A PROPAGANDA DA MÍDIA CULT: O LEITOR SUBJETIVADO

Roselene de Fatima Coito
Universidade Estadual de Maringá
 
 
1. DA PROPAGANDA

A propaganda é um recurso utilizado pela mídia – impressa, televisiva, auditiva, digital – para vender um produto. Contudo, nem sempre o meio de divulgação do produto refere-se a uma venda explícita, pois como assevera Roger Chartier os sentidos mudam conforme os suportes de leitura mudam e diz ainda”…as próprias estruturas do livro [no nosso caso, da revista] são dirigidas pelo modo de leitura que os editores pensam ser o da clientela almejada” (34) . No nosso caso, a revista em questão não é um veiculo que circula na sociedade com tanto alcance de público – pelo seu teor cultural – e pela construção do seu perfil a propaganda serve mais como confirmação de valores do que venda explícita, quando a propaganda é mais do que a venda de um produto; é uma venda de imagens. Em outros termos, esta revista, como toda e qualquer revista quer vender, quer atingir o mercado e dele tirar o seu lucro. Contudo, no caso de uma revista que tem a pretensão de atingir um público específico e particular, o intelectual, seu objetivo de venda expande-se para um horizonte maior, qual seja, vender imagens. Por isso, elegemos a propaganda da CPFL (Companhia Paulista de Força e Luz) para análise, pois que a mesma tem seu espaço garantido nesta revista, fato este confirmado pelo enunciado Espaço Cultural CPFL.

É sabido que cada revista veicula, dependendo do público a que se destina, propagandas que interessam a este público foco e como não poderia deixar de ser, uma revista cult veicula propagandas do universo cult. No entanto, como toda e qualquer propaganda apresenta estratégias de construção específicas como recorrência de figuras, de narrativas, de idéias, as quais estão no imaginário social e que se materializam na memória discursiva de uma dada sociedade./p>

Por isso, analisaremos a imagem do leitor intelectual buscando a recorrência de figuras que remetem à imagem do intelectual. Para tanto, partimos da reflexão que Michel Foucault realiza ao falar sobre o si, a partir de construção filosófica do eu como prática de subjetivação.

 

2. DAS TÉCNICAS DE SI COMO SUBJETIVAÇÃO DO LEITOR

Antes de entrarmos na discussão do conceito subjetivação sob a ótica foucaultiana, faz-se necessário esclarecer o que Foucault entende por técnica. Sabendo que o filósofo francês foi leitor de Heidegger e de Nietzsche suas reflexões pautam-se em ambos para discussões variadas sobre discurso e sociedade. Aqui, neste artigo, retomaremos brevemente o conceito de técnica utilizado por Heidegger, o qual Foucault se pauta para sua discussão.

O termo técnica para Heidegger significa o desvelamento do mundo que se dá por meio da linguagem. A palavra técnica vem do termo grego tecné, ou seja, deixar vir à tona e foi traduzido como verdade. Para os gregos, a produção de verdade significava estar disponível a, isto é, tudo tem sua utilidade. Contudo, na modernidade, o termo volta-se para a significação de estar à disposição de, o que configura o caráter da palavra com o sentido de exploração. Portanto, produzir a verdade é deixar de ser útil para tornar-se utilizável.

Voltando ao termo técnica e aliando-o à reflexão que Michel Foucault desencadeia a partir do estudo do si em nossa cultura, temos/p>

Afinal, o que é o si (129b)? “Si é um pronome reflexivo, daí sua significação dúbia. Auto quer dizer “o mesmo”, mas remete também à noção de identidade. Esse segundo sentido permite passar da questão “o que é esse si?”, a outra “a partir de qual fundamento encontro minha identidade?” (Foucault 52)

E continua o filósofo francês:

Somos também herdeiros de uma tradição secular, que vê na lei externa o fundamento da moral. Assim, como o respeito que se tem por si mesmo pode constituir-se na base da moral? Somos os herdeiros de uma moral social que fundamenta as regras de um comportamento aceitável sobre as relações com os outros. Se a moral estabeleceu-se, depois do século XVI, como objeto de uma crítica, o fez em nome da importância do reconhecimento e do conhecimento de si. É ainda difícil imaginar que o cuidado de si pudesse ser compatível com a moral. “Conhece-te a ti mesmo” eclipsou “cuida de ti mesmo”, porque nossa moral, uma moral do ascetismo, não parou de dizer que o si é a instância que se pode rejeitar. (53)

Tendo em vista essa reflexão do rejeitamento do si aliado a uma moral que prioriza o “conhece-te a ti mesmo”, moral essa vinda do preceito délfico utilizado por Platão, a técnica do si deixa de ser estar disponível a para tornar-se estar à disposição de, ou seja, o estado natural do si passa a ser uma construção histórico-filosófico-social que faz deste si um objeto de exploração – científica, isto é, o si passa a ser objetificado e nesta objetificação, o estado natural – o ser – passa a ser um construto social – um sujeito. Este sujeito não é mais “o que eu digo”, mas o “que dizem de mim”, ou seja, é a construção de um jogo de imagens construídas nos mais variados discursos que circulam na sociedade, inclusive nas propagandas dos mais variados canais midiáticos. Estes canais constroem subjetividades que se repetem em figuras, em narrativas que estão no imaginário social e que reforçam uma memória discursiva que convém a uma dada formação discursiva e a uma dada formação ideológica, que, geralmente, respalda-se nos preceitos morais da renúncia de si.

Em seu ensaio Deux essais sur le sujet et le pouvoir (1994), Michel Foucault afim de se defender de teóricos que diziam que sua teoria anulara o sujeito e falara apenas do poder, diz que tentou produzir uma história dos diferentes modos de subjetivação do sujeito na nossa cultura, estudando a maneira como o ser humano se transforma em sujeito, que segundo ele, passa por três níveis de objetivação: a investigação científica, a objetivação do sujeito produtivo e a objetivação do sujeito nas práticas divergentes, pois que, para este filósofo, o sujeito é apanhado nas relações de produção, nas de sentido e, com grande complexidade, nas relações de poder. Sendo o poder algo que se exerce, não se exerce sem lutas e essas são “recusas de abstrações [como “quem somos nós?’], uma recusa da violência do Estado econômico e ideológico que ignora que somos indivíduos e uma recusa da inquisição científica e administrativa que determina nossa individualidade” ( Foucault, Dits et écrits 299).

Essas lutas dão-se de três formas: como oposição às formas de dominação; como denúncia de exploração; e, finalmente, como algo que combate tudo o que liga o indivíduo a ele mesmo. As lutas se dão em formas de estratégias, sejam elas discursivas ou não, as quais “sonham em transformar-se em relação de poder” (300), até mesmo do poder, talvez ilusório, do domínio sobre o próprio corpo, o qual estamos pensando como um lugar de inscrição dos acontecimentos e da língua e da linguagem como instrumentos do discurso que materializam a História, também, pois/p>

É a partir da linguagem e de sua manifestação nos diálogos do cotidiano, nos textos e nas imagens que construímos as referências que viabilizam a existência da memória e que permitem que nos identifiquemos como membros deste ou daquele grupo social (Ferreira e Orrico, 8)

Portanto, se há uma memória, em uma rede complexa de discursos, que viabiliza o sujeito a se identificar enquanto grupo e/ou enquanto indivíduo, que é o dilema da subjetivação do sujeito da e na modernidade, conforme Boaventura de Sousa Santos, não podemos descartar o fato de que a identidade é algo construído historicamente, culturalmente, sociologicamente, enfim, conceitualmente, e, que alguns conceitos permanecem porque convém à ordem do discurso vigente, e/ou, até mesmo a determinados grupos como autoafirmação social.

Se nos pautarmos na reflexão da qual nos convida Boaventura de Sousa Santos, a ciência e a cultura perguntam sobre a identidade em uma posição de alteridade que negocia sentidos para confirmar a ordem do discurso da História. Trava-se, portanto, nos discursos – científico e cultural, uma ou mais lutas para se discutir “quem somos nós?”, sendo que na modernidade, de acordo com o teórico português, há uma descontextualização do termo pelo fato de se cruzarem tensionalmente os termos subjetividade individual e subjetividade coletiva. Portanto, conforme Boaventura, “o primeiro nome moderno da identidade é a subjetividade” (136)

 

3. COMO SE CONFIGURA O SABER E A CONSTRUÇÃO DA SUBJETIVIDADE DO INTELECTUAL NA MODERNIDADE?

Michel Foucault em seu livro Arqueologia do Saber assevera que:

[O saber] É o conjunto de elementos formados de maneira regular por uma prática discursiva; aquilo de que podemos falar em uma prática discursiva; o espaço em que o sujeito pode tomar posição para falar dos objetos de que se ocupa em seu discurso; o campo de coordenação e de subordinação dos enunciados em que os conceitos aparecem, se definem, se aplicam e se transformam; as possibilidades de utilização e de apropriação oferecidas pelo discurso. Enfim: não há saber sem uma prática discursiva definida, e toda prática discursiva pode definir-se pelo saber que ela forma. (207).

Levando-se em consideração que o saber é regular e que sujeitos podem tomar posição ao falar dos objetos, temos que a regularidade acontece de maneira a homogeneizar o discurso científico, ao mesmo tempo em que o sujeito da ciência o faz partindo de uma posição e esta nunca é neutra. Dito de outra forma, as relações de saber e ideologia se

situam no nível dos elementos formadores de uma formação discursiva (objetos, estratégias, escolhas temáticas, modalidades de enunciação). Enfim, a questão da ideologia proposta à ciência é a questão de sua existência como prática discursiva e de seu funcionamento entre outras práticas. (210)

Partindo das assertivas de Foucault sobre a ciência enquanto uma prática discursiva entre outras práticas, inclusive discursivas também, como por exemplo, a medicina legal e a medicina alternativa, por que há práticas que são autorizadas e outras não?

O mesmo filósofo responde dizendo que há dizeres que estão na epistême de uma dada formação discursiva em um dado tempo e em um determinado lugar. Como o dizer sobre o saber ainda se encontra nos dias de hoje nas “premissas” iluministas, de cunho positivista, prevalece, também na nossa formação discursiva, a imagem de quem lida com o saber como o iluminado, o visionário, aquele que renuncia a si em nome do conhece te a ti, porque o conhecer torna-se mais importante do que ser, no mundo moderno, estabelecendo nos discursos sociais relações de poder que produz domínios de objetos e rituais de verdade.

Conforme assevera Foucault:

…Inclinamo-nos, em princípio, a considerar o cuidado de si como qualquer coisa de imoral, como um meio de escapar a todas as regras possíveis. Herdamos isso da moral cristã, que faz da renúncia de si a condição da salvação. Paradoxalmente, conhecer-se a si mesmo constitui um meio de renunciar a si mesmo (Dits et écrits 56)

Ao renunciar a si numa visão da moral cristã, o intelectual portador da voz autorizada pela sociedade, confirma a memória do dizer sobre si mesmo como alguém que está além daqueles que não têm sua identidade neste grupo ou nesta subjetividade coletiva.

Contudo, Gilles Deleuze em conversa com Foucault no livro Microfísica do Poder, questiona a representatividade do intelectual hoje, conforme transcrições da conversa entre ambos:

(Gilles Deleuze) … Para nós, o intelectual teórico cessou de ser um sujeito, uma consciência representante ou representativa. Os que agem e que lutam cessaram de ser representados, fosse por um partido, um sindicato que se arroga, por sua vez, o direito de ser sua consciência. Quem fala e quem age? É sempre uma multiplicidade, mesmo na pessoa que fala ou que age. Somos todos grupúsculos. Não há mais representação, não há senão ação, ação de teoria, ação de prática nas relações de relé ou de rede.(38)

(M. Foucault) Parece-me que a politização de um intelectual se fazia tradicionalmente a partir de duas coisas: sua posição de intelectual na sociedade burguesa, no sistema da produção capitalista, na ideologia que ela produz ou impõe (ser explorado, reduzido à miséria, rejeitado, “Maldito”, acusado de subversão, de imoralidade); e seu próprio discurso, enquanto revelava uma certa verdade, enquanto descobria relações políticas ali onde não se as percebia. Essas duas formas de politização não eram estranhas uma á outra, mas tampouco coincidiam obrigatoriamente. Havia o tipo “maldito” e o tipo “socialista”. Essas duas politizações se confundiram facilmente em certos momentos de reação violenta da parte do poder, depois de 1848, depois da Commune, depois de 1940: o intelectual era rejeitado, perseguido no exato momento em que as “coisas” apareciam em sua “verdade”, no momento em que não se devia dizer que o rei estava nu. O intelectual dizia o verdadeiro àqueles que não o viam ainda, e em nome dos que não podiam dizê-lo: consciência e eloquência (38).

Neste trecho selecionado da conversa de Deleuze com Foucault, podemos ver que a figura do intelectual relaciona-se à participação política do mesmo na sociedade e que a teoria da qual abraçavam tinha relação direta com seu posicionamento sócio-histórico-político. Dá para se notar que a relação teoria-prática fazia do intelectual um ser ao mesmo tempo disponível à – quando da revelação da verdade – e à disposição de, quando da exploração sofrida por uma ideologia de produção capitalista. Contudo, podemos dizer que as técnicas do si na representação social do intelectual não se pautavam apenas no conhece-te a ti mas também no cuida-te a ti, já que a ideologia capitalista o representava, na relação de constituição dos sujeitos da incompletude – na acusação de subvertido e imoral, entre outros adjetivos, conforme os trechos destacados.

E hoje, qual seria o papel do intelectual? De acordo com Foucault, ainda na conversa com Deleuze, diz:

…O papel do intelectual não é mais o de se posicionar “ um pouco á frente e um pouco ao lado” para dizer a verdade muda de todos; é antes o de lutar contra as formas de poder ali onde ele é, ao mesmo tempo, o objeto e o instrumento disso: na ordem do “saber”, da “verdade”, da “consciência”, do “discurso”.

É nisso que a teoria não expressará, não traduzirá uma prática, ela é uma prática (39).

Se conforme vimos, o papel do intelectual hoje é lutar na ordem do saber, da verdade, da consciência e do discurso, cabe também ao analista do discurso analisar os dispositivos de poder que predominam na sociedade contemporânea e por isso elegemos a mídia impressa para tal reflexão.

 

4. DE UMA BREVE ANÁLISE DAS ESTRATÉGIAS DE CONSTRUÇÃO DA PROPAGANDA

A propaganda que elegemos para análise – CPFL veiculada pela revista Bravo – reflete bem a cristalização do dizer sobre o intelectual, pois recorre a figuras que remetem à imagem do Ser do conhecer predominando sobre a imagem do Ser do ser, ou seja, pauta-se no conceito délfico e no cristão como moralização (renúncia de si) do intelectual, conforme podemos ver abaixo:

 

1319-5629-1-PB

 

 

Nesta propaganda temos a parte imagética bastante significativa, já que a representação do intelectual dá-se somente pela cabeça recheada de outras cabeças, como se o corpo todo não fizesse parte do intelectual. Além disso, dessa cabeça maior saem raios amarelos metaforizando um ser iluminado tal qual a ação da CPFL que fornece Luz para o Estado de São Paulo.

Outro detalhe importante é que junto à imagem há enunciados que reforçam a supremacia da subjetividade coletiva do intelectual como “cabeça”, aquele do “papo cabeça”, nos enunciados: “Debates profundos”, “Palestras enriquecedoras”, “Exposições controversas”

As estratégias de construção dos enunciados repetem a velha fórmula evasiva e vazia de outros tipos de propaganda, pois na propaganda não é revelado o que é tido pela e para a sociedade como profundo, enriquecedor e controverso. Além dessa ilusão de intelectualidade que a imagem e os enunciados criam como efeito de sentido do que é ser cult, diz quem é cult numa auto-propagação da propaganda – como geradora de cultura e cidadania – e da revista que a veicula. Forma-se uma rede de imagens no discurso propagandístico que faz da mídia impressa o canal onde o poder se exerce. Contudo, o poder não se exerceria com a mesma eficiência se o intelectual ocupasse o lugar de lutas na ordem do saber, da verdade, da consciência e do discurso. Aí então, pode-se perguntar: será que a mídia como poder e produtora de sentidos não se utilizou desta propaganda para atingir o seu público alvo naquilo que seu público alvo – o intelectual – dela espera? Até que ponto o intelectual quer ver representado em sua imagem – seja ela propagandística ou não – o cuidado de si no mesmo nível de representação do conhece-te a ti se se permite desvelar no imaginário social como um sujeito da renúncia de si?
 
 
Referências

CHARTIER, Roger. A ordem dos livros.Leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVIII. 2 ed. Trad. Mary Del Priore. Brasília: Ed. Da UnB, 1998.

FERREIRA, Lúcia.M.A & ORRICO, Evelyn.G.D. (org.) Linguagem, Identidade e Memória Social – Novas fronteiras, novas articulações. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.

FOUCAULT, Michel. Deux essais sur le sujet et le pouvoir. In: FREYFUS, H.; RABINOV, P. Un parcours philosophique. Paris: Gallimard, 1984. p. 297-321.

____. Microfísica do Poder. 18. ed. Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 2003

____. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1986.

____. Dits et écrits. Une estétique de l`existence. L´Intervew avec Michel Foucault. Paris: Gaullimard, 1994.

HEIDEGGER, Martin. Conferencias y articulos. Trad. Eustáquio Barjau. Ediciones Del Serbal, Barcelona, 1994.

PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Trad. Orlandi, E. P. et al. 3.ed. Campinas: Ed. Unicamp, 1997./p>

REVISTA Bravo. São Paulo: Editora Abril, 2006.

SOUSA SANTOS, Boaventura. de. Pela mão de Alice – o social e o político na pós-modernidade. 8. Ed. São Paulo: Cortez, 2001.

 
 

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