentidos de um poema restringe, em certa medida, a atividade crítica enquanto elaboradora de conceitos e determinações, em contrapartida, o intérprete, ao procurar acercar-se de seu objeto estético, desprovido, na medida do possível, de crenças e juízos pré-estabelecidos, poderá transpor, por um breve e não totalizante instante, o abismo que separa a ciência da arte e intuir, embora nunca de forma concludente, os sentidos encerrados em uma obra. Ou seja, nas palavras de Bosi,

quando este [o crítico] se abeira respeitoso da densidade do objeto estético, reconhecendo que a sua teoria, por mais científica e rigorosa que pareça, não vai ‘explicá-lo’ uma vez por todas, mas apenas tentará compreender alguns dos significados e dos seus processos de expressão, o risco de determinismo será esconjurado desde o primeiro olhar do analista (37).

Desta forma, mesmo quando o intérprete acerca-se o mais próximo possível do poema, toda pretensão delimitadora de sentidos apenas tolherá a vertiginosa pluralidade da poesia, pois “Só no poema a poesia se recolhe e se revela plenamente” (Paz 17).

Com este olhar, debruçemo-nos sobre o poema O mito, de Carlos Drummond de Andrade, no qual a percepção de uma mulher – que pode ser imaginada enquanto ser particular ou enquanto representação mnemônica do gênero, pois a única designação pela qual é nomeada é “Fulana” – transforma-se em tema para a representação poética do processo de materialização e humanização da mitológica e idealizada figura da musa que, principalmente a partir do modernismo, encarna-se na presença física da mulher, representada predominantemente em sua superficialidade, pois apreendida dentro de uma estrutura essencialmente patriarcal de sociedade.

A imagem da musa enquanto entidade mitológica capaz de inspirar a criação artística e científica origina-se na antiga Grécia. Segundo a mitologia grega, as musas surgem a partir do desejo dos deuses do Olimpo de perpetuar a glória da vitória sobre os filhos de Urano, conhecidos como titãs. Zeus, incumbido de encontrar o meio pelo qual perpetuaria a vitória dos deuses, relaciona-se com Mnemósine, a deusa da memória. Desta relação nascem nove filhas, destinadas a cantar as glórias dos deuses acompanhadas pela lira de Apolo. Segundo a crença grega, destas divindades provém a inspiração para o canto dos primeiros aedos.

Esta ideia da vinculação entre arte e inspiração mediada por uma figura externa perpassa toda a tradição da poesia ocidental e, dentro dela, as musas são um dos elementos mais marcantes e recorrentes. Na própria estrutura da poesia épica, delimita-se uma parte imprescindível chamada de invocação, na qual o poeta pede auxílio a entidades mitológicas para compor seu canto. Esta parte da epopeia pode ser observada na tradição poética de língua portuguesa em Camões, “E vós, Tágides minhas, pois criado/ Tendes em mi um novo engenho ardente,/ Se sempre, em verso humilde, celebrado/ Foi de mi vosso rio alegremente,/ Dai-me agora um som alto e sublimado,/ Um estilo grandíloco e corrente […]” (Camões 12).

Porém, é na poesia lírica que a imagem da musa descerá, gradativamente, do panteão dos deuses a terra; e o primeiro passo será a transformação da deusa em mulher idealizada, a partir do qual ganhará, paulatinamente, contornos mais realistas. Para a ilustração deste movimento dentro da tradição poética brasileira, pode-se recorrer a Marília de Dirceu, obra de Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810), na qual a figura feminina, embora idealizada como nas demais produções árcades, ganha certos contornos realistas, segundo a visão de alguns críticos, pautados na historiografia literária, que apontam Marília como Maria Dorotéia Joaquina de Seixas, adolescente de 17 anos pela qual Tomás Antônio Gonzaga apaixonou-se aos 40 anos e, com a qual, não pôde casar-se devido à prisão e exílio sofridos em decorrência de seu envolvimento com a Inconfidência Mineira. E é justamente este movimento de corporificação gradativa e constante da musa que será tema emO mito de Carlos Drummond de Andrade.

Publicado na obra A rosa do Povo (1945) – livro “dos mais discutidos e apreciados da poesia moderna brasileira: celebrado como ponto alto da poesia de participação social, é, ao mesmo tempo, marco da linguagem modernista, por sua expressão vigorosa e arrojadamente inventiva.” (Achcar 48) –, o poema O mito, além de representar uma discussão com a tradição poética em relação à ideia da musa inspiradora, revela um denso questionamento vinculado às relações sociais, dentro de uma perspectiva manifestadamente pautada na ideia de embate entre classes, realizada por um poeta indissoluvelmente ligado a seu tempo, que possui uma consciência avassaladora deste fato – chave que não pode ser perdida na leitura deste poema. Porém, para evitar uma análise equivocada, que pretenda apreender o poema apenas em um discurso verificável histórica e sociologicamente, também se deve atentar à advertência de Mirella Márcia Longo:

O poeta mineiro jamais conseguiu aderir completamente às grandes construções ideológicas do século XX. Sua breve aproximação ao socialismo reflete antes o seu humanismo, sem chegar a constituir uma adesão completa. Às soluções propostas pelas arquiteturas políticas – fascismo, stalinismo – e pelas ideologias religiosas, ou mesmo pelos psicologismos, Drummond responde com gestos de negação e suspeita, permanecendo com a perspectiva que lhe oferecem as próprias retinas fatigadas na insistente inspeção do mundo. (1)

Outro aspecto fundamental à análise do poema em questão é o compromisso, assumido conscientemente por Drummond, com a linguagem poética, o que resplandece na qualidade, ritmo e consistência de seus versos. E é por este aspecto que se iniciará a leitura deste poema, pois, como Bosi adverte

No poema, o desenho, o ritmo e a extensão da frase não são aleatórios nem puramente convencionais. Se a forma é artística, se construção e expressão andam juntas, sempre se dá algum nexo entre a sintaxe do período e a ideia ou sentimento que se quer significar. (226)

O poema O mito divide-se em quarenta e cinco estrofes de quatro versos e uma – a última – de dois versos, sendo todos os versos compostos por redondilhas maiores (sete sílabas poéticas) e sem rimas fixas, o que confere ao poema um ritmo dinâmico e concentrado, perpassado por um conjunto bastante diversificado de imagens.

Verso extremamente rítmico e de fácil memorização, o heptassílabo é utilizado frequentemente em canções e quadras populares, tendo sido popularizado na tradição lírica portuguesa a partir das cantigas medievais. Além disto, o verso de sete sílabas “é o mais simples, do ponto de vista das leis métricas. Basta que a última sílaba seja acentuada, os demais acentos podem cair em qualquer outra sílaba” (Goldstein 27), o que confere maior predileção por este verso nas produções populares.

Além dos versos, a estrofação do poema em quadras remete, também, a uma forma de divisão vinculada à sabedoria popular e de fácil memorização, forma frequente em cantigas de roda e ditados.

A escolha da estrofação e da métrica no poema remete, assim, a uma forma e um ritmo que, por sua recorrente presença na cultura popular, ativa certas estruturas mnemônicas formadas através da repetição de cantigas e quadras populares, principalmente na infância, e provoca certo sentimento de familiaridade no leitor, o que acarreta certa pregnância dos versos sobre a memória, como se a estrutura do primeiro ecoasse sobre o segundo e assim sucessivamente. Somada a esta estrutura, a repetição constante da palavra “Fulana”, predominante nos primeiros versos, imprime sentimento de aflição crescente diante das tentativas frustradas de delimitar a imagem feminina enquanto ser ou ideal ou humano.

Sequer conheço Fulana,
vejo Fulana tão curto,
Fulana jamais me vê,
mas como amo fulana (Drummond 84).

Além disso, a maioria das estrofes do poema, embora em estrita relação com as demais, mantém certa autonomia de sentido, o que revigora a marcação rítmica e a impressão de ressonância, ao mesmo tempo em que invoca uma individuação, suscita um ritmo de permanência, revivificador de uma estrutura que reproduz a procura angustiante do eu-lírico por uma resposta ao mistério de Fulana.

Mas, além da forma, a poesia é a vivificação de um sentimento expresso por meio de uma coerente complexidade de imagens. Assim, para adentrar ao universo do poema, deve-se compreender a estrutura das imagens – segundo Laplantine e Trindade, “construções baseadas nas informações obtidas pelas experiências visuais anteriores.” (5).

A primeira característica da imagem é sua relação com a empeiria, com o mundo sensível. Sob este ínterim, não há como desvincular imagem e percepção sensorial. Entretanto, a imagem não é o objeto em si, mas uma construção estabelecida na dialética entre a realidade do objeto e certas estruturas do pensamento, representações da exterioridade mediadas por estruturas internas.

Outra característica da imagem é o seu caráter alógico de estruturação, pois “não pode ser reduzida a um argumento ‘verdadeiro’ ou ‘falso’ formal” (Durand, O imaginário 10), ou reduzida a um sentido inequívoco, pois há, nela, sempre uma pregnância que permite inferir-se a partir dela diversos sentidos – “todo ‘objeto’ imaginário é constitutivamente ‘dilemático’ (Claude Lévi-Strauss) ou “anfibológico” (isto é, “ambíguo” ao compartilhar com seu oposto uma qualidade comum)” (Durand, O imaginário 84).

No mais, a imagem manifesta-se, também, por meio do símbolo – signo concreto, e não arbitrário, que, por relação natural, evoca uma entidade ausente ou não percebida; esta simbolização permite que o conhecimento seja condensado – “É graças aos símbolos que o homem sai de sua situação particular e se ‘abre’ para o geral e o universal” (Eliade 172).

Pode se observar, desta forma, que o pathos veiculado pelo poema é expresso e reiterado pela constelação de imagens que o enforma e o anima. Mas, apesar do caráter dilemático e alógico das imagens, o poema dispõe-se segundo uma unidade de sentimento que o orienta e que pode ser apreendida analogicamente – “Se o sentimento é vivo e profundo, as figuras repontarão e a fantasia estética saberá dar-lhes ritmo e coerência” (Bosi 231). Assim sendo, no poema O mito, encontrar-se-á uma constelação de imagens que, em conjunto, orientar-se-á dentro de certa coerência que poderá ser apreendida se mediada pelo sentimento que o anima: a procura dialetizante pela definição, delimitação e encarnação do objeto amoroso.

Desta forma, após o eu-lírico sublimar a figura de Fulana na primeira estrofe – Fulana jamais me vê,/ mas como eu amo Fulana” –, na segunda, as imagens remetem-se à contraposição entre a ideia de amor romântico e o sexo, contradição que, na justaposição de universos inconciliáveis dentro de uma tradição literária que segrega a idealização amorosa da relação carnal, representará a abertura da vazão de diversas imagens que dialética e suplementarmente culminarão na resolução da busca.

Amarei mesmo Fulana?
ou é ilusão de sexo?
Talvez a linha do busto,
da perna, talvez do ombro
(Drummond 84).

Na quarta estrofe, seguindo esta orientação, inicia-se a enumeração de ações que revelam um cotidiano, uma rotina de vida que, embora valorizada enquantostatus social – dança, esporte, bar –, aproxima a imagem de Fulana da representação de uma mulher não mais inatingível enquanto figura idealizada, mas enquanto ser de classe social diversa.

Mas Fulana vai se rindo…
Vejam Fulana dançando.
No esporte ela está sozinha.
No bar, quão acompanhada
(Drummond 85).

Mas além da classe, “Fulana”, ao contrário da mulher patriarcal, possui autonomia de seu desejo e vontade: “Fulana” é livre, não pertence à determinada família, e a liberdade é condição que fortalece o lugar desta mulher enquanto pessoa, ser não simplesmente sujeitado às circunstâncias sociais, como entende Chauí:

Considerando que a humanidade dos humanos reside no fato de serem racionais, dotados de vontade livre, de capacidade para a comunicação e para a vida em sociedade, de capacidade para interagir com a Natureza e com o tempo, nossa cultura e sociedade nos definem como sujeitos do conhecimento e da ação, localizando a violência em tudo aquilo que reduz um sujeito à condição de objeto (308).

Tal liberdade de Fulana – condição que o homem, ainda sob a estrutura de uma sociedade patriarcal, não está totalmente apto a conviver – é possibilitada pelo poder econômico. Como salienta Ribeiro,

Somente quando ascende da pobreza a certa suficiência econômica é que a mulher alcança condições mínimas para aspirar a uma vida sentimental autônoma, para impor dignidade às relações sexuais, conduzindo-as à forma de um jogo coparticipado e, finalmente, à oportunidade de estruturar uma vida familiar estável, revestida dos símbolos religiosos e legais do reconhecimento social (239-240).

Nas próximas estrofes, esta condição é explicitamente posta: “É dama de alta fidúcia,/ tem latifúndios, iates,/ sustenta cinco mil pobres./ Menos eu… que de orgulhoso/ Me basto pensando nela” (Drummond 85).

Porém, embora inserida em uma realidade social, Fulana continua a figurar, antagonicamente, elementos idealizados na representação da mulher segundo uma tradição literária ocidental.

Como deixar de invadir
sua casa de mil fechos
e sua veste arrancando
mostrá-la depois ao povo

tal como é ou deve ser:
branca, intata, neutra, rara,
feita de pedra translúcida,
de ausências e ruivos ornatos
(Drummond 85-86).

Os adjetivos “branca, intata, neutra, rara”, tão recorrentes na representação do amor idealizado romântico, inferem, novamente, para uma sublimação, pois, como afirma Gilbert Durand, representam o arquétipo da luz uraniana que contrapõe-se às imagens das trevas, da queda e da morte (“Fulana é vida”). Além disto, representam uma corporeidade diversa da matéria, do natural, já que é perpassada por ausências e possui forma translúcida.

Seguindo o movimento pressuposto, em contraposição a estes adjetivos positivos dentro de uma escala idealizante, nas estrofes seguintes, Fulana reincorpora-se em imagem real ao provocar a excitação no eu-lírico.

Mas como será Fulana,
digamos, no seu Banheiro?
Só de pensar em seu corpo
o meu se punge… Pois sim
(Drummond 86).

A simples inferência do baixo corpóreo serve para reatualizar a imagem da mulher enquanto ser real, que se distancia da representação idealizada. Este jogo de contrastes entre o real e o ideal, ora aproximando-se de um extremo, ora de outro, mantém a tensão no poema e, assimilado ao ritmo, métrica e estrofação, configura a angústia do eu-lírico, manifestada mais declaradamente em outras passagens:

Mas fulana será gente?
Estará somente em ópera?
Será figura de livro?
Será bicho? Saberei?
(Drummond 86).

Esta dialética é reiterada, manifestadamente, também, na décima sexta estrofe, através do adjunto adverbial de intensidade ‘às vezes’ – “Fulana às vezes existe demais” – e nas imagens de dois versos subsequentes – “eis que Fulana me roça”, “Olho: não tem mais Fulana”. Para tentar determinar, definir, corporificar a presença inconstante e etérea de Fulana, a partir da décima oitava estrofe, o eu-lírico abre mão de diversos recursos. O primeiro é a inquirição de operários, boiadeiros, doutores e jornais – imagens que representam o conhecimento popular, científico e midiático – por evidências que levariam ao encontro de Fulana, quando todos respondem negativamente ao anseio.

O segundo meio pelo qual procura Fulana é a tentativa de dedução de seu paradeiro, de busca hipotética por um espaço no qual Fulana encontrar-se-ia.

talvez dance no cassino
ou, e será mais provável,
talvez beije no Leblon,
talvez se banhe na Cólquita
(Drummond 87);

Nesta passagem, o movimento dialetizante do poema aponta para lugares que representam ora uma condição social elevada, mas real da personagem, – Leblon –, ora um espaço mítico – Cólquita, lugar que escondia tesouros como o velocino de ouro que era habitado por ninfas. As próximas estrofes também confrontarão uma presença real, estabelecida por meio de ações cotidianas – “talvez se pinte no espelho”, “talvez fume de piteira” –, com uma presença idealizada, mas, desta vez, não mais em um espaço mitológico, e sim inserindo Fulana em um ambiente moderno de mitificação: o espaço midiático.

Esse insuportável
riso de Fulana de mil dentes
(anúncio de dentifrício)
é faca me escavacando
(Drummond 89).

Nesta estrofe, também é evidente o desgaste que a angustiante busca de Fulana determina, representada pelas imagens “mil dentes” e “faca me escavacando”. Segundo Durand, o movimento anárquico, nas representações do imaginário, representa negatividade, caos. As imagens elencadas apontam para esta sensação porque nelas ocorre um deslizamento de um esquema teriomórfico de representação da animação que infere o caos, o fervilhar anárquico, o formigamento – a “animação duplicada pela angústia diante da mudança, a partida sem retorno e a morte” (Durand, As estruturas 77). É o fervilhar transformado em agressividade, sadismo dentário, boca que morde, que tritura, que representa um esquema pejorativo da animação reforçado pelo traumatismo da dentição na primeira infância, “É assim uma goela terrível, sádica e devastadora que constitui a segunda epifania da animalidade” (Durand, As estruturas 85), nas quais agrupam-se isomorficamente imagens que representam um dilaceramento penoso, um caminho de atrição com a vida, por fim, agonia profunda. A isto, soma-se o significante do signo linguístico “dentifrício”, que através do som da consoante “r” reproduz esta imagem.

A outra tentativa de corporificação de Fulana é encenada por meio de uma espécie de ataque, que representa a tentativa de tornar o mito susceptível a adversidades que o humanizariam.

Quero morrer sufocado,
quero das mortes a hedionda,
quero voltar repelido
pela salsugem do largo,

já sem cabeça e sem perna,
à porta do apartamento,
para feder: de propósito,
somente para Fulana
(Drummond 89).

A imagem do suicídio como expediente derradeiro evoca a encenação da supremacia do amor sobre a própria vida, imagem comum no período romântico. No poema, a imagem é representada pelo grotesco, forma de expressão frequente da geração denominada ultrarromântica, que tem como seu maior nome Álvares de Azevedo na lírica brasileira.

Victor Hugo, um dos principais representantes do romantismo francês, já apontava para a importância do grotesco nesta estética romântica:

A poesia nascida do cristianismo, a poesia de nosso tempo é, pois, o drama; o caráter do drama é o real; o real resulta da combinação bem natural de dois tipos, o sublime e o grotesco, que se cruzam no drama, como se cruzam na vida e na criação (Victor 46).

A presença do grotesco e da morte por amor na obra em análise nos remete à Fulana enquanto representação idealizada, ao mesmo tempo em que representa, paradoxalmente, uma tentativa de humanizá-la. Isso se faz através da aproximação do grotesco ao sublime, do corpo que fede à porta de Fulana, perspectiva que em uma poesia mais antiga não havia ocorrido – “Os sátiros, os tristões, as sereias, são apenas disformes… Há um véu de grandeza ou de divindade sobre outros grotescos.” (Victor 30) –, mas já era peculiar para a vertente romântica. Posteriormente, a tentativa será transformar Fulana em figura grotesca, mas este ensejo já é repelido na mesma estrofe.

já morto me quererá?
Esconjuro, se é necrófila…
Fulana é vida, ama as flores,
as artérias e as debêntures
(Drummond 89).

Em seguida, o espírito que anima as imagens formadoras da idealização de Fulana esforçar-se-á em caracterizá-la com símbolos que orientam uma positividade tecnológica, norteada por uma perspectiva positivista de evolução.

Fulana é toda dinâmica,
tem um motor na barriga.
Suas unhas são elétricas,
seus beijos refrigerados,

desinfetados, gravados
em máquina multilite.
Fulana, como é sadia!
Os enfermos somos nós
(Drummond 89).

Tecnologia asséptica, imagem de um mundo ordenado e higienizado do qual Fulana representa o auge; igualmente, uma idealização. Após este movimento, a consciência contida no poema agirá em favor da germinação de uma dúvida, movimento que refletirá, novamente, a intenção idealizadora do poema contraposta pela imagem da mulher enquanto ser físico e tátil.

Sou eu, o poeta precário
que fez de Fulana um mito,
nutrindo-me de Petrarca,
Ronsard, Camões e Capim;

que a sei embebida em leite,
carne, tomate, ginástica,
e lhe colo metafísicas,
enigmas, causas primeiras
(Drummond 89).

Nestas estrofes, o espírito que mitifica Fulana permanece em estado latente, e sua força e origem são analisadas pelo próprio eu-lírico. Nesta trajetória de descoberta, três poetas, considerados clássicos, são citados – o francês Pierre de Ronsard (1536-1585); o italiano Francesco Petrarca (1304-1374), considerado o inventor do soneto; e o português Luís Vaz de Camões (1524-1580), tido como o maior poeta de língua portuguesa. Estes poetas mantêm traços comuns em suas obras: a influência dos modelos líricos greco-romanos; a predileção pelo amor espiritual e nunca consumado em detrimento do amor carnal; o amor cortês e a subserviência em relação à amada herdados da poesia trovadoresca; e a idealização da figura feminina, colocada em um patamar inatingível ao amante, no qual permanece imaculada.

A estas características fundantes do amor platônico, o eu-lírico contrapõe o quarto nome, “Capim”, que se refere ao alimento comum aos equinos, embora seja empregado aí como substantivo próprio. Pode se concluir que o poeta, ao nutrir-se de “Capim”, equipara-se, ironicamente, ao burro, de maneira metafórica, inferindo que a falta de inteligência teria feito com que fizesse de Fulana um mito.

Seguindo a mesma constatação, estabelece-se o vínculo de Fulana com a realidade por meio da enumeração de elementos cotidianos – leite, carne, tomate, ginástica –; porém, em tom confidente, o eu-lírico declara que tem consciência da responsabilidade do movimento que transforma Fulana em mito, pois destes elementos cotidianos ele colhe “metafísicas, enigmas, causas primeiras”.

A partir desta conscientização máxima do movimento idealizador, as próximas estrofes nortear-se-ão através de um projeto de reconstrução de Fulana, uma outra Fulana distanciada do mito e da classe que a tornam inatingível.

Mas, se tentasse construir
outra Fulana que não
essa de burguês sorriso
e de tão burro esplendor
(Drummond 90).

E após este processo de reconstrução, já com “as contradições extintas” e ambos “abrasados”, Fulana, substantivo que, embora empregado como próprio, não designa alguém em especial, e é substituído por Amiga – palavra grafada com inicial maiúscula, que igualmente não define alguém em particular, mas já carrega em si certa conotação sentimental.

A palavra “amiga” é revestida por um caráter de intimidade fraternal e, ao empregá-la como nova designação para Fulana, descaracteriza-a do patamar de objeto de desejo. Fulana já não é mais musa amada, é a amiga, ela e o amante são a “mesma coisa”, mesmo nível, desprovidos de classe, amor, mito.

E digo a Fulana: Amiga,
afinal nos compreendemos.
Já não sofro, já não brilhas,
mas somos a mesma coisa.

(Uma coisa tão diversa
da que pensava que fôssemos)
(Drummond 90).

Mas além do conglomerado de imagens motivadas em um poema e de sua composição estrutural, o poeta não deixa de existir enquanto ser inserido em uma sociedade. A poesia, embora consagração de um instante que ressoa ad aeternum, é sempre envolta, inexoravelmente, por seu contexto de produção, pois sujeito e objeto, poeta e palavras, não o são senão em sociedade, “as palavras não são outra coisa senão significados disto e daquilo, ou seja, de objetos relativos e históricos” (Paz 225).
Logo, como bem orienta Octavio Paz, “o poema não teria sentido – nem sequer existência – sem a história, sem a comunidade que o alimenta e à qual alimenta” (226).

Nesta perspectiva, cabe salientar que o poema O mito encontra-se em uma obra que é marcadamente orientada por uma intenção de participação social em um mundo que, naquele momento, exigia que a poesia aderisse à vida coletiva, como salienta Antonio Candido:

Essa função redentora da poesia, associada a uma concepção socialista, ocorre em sua obra a partir de 1935 e avulta a partir de 1942, como participação e empenho político. Era o tempo da luta contra o fascismo, da guerra de Espanha e, a seguir, da Guerra Mundial – conjunto de circunstâncias que favoreceram em todo o mundo o incremento da literatura participante (69).

Este engajamento ocorre, de maneira mais significativa, na obra A rosa do povo (1945). Nesta, se amplia a consciência de um “mundo errado” e o desejo de superá-lo, o que é visível no poema O mito. E é por meio deste olhar atravessado por ideologias anticapitalistas, de inspiração marxista, que a intenção da humanização de Fulana transita, não mais na exclusiva procura por destituí-la de um patamar de idealização mítica, mas, também, através do desejo de libertá-la dos grilhões que a prendem à privilegiada e injusta alta classe – “Mas, se tentasse construir outra Fulana que não essa de Burguês sorriso”. O eu-lírico, movido por uma utopia política de um mundo sem classes, de igualdade e justiça, no qual os males seriam superados pela destituição da classe burguesa, compõe uma imagem sensível para Fulana, distanciada do mito e da idealização romântica.

E colocamos os dados
de um mundo sem classe e impostos;
e nesse mundo instalamos
os nossos irmãos vingados.

E nessa fase gloriosa,
de contradições extintas,
eu e Fulana, abrasados,
queremos… que mais queremos?
(Drummond 90)

Vence-se o obstáculo da realidade social e ambos, abrasados e despojados das estruturas que o separavam, se compreendem – “já não sofro, já não brilhas,/ mas somos a mesma coisa” –, distantes de um mundo que também segrega o eu-lírico e mitifica Fulana. E esta possibilidade do conhecimento do outro surge a partir da experiência e engajamento político que, como salienta Antonio Candido, “permitiu transfigurar o quotidiano através do aprofundamento da consciência do outro” (81).

A plurissignificação do objeto estético da poesia, o poema, diferentemente de outros discursos, não permite seu enclausuramento em um sentido determinado; o poema será sempre algo a mais. Nestas páginas, buscou-se apreender O mito, de Carlos Drummond de Andrade, dentro de uma procura pela corporificação da figura feminina inserida em uma estrutura dialetizante, que ora pendia a idealização, ora a realidade. Embora seja muito mais do que esse viés, foi perceptível, em O Mito, esta intenção a partir de uma análise da estrutura – ritmo, estrofação, metrificação e escolhas lexicais –, das imagens movidas pelo eu-lírico e do momento social no qual a obra é produzida. Mas o real e inexplicável espírito que move a obra ressoa em cada leitor e a cada leitura permanece intacto, em um misterioso universo, que pouco compreendemos, embora alguns o encontrem e dele colham seus poemas, e que se chama poesia.
 
 
Bibliografia

Achcar, Francisco. Folha explica: Carlos Drummond de Andrade. São Paulo: Publifolha, 2000.

Andrade, Carlos Drummond de. A rosa do povo. São Paulo: Record, 2002.

Bosi, Alfredo. Leitura de poesia. São Paulo: Ática, 1996.

Camões, Luís de. Os Lusíadas. São Paulo: Klick, 1999.

Candido, Antonio. Vários Escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1995.

Chauí, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Editora Ática, 2004.

Durand, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

—: O imaginário: ensaio a cerca das ciências e da filosofia da imagem. Rio de Janeiro: Difel, 2004.

Eliade, Mircea. O sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

Hugo, Victor. Do grotesco e do sublime; tradução do prefácio de Cromwell. São Paulo: Perspectiva. 2004.

Laplantine, François & Trinidade, Liana. O que é imaginário. São Paulo: Brasiliense, 2001.

Longo, Mirella Márcia. “Um amante torto”. Caderno cultura do jornal A Tarde, 2007.

Paz, Octavio. O arco e a lira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.

Ribeiro, Darci. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Compa¬nhia das Letras, 1995.

 
 

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