RESSEMANTIZAÇÃO DA LINGUAGEM MÍSTICA: RESISTÊNCIA NO CONFLITO DE ITAIPU

Tarcísio Vanderlinde, Juliane Vanderlinde
Universidade Estadual do Oeste do Paraná
 
 
Introdução

O conflito que envolveu os agricultores atingidos pela construção da usina Hidrelétrica de Itaipu se estendeu de 1978 a 1982, ano em que foram fechadas as comportas para a formação da represa. Calcula-se que o processo de indenização atingiu cerca de oito mil famílias desencadeando um processo migratório complexo e com muitas consequências. Em relação ao fato, constata-se que no período após o conflito já foram publicadas e sistematizadas inúmeras pesquisas sobre os impactos gerados pela construção da represa. Este artigo resulta de investigação bibliográfica que leva em conta parte da produção já realizada e tem como foco o aspecto místico relacionado ao conflito.

Num período da história recente do Brasil em que não eram comuns mediações progressistas nos conflitos agrários, o evento de Itaipu seria marcado por forte influência religiosa destacada por lideranças das igrejas católicas e luteranas. O conflito de Itaipu está na raiz dos movimentos sociais de luta pela terra no Brasil, e no caso do Estado Paraná foi decisivo para a criação do MST e da Comissão Pastoral da Terra (CPT). A CPT teve sua sede inicial na região circunscrita ao conflito sendo posteriormente transferida para a capital do Estado, cidade de Curitiba.  O Pastor luterano Werner Fuchs, uma das lideranças atuantes no conflito, em prefácio à primeira edição do livro “A taipa da Injustiça” de autoria do jornalista Juvêncio Mazzarollo dá o tom da situação vivida pelos atingidos durante a construção da barragem:

Em julho de 1980, os desapropriados de Itaipu faziam manchetes em todos os grandes jornais do país. Com um veemente brado de justiça efetuaram um cerco ao escritório da Itaipu Binacional em Santa Helena, PR, mantendo-o com decisão, firmeza e organização por 16 dias, até serem atendidos em suas principais reivindicações. Por que essa revolta? Quais os motivos que levaram a resistência latente no povo a esse grau extremo de demonstração? Certamente, a mobilização autodenominada ‘Movimento Justiça e terra’ tinha motivos de sobra para estourar. A ‘taipa’ que futuramente deveria represar as águas do caudaloso Paraná, já tinha acumulado injustiças demais” (Mazzarollo 11).

Como também avalia Martins (1989) em relação a outros embates no Brasil, a medição religiosa no conflito de Itaipu pode ser considerada sintomática de um tempo caracterizado por um grande estreitamento do espaço político secularizado no Brasil, ou seja: os dirigentes e “representantes” políticos com raríssimas exceções se limitavam a fazer o jogo do poder. Sendo assim, o processo acabou impondo à Igreja uma tarefa histórica que partidos políticos não conseguiram ou não quiseram compreender, a saber: o da mediação com o intuito de romper velhas relações de dominação e exploração.
 
Conflito e mística

A mística pode ser entendida como parte do discurso de mediação em que se envolvem entidades religiosas, procurando nesta motivar o agricultor aos objetivos que se pretendem alcançar. Trata-se de criar referenciais e visões de mundo, onde o sagrado indica um caminho viável a ser seguido. A mística é capaz de criar um encantamento na luta do agricultor e um pesquisador atento poderá identificá-la em muitos movimentos e momentos relacionados à história dos camponeses. O camponês tem uma religiosidade que nem sempre coincide com aquela que lhe chega mediada por entidades religiosas. Através de sua religiosidade, assim como nos “silêncios” e seus significados, o camponês também resiste e avança. É o contato com a natureza e a percepção da sequência dos dias e estações que formulam uma experiência “espiritual” própria ao camponês. Este sentimento fundamentado numa concepção de vida pode entrar em sintonia com outros discursos mais “refinados” mediados pelos agentes religiosos (Vanderlinde, 2008). José de Souza Martins (1989 e 1994), além de outros pesquisadores, esteve atento a este particular e problematizou exemplos da formulação e da intenção que acompanha a construção da mística entre camponeses.

É da compreensão de Pierre Bourdieu que o interesse religioso tem por princípio a necessidade de legitimação das propriedades simbólicas associadas a um tipo determinado de condições de existência e de posição na estrutura social. Neste caso, a mensagem religiosa mais capaz de satisfazer o interesse religioso de um grupo determinado de leigos, e de exercer sobre ele o efeito propriamente simbólico de mobilização é aquela que lhe fornece um sistema de justificação das propriedades que estão objetivamente associadas ao grupo na medida em aquele ocupa uma determinada posição na estrutura social (Bourdieu 51).

Schreiner (2002) analisa a construção da mística através da mediação. Destaca o autor que, subordinados nos processos de expropriação, fragmentação e apropriação do território, pelo capital, os camponeses conseguem construir uma insurgência em muitos casos motivados por referenciais político-religiosos da Teologia da Libertação mediados pela Comissão Pastoral da Terra – CPT, que os levaram a traduzir seus próprios valores em movimentos que se caracterizaram como resistência transformadora com repercussões para além do espaço local.

Inspirado pelos escritos de Thompson, e considerando o processo que provoca o encantamento da situação vivida, Schreiner chama atenção para a criação dos símbolos mediadores como a bandeira, a cruz de cedro ou outros da cultura camponesa que imbricados a elementos de ordem moral, como honestidade, confiança, sacrifício, reforçam laços de solidariedade, transformando o cotidiano presente em potencialidade do futuro. Em decorrência, aparece uma cultura rebelde, que subverte ao reviver formas socioculturais tradicionais e ao mobilizar para a luta através da interpretação e significação que os camponeses conferem às próprias existências.

A partir de 1930, com as frentes pioneiras de colonização, logo que o grupo de migrantes se instalava, construíam uma capela para cultos e missas. Schreiner enfatiza que a disposição geográfica das capelas representa a centralidade religiosa na vida da comunidade. Os ritos e símbolos religiosos, seus significados, importantes na vida cotidiana do acampamento para coesão, mobilização e fortalecimento da luta, foram recriados no assentamento numa perspectiva tradicional, tanto pelos assentados, quanto pela presença da Igreja. Não é difícil compreender que havia certa facilidade em construir o encantamento nos processos de luta pela terra a partir da “mística” que de certa forma constitui uma característica aparentemente inata à vida camponesa. Inúmeras pesquisas já realizadas e outras por fazer podem contribuir nesta discussão.

O conflito de Itaipu foi marcado pela presença intercessora de religiosos, principalmente da Igreja Católica e Luterana, que mobilizaram os atingidos utilizando-se da ressemantização de fragmentos bíblicos. Em linguagem jornalística Juvêncio Mazzarollo enfatiza a mediação da Igreja no conflito: “Para conforto dos desapropriados, as igrejas preenchiam o vazio que se situava entre eles e a expropriante. Entraram em cena: A Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB), a Igreja católica e outras”. O jornalista percebe de forma sensível a linguagem mística utilizada na mediação do conflito: “Felizmente apareceu a ‘arca’ das Igrejas, e logo começou o embarque. Em pouco tempo de trabalho de convocação estava arregimentada uma grande multidão, que partiu para grandes demonstrações de força que mudaram o rumo dos acontecimentos”. Na obra jornalística de Mazzarollo podem ser observadas expressões que se identificam com a mística bíblica com forte apelo simbólico como “Arca de Noé”, “Dilúvio” e “Mausoléu dos faraós”. Mazzarollo observa que nas orações que se faziam no acampamento, os agricultores pediam para que Deus amolecesse o coração duro dos homens da Itaipu; para que desse forças para os agricultores enfrentarem os poderosos; e para que os policiais que estavam mantendo a ordem soubessem a causa do sofrimento “de tantos irmãos nossos” (Mazzarollo 57-90).

Ribeiro (2002) desenvolve uma análise militante que explora a força da memória na resistência e ressalta o poder da mediação religiosa no conflito. O aspecto místico da mediação é evidenciado. São imagens muito antigas, mas também projeções futurísticas que se condensam na memória, tais como o dragão, a pirâmide, a catedral futurística, o túmulo, o dilúvio, a alavanca, o presépio, as sete pragas e o lago de sangue e suor. O cristianismo e o mundo da cientificidade são constituídos neste chão de conflito na incerteza do plano vivido. Diante na inevitabilidade e do dilúvio e da impossibilidade de uma paisagem pós-diluviana, recorrem-se a metáforas fundamentadas em textos veterotestamentários. A historiadora observa que o conflito faz emergir uma pastoral específica corajosamente evangélica, coerentemente profética. Uma pastoral que não aceitasse ser consentida, porque o anúncio da Palavra de Deus aos homens que vivem, trabalham e sofrem no mundo real e concreto, não poderia ser condicionado pelo “beneplácito dos faraós”.

Em relação ao conflito, e considerando especificamente o aspecto místico nele envolvido, merece destaque a obra realizada pelo historiador Frank Mezzomo (2009) onde através da oralidade procura singularizar depoimentos e o trabalho de três religiosos envolvidos na luta dos agricultores pela indenização das terras a serem alagadas pela represa.  A partir das memórias, os depoimentos indicam ainda muitas outras possibilidades de pesquisa a serem feitas. Um dos entrevistados, o pastor luterano Gernote Kirinus revela ressentimento pelo movimento ter “perdido o bonde da história” no caso, referia-se ao processo de reforma agrária. Na opinião do pastor o movimento poderia ter sido utilizado para desencadear uma reforma agrária e não apenas processos de indenização pelas terras alagadas. Seu depoimento é ácido, irônico e crítico com a atuação no conflito realizada pelo bispo de Foz do Iguaçu, Dom Olívio Aurélio Fazza, à época do conflito. Contudo os outros religiosos entrevistados contestam a visão crítica de Kirinus1.

Percebe-se que a intenção de Mezzomo foi dar visibilidade às experiências dos movimentos sociais e disponibilizar fontes para novas pesquisas e interpretações sobre o ocorrido. Seu trabalho tem o mérito de apresentar atores como porta-vozes do sagrado nos conflitos. O autor observa, porém, que a memória dos mediadores não é a história em si: “é uma reconstrução psíquica e intelectual que acarreta de fato uma representação seletiva do passado, um passado que nunca é aquele do indivíduo somente, mas de um indivíduo inserido num contexto familiar, social, nacional”. A versão do testemunho ocular precisaria ser cruzada com várias fontes históricas. O autor observa que a modernização agressiva ocorrida no palco dos conflitos, afeta profundamente a mentalidade, as representações e os valores de referência desta sociedade (Mezzomo, 13-19).

Na avaliação de Mezzomo, a participação do pastor Werner Fuchs, por exemplo, pode ser considerada como a de um intelectual orgânico envolvido no movimento dos desapropriados de Itaipu. A partir do depoimento do pastor pode-se concluir que nem todos os religiosos que desenvolviam trabalhos pastorais na região se engajaram no movimento e pode-se verificar a importância da motivação para a luta a partir da apropriação de textos bíblicos, como é o caso de uma passagem do profeta Isaías destacado pelo pastor: “Senhor a tua mão está levantada, mas nem por isso a vêem; porém verão o teu zelo pelo povo, e se envergonharão; e o teu furor por causa dos teus adversários que o consome”. Na visão do pastor, o objetivo da CPT é estar ao lado do povo que sofre e luta em torno dos problemas da terra. Neste caso, não seria suficiente estar ao lado do povo nos problemas pessoais, espirituais e evangélicos com programas evangélicos, mas seria preciso defender o povo em todos os aspectos da vida.
 
A Romaria da Terra enquanto memória mística de resistência

A construção da usina gerou um grande impacto social na região principalmente entre os agricultores atingidos pela formação da represa, que se estende no antigo leito do Rio Paraná a jusante da cidade de Guaíra e a montante da cidade de Foz do Iguaçu no oeste do Estado do Paraná. Paralelamente, mediada pela CPT, ocorre uma reação entre os colonos pela “justa” indenização das terras alagadas. Nos dias 29 e 30 de agosto de 2003, na cidade de Santa Helena no oeste do Paraná, estiveram reunidos agricultores indenizados pela Itaipu Binacional juntamente com padres católicos e pastores da IECLB, para “celebrar” os 25 anos da luta “Movimento Justiça e Terra” dos atingidos de Itaipu (Liturgia, 29 ago. 2003).

Com a atenção voltada para a tríplice fronteira Brasil/Paraguai/Argentina, e considerando o enfoque da discussão desenvolvida neste artigo, registre-se o tema da 18ª Romaria da Terra no Estado do Paraná. Na Romaria da Terra, que aconteceu em 31 de agosto de 2003 na cidade de Guaíra, PR, o mote de celebração foi a “água”, desenvolvida sob o tema: “Bendita água que gera a luta do povo por terra”. Calcula-se que mais de 20.000 pessoas participaram na celebração litúrgica que lembrou o desaparecimento das Sete Quedas e as lutas dos agricultores pela justa indenização das terras durante o processo de desapropriação realizada pela Itaipu Binacional. Percebe-se aí uma dupla celebração mística/messiânica. De um lado pelo território perdido pelos agricultores que tiveram que cedê-lo para que o “progresso” pudesse ser viabilizado. De outro, também naufragado pelo mesmo objetivo, a perda de um dos mais significativos patrimônios da humanidade: os saltos das Sete Quedas. Na visão dos celebrantes, foi dado um abraço de solidariedade na cidade de Guaíra que profundamente impactada pela formação do lago, até hoje considera não ter recebido a justa indenização, se é que isto seria possível algum dia. Na celebração litúrgica do território perdido são rememorados assuntos que ainda constrangem. A consciência coletiva vem à tona e lembra que vontades empresariais e políticas se sobrepondo às necessidades sociais podem trazer graves consequências.

Na medida em que lembra como as coisas não devem ser feitas contra o homem e a natureza, a celebração indicou caminhos de convivência pacífica e solidária entre as pessoas. A 18ª Romaria da Terra, associada ao evento dos Atingidos de Itaipu, que aconteceu no município de Santa Helena dois dias antes (29 e 30 de agosto), foi uma oportunidade de “esclarecer” uma fase histórica significativa para o oeste do Paraná2. Ficou observado que Relatórios de Impactos Ambientais (RIMAs), que deveriam acompanhar e legitimar a construção de hidrelétricas, não conseguem prever tudo, e, muitas vezes, por razões políticas ou econômicas, ignoram completamente os possíveis impactos sociais. No caso de Itaipu, a inteligência militar não imaginou que pudesse acontecer resistência com a população que morava onde hoje é o lago. A falta de sensibilidade e o descaso nas negociações da época acabaram estimulando organizações de agricultores que se espalharam por todo o Brasil nas décadas seguintes. A canção dos romeiros em Guaíra resume e expressa isso: “Mas tudo na vida tem sempre dois lados a água que é pura gerou nossa luta por terra e por pão, o povo foi vendo que era preciso se unir na disputa. Da água nasceu o maior movimento que o povo já viu no chão brasileiro nascido da terra, forjado barro unindo pequeno, sem terra e posseiro”. Na celebração messiânica pelo território perdido, puderam também ser ouvidas proclamações proféticas sobre a ressurreição das “Sete Quedas em algum dia desses”. Segundo os romeiros, elas continuam ali. “Apenas dormem” (CPT, 2003).

Ao discutir o campesinato na história, é possível perceber a sacralidade inerente ao camponês que muitas vezes não carece de intermediários para desenvolver sua própria religiosidade. Com ou sem apoio e consentimento da Igreja Instituição, o povo celebra de maneira diferente. Na Romaria da Terra, a peregrinação, a procissão e o culto são reinventados, criando-se um espaço livre da tutela institucional e da tradição litúrgica para escolher o que liturgicamente parece imprescindível aos romeiros (Adam, 2002).

É possível concluir que há uma distância “teológica” entre os cultos da Romaria da Terra e aqueles que se celebram nos templos. Em seus estudos, Adam ressalta este aspecto. Segundo o autor, a Romaria da Terra se caracteriza como uma celebração litúrgica incomum e deve ser encarada como tal. O autor é da opinião de que uma associação direta entre o culto dominical e romaria poderia ser prejudicial para ambas as partes. Sem aprofundar a questão, Adam destaca que, da experiência dos romeiros, é possível tirar conseqüências para o labor litúrgico como tal, mas sem esquecer sua especificidade. Em alguns aspectos, como na “liturgia como prática dos pés”, uma aproximação entre as duas formas de culto seria até recomendável. “O culto nas comunidades da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil – IECLB está relacionado a outros contextos, outras lutas, outras teologias e tradições litúrgicas, outros objetivos e sonhos. A busca na comunidade é outra. O espaço é outro”.

Na visão de Adam, A liturgia se reveste de resistência política. A celebração se transforma num laboratório de contracultura. Neste caso, o culto pode ser celebrado de tal forma que faz de Cristo uma presa de determinada cultura, ou de apenas uma camada ou grupo cultural específico. O conflito social é perceptível na Romaria da Terra. Lançando mão de símbolos e práticas litúrgicas de uma festa contracultural, os grupos organizados na romaria conseguem articular-se para além do intrincado mecanismo de poder e de exclusão no qual se encontram. Constituem-se de fato numa forma de política articulada à mística, que se expressa mais através de um discurso instrumentalizador e de propaganda, onde se recapitulam experiências de governo ou confrontos e ocupações de propriedades rurais.

A modernidade parece não ter diluído o sentimento religioso, como apressadamente muitos concluíram. As “dores” que ela trouxe estimularam novos sentimentos espirituais à medida que reavivaram antigos. No dizer de Adam Schaff, há muitos problemas novos, especialmente na esfera das reflexões sobre o indivíduo humano, que estão ainda por ser formulados e que, obviamente, devem ser enfrentados com novas soluções. Na busca da satisfação das necessidades materiais pelo homem, há também uma busca de “sentido de vida”, que pode ser entendido como fundamental para a satisfação das suas necessidades espirituais. A opção do tradutor em nominar o livro de Adam Schaff para “A sociedade informática” empobrece a ideia que norteia a reflexão do livro. O título original em alemão: “Wohin führt der Weg” (para onde conduz o caminho), dá uma melhor ideia sobre o que o autor discute. Adam Schaff destaca o valor crescente da fé na futura sociedade informática. Esclarece, porém, que ela não se fundamenta no modelo presente nas liturgias das Igrejas tradicionais. “As organizações religiosas que promovem a unidade dos fiéis baseando-se no sentimento de uma vivência comunitária, nas emoções ou na meditação em comum terão provavelmente mais êxito” (Schaff 150).

No caso das Romarias da Terra, observa-se que a celebração litúrgica é acompanhada de uma “forte” simbologia que procura dar um sentido ao ato. Mircea Eliade nos lembra que o símbolo não somente torna o mundo “aberto”, mas também ajuda o homem religioso a alcançar o universal. Graças aos símbolos é que o homem sai de sua situação particular e se “abre” para o geral e o universal. Os símbolos despertam a experiência individual e transmudam-na em ato espiritual, em compreensão metafísica do mundo. Eliade resume emblematicamente a permanência do sagrado e a sua pertinência na história do homem:

Conhecer as situações assumidas pelo homem religioso, compreender seu universo espiritual é, em suma, fazer avançar o conhecimento geral do homem. É verdade que a maior parte das situações assumidas pelo homem religioso das sociedades primitivas e das civilizações arcaicas há muito tempo foram ultrapassadas pela História. Mas não desapareceram sem deixar vestígios: contribuíram para que nos tornássemos aquilo que somos hoje; fazem parte, portanto, da nossa própria história (Eliade 165).

A religiosidade como elemento de resistência se materializa no âmbito das lutas dos agricultores e suas famílias atingidas pela construção da Hidrelétrica de Itaipu no limiar do século XXI. Neste tempo, a religiosidade abalada por processos de secularização, se redefine em formas místicas alternativas onde a simbologia ancestral é recuperada e se torna motivadora na conquista de demandas sociais da contemporaneidade. Entre o arcaico e o moderno, o institucional e o informal, a mística revitalizada sobrevive e se afirma.
 
Conclusão

O artigo teve a pretensão de discutir a mística que se impregnou ao movimento de resistência entre os agricultores atingidos pela construção da Hidrelétrica de Itaipu. Observou-se a atuação de algumas lideranças que se destacaram no conflito e aspectos relacionados aos discursos místicos que tinham como objetivo motivar os agricultores no movimento. Passado a fase do conflito, surge a manifestação religiosa identificada como Romaria da Terra que relembra a luta dos atingidos e se relaciona à resistência dos camponeses do tempo presente. Esta manifestação surge como uma reação às injustiças praticadas contra os agricultores durante a fase de governos militares, e teve no Estado do Paraná, principalmente na fronteira com o Paraguai e a Argentina, uma intensa conotação messiânica.

Diferentemente de outras regiões brasileiras, as Romarias da Terra no Paraná, apresentam uma forte influência mediadora luterana. A presença de lideranças luteranas durante a resistência dos agricultores que buscavam uma justa indenização pelas terras que viriam a ser inundadas pela Hidrelétrica de Itaipu foi emblemática e decisiva. No caso da 18ª Romaria da Terra, que aconteceu na cidade de Guaíra no ano de 2003, a pregação que teve como tema a mercantilização da água e a desterritorialização dos agricultores, foi realizada pelo pastor luterano Werner Fuchs.

No caso do ambiente de fronteira no extremo Oeste do Paraná, que se identifica com o momento histórico da construção da Hidrelétrica de Itaipu, a degradação do “outro” já vinha acontecendo com a expansão da modernização agrícola, em curso na área desde os anos de 1960. Porém uma nova expansão de interesses capitalistas passou a se materializar na região a partir do momento que se decidiu pelo represamento do Rio Paraná entre as cidades de Guaíra e Foz do Iguaçu, com a finalidade de se construir uma usina hidrelétrica.

Mediados, e auxiliados em suas lutas por padres e pastores, os camponeses/colonos identificaram na fronteira um novo vetor de degradação da sua situação social: Itaipu. A resistência que se articulou foi permeada de elementos místicos e messiânicos também passíveis de serem observados em outros momentos da história. Assim como em Canudos ou Contestado, o “progresso” chegou à região Oeste do Paraná mostrando sua ambigüidade, materializando desencontros.

O processo de formação do lago Itaipu gerou inúmeros protestos entre os agricultores pela indenização de suas propriedades que vieram a ser alagadas. Os movimentos mediados por entidades religiosas entre as quais a Igreja Católica e a Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB) foram decisivos no sentido de mitigar os impactos sofridos pelos agricultores em decorrência da construção da barragem. Numa fase em que as manifestações políticas eram controladas, a mística metaforicamente a substitui e enquanto referencial espiritual esteve amalgamada ao processo de luta.
 
 
Notas

1 Frank Antonio Mezzomo defendeu tese de doutoramento onde avalia a trajetória do bispo de Foz do Iguaçu durantes o conflito de Itaipu. Cf. MEZZOMO, Frank Antônio. Dom Olívio Aurélio Fazza: trajetória eclesial de um bispo em uma região de conflitos. 2009. Tese (Doutorado em História) – UFSC, Florianópolis, 2009.

2 O município de Santa Helena situa-se à margens do Lago Itaipu ao sul do município de Guaíra. O município que foi palco de resistência das lutas camponesas por uma justa indenização das terras alagadas, perdeu parte considerável de sua área territorial que foi inundada para formar a represa.
 
 
Referências

ADAM, Júlio Cezar. Liturgia como prática dos pés. A Romaria da Terra no Paraná: reapropriação de ritos litúrgicos na busca e libertação dos espaços de vida.Estudos Teológicos, São Leopoldo: Sinodal, 2002.

BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1987.

COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Livreto de celebração da 18ª Romaria da Terra. Curitiba: 2003.

ELIADE, Mircea.  O sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

LITURGIA da celebração ecumênica dos atingidos de Itaipu, 29 ago. 2003.

MARTINS, José de Souza. Caminhada no Chão da Noite. São Paulo: Hucitec, 1989.

MARTINS, José de Souza. O poder do atraso: ensaios de sociologia da história lenta. São Paulo: Hucitec, 1994.

MAZZAROLLO, Juvêncio. A taipa da injustiça: esbanjamento econômico, drama social e holocausto ecológico em Itaipu. São Paulo: Loyola, 2003.

MEZZOMO, Frank Antônio. Memórias dos movimentos sociais no oeste do Paraná. Campo Mourão: Ed. da FECILCAM, 2009.

MEZZOMO, Frank Antônio. Dom Olívio Aurélio Fazza: trajetória eclesial de um bispo em uma região de conflitos. 2009. Tese (Doutorado em História) – UFSC, Florianópolis, 2009.

RIBEIRO, Maria de Fátima. Itaipu: a pedra que canta ou pedra que chora? In:____. Memórias do concreto. Cascavel: Edunioeste, 2002.

SCHAFF, Adam. A sociedade informática. São Paulo: Brasiliense, 1990.

SCHREINER, Davi Felix. Entre a exclusão e a utopia: um estudo sobre os processos de organização da vida cotidiana nos assentamentos rurais – região sudoeste/oeste do Paraná. 2002. Tese (Doutorado em História) – USP, São Paulo, 2002.

VANDERLINDE, Tarcísio. Celebração subversiva na fronteira. In: COLOGNESE, Silvio Antonio (Org.). Fronteiras e identidade regionais. Cascavel: Coluna do Saber, 2008.

 
 

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