CRIATURAS NA FRONTEIRA: O ACESSO AO OUTRO EM ONDE VIVEM OS MONSTROS

João Victor de Sousa Cavalcante / Gabriela Frota Reinaldo
Universidade Federal do Ceará / Instituto de Cultura e Arte (ICA) da Universidade Federal do Ceará (UFC)
 
 

¿Como será mi redentor?, me pregunto. ¿Será un toro o un hombre? ¿Será tal vez un toro con cara de hombre? ¿O Será como yo?
Jorge Luis Borges (La casa de Astérion)

 
 

Após navegar pelo que pareceram dias, enfrentando os perigos do oceano, Max finalmente avista terra onde ancorar seu pequeno barquinho. Em meio à fúria de uma tempestade, o menino vê uma pequena ilha, ladeada de rochedos, e, ao longe, por entre as árvores, fogo. Seguindo este rastro e adentrando a floresta, Max chega a uma fogueira, ao redor da qual criaturas enormes, peludas e ruidosas destroem cabanas construídas com galhos e lama. Travestido de lobo, Max corre furioso na direção das criaturas e, cego de fúria, esbarra em uma delas. Pelo menos três vezes maior que o menino, a tal coisa tinha o dorso coberto de pelos marrons, como um mamífero. As pernas eram envoltas por uma escama que cobria também os pés, estes semelhante a pés humanos, diferente das mãos, que mais pareciam garras caninas. A cabeça enorme também era peluda com dois pequenos chifres no alto. Olhos furiosos, boca enorme, com pequenas presas pontiagudas, como as de um tubarão. E voz de homem.

A cena narrada acima está no filme Onde Vivem os Monstros 1 (2009), do diretor norte-americano Spike Jonze, e retrata o encontro do personagem principal Max com o monstro Carol. A imagem do monstro foi idealizada pelo ilustrador Maurice Sendak em um livro publicado em 1963 e traduzida para o cinema por Jonze em 2009. Na adaptação fílmica, as criaturas bestiais com as quais o herói se depara ganham nome, personalidade e biografia. Se, no livro de Sendak, os monstros têm peso semelhante na narrativa, apesar de suas distinções físicas, no filme de Spike Jonze essas diferenças são ampliadas de modo a ecoarem singularmente na trama. Carol aparece como um dos personagens principais e atua como um ponto de tensão na história.

Tomamos a relação entre os dois (Max e Carol) como ponto de partida para problematizar questões referentes à alteridade, que surgem, sobretudo no filme, com o duplo enfrentamento entre herói e monstro, em que há uma contaminação mútua entre o bestial e o humano. Ao habitar a fronteira entre o caos e a ordem, Carol aparece como um elemento híbrido, que se localiza em um espaço de transição sígnica. Na condição de herói, Max tem que, de algum modo, decifrá-lo – tal como Édipo fez com a Esfinge – e vencê-lo, pois ele próprio é um elemento tradutor dentro da narrativa. Nesse processo, pares muitas vezes considerados opostos como homem e animal, natureza e cultura, caos e cosmos se confundem em um processo dinâmico de traduções sígnicas.

Antes de prosseguirmos, vale pontuar que pensamos tradução como um mecanismo essencial da cultura, que sugere o deslocamento contínuo de signos nas fronteiras de uma semiosfera. A ideia de semiosfera como uma esfera sígnica onde se realizam as trocas simbólicas advém do conceito de biosfera de Vladimir Vernadsky e foi concebido por Iuri Lotman em 1982, tema que trataremos mais detidamente a seguir. Esse câmbio sígnico determina a dinâmica da cultura, por meio da qual ocorre a geração de novas informações. Dialogando com Lotman, Peeter Torop (2002) ressalta, no entanto, que este é um processo contínuo, que as linguagens de uma cultura estão sempre aptas à mudança e que seus signos são ambíguos.

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FIGURA 1: Frame do filme Where The Wild Things Are. Dir: Spike Jonze, 2009.

Nesse artigo, buscamos pensar à luz da Semiótica da Cultura a relação entre monstros e os processos de tradução que ocorrem na cultura, tomando como base as categorias semiosfera e fronteira propostas por Iuri Lotman. Desse modo, procuramos compreender na relação entre Max e Carol um duplo movimento de tradução, no qual a alteridade é problematizada. A partir desse olhar, questões referentes à natureza e cultura, ou à cultura e não cultura, sofrem deslocamentos, de modo que o enfrentamento que se dá na fronteira abre portas para o descobrimento do outro.

 

Semiosfera, limites e traduções

Retomamos, neste trabalho, a temática clássica do enfrentamento entre herói e monstro como um processo de trocas sígnicas- que sugere uma maior dinâmica da alteridade, compreendida como o contato entre uma mente pensante (interpretante) com um objeto pensado (interpretado). Esse contato concretiza a distinção entre estas categorias (mente e objeto) em polos excludentes: eu e outro, ou ainda, dentro e fora. Entre o “eu” (dentro) e o “outro” (fora) há uma linha. Esse limiar é o que a Semiótica da Cultura, notadamente o trabalho de Iuri Lotman (2000), chama de fronteira, termo central para a compreensão do caráter delimitado da semiosfera.

O teórico russo afirma que semiosfera é o espaço sígnico fora do qual se torna impossível a existência da semiose. Podemos compreender o conceito como um universo semiótico, de caráter delimitado e irregular, no qual os textos culturais circulam e produzem estruturalidades. No trabalho de Lotman, o conceito de semiosfera está intimamente ligado ao de cultura, entendida como a memória hereditária de uma determinada coletividade, que se expressa por meio de sistemas de proibições e prescrições. Ou seja, a cultura se organiza dentro de uma estrutura (semiosfera) e se articula por meio de estruturalidades (textos culturais).

Desse modo, a semiosfera implica uma distinção entre ordem e caos, entre dentro e fora, e entre cultura e não cultura. A cultura divide o mundo em seu próprio espaço interno e o externo. “La cultura es un generador de estructuralidad, y com ello crea alrededor del hombre una esfera social, que como la biosfera, hace posible la vida, cierto es que no la organica, sino la social” (Lotman, La Semiosfera III 171). Esses pares de oposição, entretanto, são ambivalentes, flutuantes, o que é previsto pela assimetria e pela irregularidade interna de um determinado sistema cultural (Lotman).

A fronteira tem uma posição funcional de extrema importância dentro da semiosfera. É ela que regula a penetração de elementos externos para o espaço interno de uma semiosfera, filtrando e traduzindo informações de fora. Ou seja, os filtros bilíngues dispostos nas periferias de um sistema semiotizam elementos externos, gerando novos signos e sentidos. A fronteira possui uma função reguladora e tradutora, que absorve e transforma informações de fora, redefinindo por meio dessa regulação pares recíprocos como dentro-fora, eu-outro ou natureza-cultura, mantendo, desse modo, a dinâmica da cultura.

La frontera semiótica es la suma de los traductores-filtros bilíngues pasando a traves de los cuales un texto se traduce a outro (o lenguages) que se halla fuera de la semiosfera dada. El carácter cerrado de la semiosfera se manifesta en que esta no puede estar en contacto com los textos alosemióticos o com los no-textos (Lotman, La Semiosfera I 24).

Podemos relacionar o conceito de fronteira de Lotman com a ideia de limite elaborada pelo filósofo Eugenio Trías. O autor compreende que, por sua própria natureza, o limite (seja ele metafísico ou propriamente físico, como as fronteiras nacionais) define um dentro e um fora, ou seja, é pelo limite que identificamos o que nos é estrangeiro, e o que nos pode ser conhecido. Para o filósofo, habitar o limite é estar em uma fronteira gnosiológica, como uma “alfândega” do sentido, que define um próximo e um estrangeiro2 . Essa distinção nos possibilita reconhecer o que é intramundano, familiar, ligado à esfera do “eu”, e o que é antagônico, sinistro, ligado ao “outro”. Em uma dimensão estética clássica, essa diferenciação se encontra na raiz da própria ideia do belo, em contraposição ao sinistro. O primeiro é harmônico, iluminado, e o segundo, envolto em sombras.

Percebemos que o limite não é, de acordo com o pensamento de Trías, uma barreira para o conhecimento e para a elaboração de sentido. Pelo contrário, o limite é uma linha que permite acesso mútuo entre dois mundos, entre o natural, o belo (cerco del aparecer), e o desconhecido, o sinistro (cerco hermético), e mesmo assim sanciona uma distância irremediável entre esses cercos.

Hay en el fronterizo una doble dimensión (que aparece como orientación e inclinación) de inmanencia e transcedencia. El fronterizo es, en puridad, la juntura y separación o eso que queda dentro (hogar) e de eso que transborda y trasciende (lo extraño, inhóspito, inquietante). El fronterizo es de hecho el límite mismo que define e circunscribe dos mundos (Trías 66).

Compreendemos o limite como uma zona fronteiriça de inevitável tensão, mas que é fundamental para a dinâmica das trocas simbólicas e que nos sugere uma postura ontológica específica, limítrofe, ambivalente, que transita entre dois mundos, entre o humano e o divino. Verificamos aqui uma dupla condição nessa dinâmica. O ser fronteiriço habita o limite e é, também ele, o próprio limite. “En tanto que fronterizos somos los límites del mundo. Somos pura línea, puro confín, referidos a la vez al cerco e al extrarradio” (Trías, Los Límites 66). Ao habitar dois mundos, o ser limítrofe abandona um ideal de pureza, como os anjos essencialmente divinos, e vive em uma dimensão de múltiplas contaminações. Torna-se um ser centáurico, como evoca Trías. Um ser quimérico.

 

Criaturas fronteiriças

A cultura humana, de um modo geral, sempre foi muito sensível às figuras bestiais, desde os monstros mitológicos a eventuais “deformidades” físicas. Na Antiguidade Clássica, essas figuras prodigiosas, que se situavam no limiar entre o humano e o que há além, eram associadas a catástrofes iminentes ou a acontecimentos extraordinários dos quais a razão não podia dar conta. Segundo Umberto Eco (2007), essa proximidade com situações inexplicáveis fez com que os monstros tivessem sido usados para definir o que é sagrado, de modo que as figuras bestiais ou animalescas foram assumindo uma posição de intersecção entre terreno e divino. Em alguns textos sagrados, aponta Eco, divindades são descritas sob formas de animais, ou como figuras híbridas, parte humanas parte animalescas.

Visto que a natureza de Deus é inefável e nenhuma metáfora, por mais fulgurantemente poética que seja, poderia descrevê-lo e qualquer discurso se mostraria impotente e capaz apenas de falar de deus por negação, não dizendo o que é, mas o que não é, como aquelas dos animais e dos seres monstruosos (Eco 125).

O convívio com criaturas monstruosas, pelo menos até o início Idade Média, estava profundamente relacionado com debates sobre a previsão do futuro e o deciframento de enigmas, que eram interpretados pelos homens como a vontade dos deuses. Desse modo, aparecem os monstros proféticos, figuras sedutoras ou aterrorizantes, que habitam entre-lugares, ou lugares de passagem, como é o caso das sereias n’A Odisséia de Homero, que viviam no mar e tentavam os navegantes. Com seu canto doce, estes híbridos de mulher e pássaro, ofereceram para Ulisses a sabedoria de todas as coisas do mundo, pois lhes era dado o conhecimento do que acontecia no continente e as consequências da guerra de Tróia. Apenas amarrado ao mastro do seu navio, Ulisses poderia passar intacto pelo canto das sereias. O herói, conhecido pela fala hábil, sai ileso, muito embora tivesse ouvido a canção sedutora, pois precisava dessa imersão para aprender os mistérios da persuasão oral.

Outras duas figuras da mitologia grega ilustram bem a relação do monstro com o mistério e com situações fronteiriças, apesar de pertencerem a períodos diferentes da cultura helênica: a Esfinge grega enfrentada por Édipo e o Minotauro, preso no labirinto e morto por Teseu. A Esfinge , segundo Jorge Luis Borges, possuía torso de mulher, “asas de pássaro e corpo e pés de leão. Conta-se que assolava o país de Tebas, propondo enigmas aos homens e devorando aqueles que não sabiam resolvê-los” (Borges, O Livro dos Seres 90). Édipo consegue decifrar o mistério da Esfinge, que, vencida, joga-se do alto da montanha.

O Minotauro, corpo de homem e cabeça de touro, alimentava-se de carne humana e vivia em um labirinto construído para ocultá-lo. Para o banquete do monstro, o rei de Creta exigia de Atenas um tributo anual de sete rapazes e sete moças, que, perdidos nos descaminhos do labirinto, eram presas para o monstro. A vitória do Teseu, príncipe ateniense que decapita a fera, está relacionada à astúcia, ao deciframento dos caminhos sinuosos do labirinto. Sobre a casa onde habitava o monstro, diz Borges: “a imagem do labirinto combina com a imagem do Minotauro. Fica bem que no centro de uma casa monstruosa exista um habitante monstruoso” (Borges, O Livro dos Seres 145). Ao lado das sereias e da Esfinge, o Minotauro situa-se como um dos casos mais emblemáticos do mistério do qual o monstro é imbuído, habitando as fronteiras, sendo, eles mesmos, fronteiriços em si.

O herói, aquele que vence o enigma do monstro, se equipara à imagem do profeta e do poeta, pois seu corpo também está marcado. Compreendido por Joseph Campbell (2007) como o “homem da submissão autoconquistada”, o herói também é um elemento fronteiriço, que está no limiar entre o homem comum e o homem extraordinário, ou divino. De acordo com o filólogo Corrado Bologna (1997), o herói também habitar a esfera monstruosa, de modo que cabe a ele vencer (com força ou astúcia) o algoz bestial.

O poeta e o sábio das origens, muitas vezes inteiramente míticos, são personagens milagrosos da fronteira entre a naturalidade e a humanidade, semiferinos e semi-humanos. Conhecem a magia do canto e a expressão dos animais; a sua linguagem é ambígua, enigmática, ameaçadora, enganadora e ao mesmo tempo verídica (Bologna 318).

Esse embate entre herói e monstro ocorre mediante um processo de descobrimento do outro e, por consequência, de ressignificação de si mesmo, no qual nos deparamos com uma dinâmica tradutora que envolve ambos os lados. Dessa forma, há um enfrentamento na fronteira, em que elementos inicialmente de lados distintos de um sistema (como criança e monstro) se misturam e se contaminam. Observamos que esse contato em que a alteridade é refeita, há um duplo movimento de reconhecimento de si por negação do outro, mas também de imersão nesse outro. A membrana que separa duas esferas sígnicas sugere uma atitude de autoconsciência, no entanto, como veremos adiante, no confronto que o herói trava com o monstro, essa fronteira está borrada. Observa-se uma imersão recíproca entre os pares, uma contaminação mútua, na qual o herói humano se animaliza e o monstro se antropomorfiza.

O enigma do monstro como uma figura profética começa a perder força com a consolidação dos valores cristãos na Idade Média. Deixando de ser um “prodígio” divino, o monstro passa então a fazer parte do fabulário de tendência moralizante dos contos fantásticos, narrativas de cunho oral, fortemente disseminadas nas áreas rurais da Europa. Nos séculos finais do período medieval, no limiar entre a magia e a ciência “os monstros terão, por fim, um enorme sucesso no universo heterodoxo dos alquimistas, onde simbolizarão os vários processos para obter a Pedra Filosofal ou o Elixir de Longa Vida” (Eco 125).

Posteriormente, com o advento das grandes navegações do século XV e XVI e o descobrimento de animais desconhecidos, de povos fenotipicamente diversos do europeu, o imaginário bestial retoma sua força ao classificar o monstro como “o grande outro”, ou seja, o selvagem desconhecido, habitante de um universo de não cultura, geralmente associado aos ritos pagãos e organizações sociais não “civilizadas”. Menos metafísico e mais científico, a imagem do monstro passa a ocupar espaço no saber naturalista como um objeto científico a ser estudado. Além disso, encontramos figuras monstruosas nos mapas medievais e renascentistas, indicando terras não desbravadas supostamente habitadas por temíveis criaturas marinhas.

Com o passar do tempo, observamos a constante secularização dos mitos, contudo a presença do monstro no imaginário moderno e contemporâneo permanece (sob outras formas, claro), mas mantendo sua condição fronteiriça, ligada a algum tipo de mistério ou conhecimento inaudito, e relacionada à dinâmica da alteridade. Sua forma híbrida faz com que o monstro incorpore o grande outro indecifrável de uma cultura. Seu corpo sugere não apenas o reverso da identidade, como também o acesso ao que está fora, o que ultrapassa o limite. Desse modo, a forma quimérica das criaturas bestiais nasce como a corporificação de um determinado momento cultural, como aponta o pesquisador medievalista norte-americano Jeffrey Cohen (1996).

The monster’s body quite literally incorporates fear, desire, anxiety, and fantasy (ataractic or incentiary), giving them life and uncanny independence. The montrous body is pure culture. A construct and projection, the monster exists only to be read: the monstrum is etymologically ‘that which reveals’, that which warms’, a glyph that seeks a hierophant (Cohen 04).

Desse modo, as feras, os demônios, os tricksters3 , os animais falantes, dentre inúmeros outras figuras continuam sendo imagens constantemente evocadas nas narrativas ficcionais. Esse é o caso dos personagens de Maurice Sendak: ao explorar o universo onírico das emoções infantis, o autor recorre a figuras monstruosas e reconstrói o tema do confronto na fronteira como parte da jornada do herói. Essa jornada é retomada e ampliada por Spike Jonze quando o diretor adapta para o cinema o livro de Sendak. Ao analisarmos o filme, percebemos como essas relações de enfrentamento do outro são problematizadas na relação entre dois personagens, um humano e um ferino. Destacamos o momento da conquista, no qual o herói vence sua provação final. Apenas após essa conquista ele estará pronto para retornar para casa4 , tendo superado as limitações. Esse retorno se dá mediante um processo tradutor do qual o monstro é peça chave.

 

O enfrentamento

Tomamos o momento de embate entre Max e Carol como um recíproco processo de trocas sígnicas, no qual entram em jogo diversas instâncias tradutoras. Temos a figura do monstro como um elemento fronteiriço por natureza, através do qual as ideias de cultura e não cultura são problematizadas, bem como os temas do “eu” e do “outro”. Além disso, a própria constituição física desses dois personagens nos remete à noção de hibridismo. Dessa forma, habitando o limite, as duas criaturas – menino e monstro – vivem um momento de imersão de um no outro, de desconstrução das ideias de dentro e fora, de ordem e caos. Desse embate dialético entre filtros bilíngues sentidos novos são gestados.

A forma quimérica de Carol é reforçada por sua antropomorfização. O monstro tem pelos, escamas, garras, chifres, mas tem voz humana (posta no filme por meio de dublagem5 ) e um olhar extremamente expressivo, que oscila entre melancólico e histérico. Essa característica, aliás, é algo que o cineasta explora a partir do livro-fonte6 de Maurice Sendak, no qual o olhar das “wild things” remetem às situações de medo e histeria de seus parentes judeus na época do genocídio nazista. No filme, esse olhar em certa medida insano, adquire força de personalidade no monstro, ou seja, um traço humano para completar sua caracterização.

Max também assume uma forma animalesca na trama. O menino é, também, quimérico: ao vestir sua fantasia de lobo, o garoto expressa sua ferocidade que vai crescendo à medida que seu relacionamento com os monstros vai se tornando mais íntimo. Temos, dessa forma, a animalização do humano e uma humanização da fera. Podemos encarar essas figuras quiméricas como filtros bilíngues, por meio dos quais o diálogo entre esferas culturais é possível, de modo que em uma situação anterior, com fronteiras mais rígidas, teríamos a ideia de um “outro” indecifrável. Apenas como monstro é que Max consegue habitar os dois lados da fronteira, decifrar-vencer Carol e voltar para casa7 .

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FIGURA 2: Frame do filme Where The Wild Things Are. Dir: Spike Jonze, 2009.

 

Encontramos em diversas mitologias figuras monstruosas formadas pela junção de diversos seres. É comum, inclusive, que essas feras carreguem elementos humanos, como é o caso das sereias, da Esfinge, do Minotauro e de Carol, citados anteriormente. No tocante aos seres mitológicos, eles são gerados muitas vezes da cópula entre outros seres de naturezas distintas, ou de relações entre elementos divinos e humanos, como é o caso do próprio Minotauro, que nasceu da relação da rainha de Creta, Pasifae, com um touro que o deus Posêidon fez sair do mar. Curiosamente, a maioria dos heróis gregos comunga com esse tipo de genealogia, filhos de deuses com humanos, ou frutos de fenômenos divinos.

Os corpos do monstro e do herói são híbridos, quiméricos. Borges remonta à Ilíada de Homero e afirma que a Quimera “era de linhagem divina e que sua parte da frente era de leão, a do meio era de cabra e a de trás de serpente” (174). Essa é a forma mais recorrente do monstro, porém é possível encontrar variações no decorrer dos séculos. Curiosamente, o nome Quimera sugere a ideia de devaneio, fantasia. “Com o tempo, a Quimera tende a ser o quimérico. A forma incoerente desaparece e resta a palavra, para significar o impossível” (Borges, O Livro dos Seres 175).

Essas imagens nos ajudam a pensar a relação entre Max e Carol como um conflito limítrofe, no qual o herói se desloca para um entre-lugar e assume uma configuração de filtro bilíngue. Isso é manifesto por uma mudança física do personagem. Na passagem do ambiente doméstico para a ilha onde vivem os monstros ele veste sua fantasia de lobo e assume uma selvageria animal, incitada inicialmente pela raiva e, depois, pela liberdade de estar longe da autoridade materna, tornando-se rei das criaturas monstruosas. Esse mesmo movimento é realizado por Carol, porém em sentido oposto. A antropomorfização desse monstro, garantida pela voz, expressão dos olhos e pela personalidade o torna também bilíngue, habitante de dois mundos, com conflitos humanos semelhantes aos que Max vivencia em casa.

Dessa forma, percebemos uma reconfiguração dos pares, anteriormente opostos, de ordem e caos (eu e outro), por meio de uma delicada fragmentação da alteridade. No momento que Max encontra as criaturas, sentimentos ligados ao estranhamento do outro são acionados. Pelo lado do garoto, o medo. Pelo lado do monstro, a curiosidade, seguida pela fome. Uma vez que Max não era “um deles”, não habitava ainda aquela esfera, ele só poderia ser alimento para as bestas antropófagas. Percebemos aí conflitos que se retroalimentam. Quando Max é admitido no seio de uma família de monstros, estes reproduzem problemas muito semelhantes aos que levaram Max a sair de casa, sobretudo certo distanciamento entre os pares.

Esse reconhecimento entre menino e monstro como semelhantes ocorre no momento em que ambos se percebem alijados de um contexto fixo. Os dois se encontram na periferia, espaço onde as semiosferas entram em proximidade. Ambos são os limites daquela situação de interação e precisam ultrapassar esse limite. “Los límites del mundo somos nosotros, com um pie implantado dentro y outro fuera” (Trías 67). Desse modo, o que está além dessa fronteira, o que Trías chama de “cerco hermético”, deve ser acessado (decifrado) por um logos simbólico, com o qual se estabelece uma nova relação ontológica entre os dois lados do limite.

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FIGURA 3: Frame do filme Where The Wild Things Are. Dir: Spike Jonze, 2009.

 

Decifrar o enigma do monstro, para Max, significa domesticar bestas. Esse processo se dá em forma de crescimento humano, como é próprio da jornada do herói. Para vencer o monstro, o herói passa por determinadas etapas e atravessa perigos que sugerem uma certa evolução em sua atribuições morais ou físicas. Com isso, ele se torna apto a voltar para casa. Temos, no início do filme, o personagem com um comportamento agressivo, intempestivo, entrando várias vezes em conflito com a mãe e com a irmã. Na ilha onde ele encontra os monstros, esse comportamento eclode em ferocidade animal. Para voltar para casa (e o herói tem que retornar), ele precisa vencer essa animalidade. Ao se deparar com a solidão, o garoto decide navegar de volta para casa. Percebemos, então, uma mudança no seu temperamento, que passa a ser sereno, tranquilo. Depois da travessia, o garoto compreende que sua ira, seu comportamento destrutivo e sua ferina liberdade machucam os que estão à sua volta e consegue dar uma resposta para isso por meio de uma contenção de sua animalidade. Os monstros, bestas interiores da criança, são domados num processo de autoconhecimento e de amadurecimento.

No limiar da diferença, Max reafirma sua posição dentro daquela esfera sígnica e vence o monstro, após ter decifrado sua própria animalidade. Esse enfrentamento nos revela um processo dinâmico de geração de informações novas por meio de embates tradutores. Max precisa cumprir sua jornada e percebe que é hora de voltar para casa. Na condição de signo, ele retorna modificado, traduzido, pois essa é a condição das transformações culturais, nas quais as coisas só podem reaparecer como diferentes.

Notas

1 Apesar de não ser uma tradução literal, neste trabalho não distinguimos os títulos em língua inglesa e portuguesa do referido filme, optando por utilizar esta última com mais frequência.

Traduções nossas. No original em espanhol: “cerco” e “extranjero”.

3 Presentes em diversos folclores, tricksters são entidades, animais ou espíritos que pregam peças e subvertem as normas de comportamento. Podemos citar como exemplo o Gato de Botas, ou o Saci, pertencente ao imaginário brasileiro.

4 Segundo Vladimir Propp, as narrativas maravilhosas seguem uma sucessão de 31 passos. Autores como Joseph Campbell e outros discorrem sobre as fases do herói. Não adentraremos esse assunto, mas concordamos que o retorno é peça fundamental nesse trajeto por representar um momento de ascensão humana do herói.

A dublagem do personagem Carol é feita pelo ator James Gandolfini.

6 Utilizamos o termo “livro-fonte” em detrimento de “original”, pois compreendemos que uma adaptação fílmica sugere uma recriação autônoma, e não tem relação obrigatória com fidelidade ou essência, instâncias que a palavra “original” pode sugerir.

7 Destacamos aqui uma aproximação entre Max e Ulisses, d’A Odisseia. Odisseu, como ficou conhecido, empreende a aventura do retorno. Sua tarefa é voltar para casa. Essa ideia de retorno se torna imprescindível para Max, pois a volta para casa significa um retorno à unidade original, como um segundo nascimento.
 
 
Referências

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