TEMPO DE RECORDAR: “EL OTRO EXILIO” DE SUSANA GERTOPÁN

Alexandra Santos Pinheiro
Universidade Federal da Grande Dourados
 
 
Memória: lembrar, compreender e perdoar

A escritora paraguaia Susana Gertopán escreveu, até o ano de 2010, seis narrativas intituladas por ela de novelas: Barrio Palestina (1998); El nombre prestado(2000); El retorno de Eva (2004); El otro exilio (2007); El equilibrista (2009); El calejon oscuro (2010). Sua produção tem um ponto em comum: as personagens principais são judias, pessoas que fugiram dos horrores da primeira e da segunda Guerra Mundial. Na América do Sul ou na Europa, sentem-se seguros, mas, em contrapartida, necessitam curar1 a culpa por estarem vivos, enquanto seus pais, irmãos, tios, avós e amigos foram mortos nos campos de concentração. Em entrevista ao Correo Semanal, divulgada na edição de 16 de outubro de 2010, Gertopán relembra que sua família emigrou da Polônia para o Paraguai entre a primeira e a segunda Guerra Mundial. Ela nasceu em 1956, no bairro Palestino (nome de uma de suas narrativas). No reduto dos judeus no Paraguai, Susana Gertopan cresceu ouvindo as histórias contadas por seus pais, avós, tios, vizinhos. As personagens que compõem suas obras, portanto, são constituídas, também, pelas imagens apreendidas e reinterpretadas das histórias ouvidas na infância e na juventude, como a autora afirma:

–No me acuerdo cuándo empecé a escribir. Creo que siempre estuvo presente en mí la necesidad de expresarme de ese modo. Creo que necesitaba, necesito contar lo que sentía, lo que siento, lo que me dolía y duele, lo que soñaba y sueño, lo que pienso y deseo. Denunciar lo que veía y veo, dar riendas sueltas a mis fantasmas, darles vida a ellos y a ciertos personajes que yo inventaba, invento. No concibo vivir sin la escritura, ausente de la creación. Escribí y escribo para sobrevivir (entrevista ao Correo Semanal, 16/10/20102).

De acordo com as palavras de Gertopán, sua escrita lhe permite partilhar sonhos, desejos, denúncias, por fim, escrever, para ela, significa “sobreviver”. Seu trabalho já conquistou reconhecimento e suas obras foram premiadas dentro e fora do Paraguai. Victorio V. Suárez (2011) afirmou que “Susana es una  de las prolíficas escritoras paraguayas y nadie podría negar lo méritos que ha conseguido en la novelística, enriquecida por su capacidad creativa y proximidad a los grandes problemas que aquejan a la humanidad” (194).

Em 2010, pela obra El Callejón Oscuro, recebeu o prêmio “Lidia Guanes”. Por ocasião desse prêmio, muitos artigos foram escritos sobre a autora. O da pesquisadora Lourdes Talavera, por exemplo, explicita o valor histórico do conjunto de suas obras. Suas criações literárias seriam, de acordo com Talavera, a possibilidade de construir um quadro sobre os conflitos vivenciados pelos imigrantes judeus:

Susana Gertopán, en nuestro país, es una importante referente de la literatura judía y nos presenta temáticas que aluden a la diáspora o exilio hebreo, el holocausto y las secuelas en sus víctimas como también las tradiciones y ritos judíos como se evidencia en su primera novela “Barrio Palestina”. El exilio es tratado en cada una de sus novelas de manera explícita o implícitamente desde diferentes miradas: el exilio del hogar, el político, el autoexilio y lo que ella denomina el “otro exilio”, ese que lleva a las personas a defenderse de la vida como un mecanismo de defensa para protegerse del dolor externo. Este tema es tratado en su obra “El otro exilio” (Talavera 33).

Não por acaso, a obra El otro exilio foi escolhida para discutirmos o lugar da memória no texto literário. De acordo com as próprias palavras de Gertopan, a maior parte de suas criações está pautada nas histórias que ouviu durante a infância e juventude. Aliado aos relatos de seus familiares encontra-se o que a escritora também vivenciou nos bairros palestinos de Assunção, espaço em que lembrar era a única forma de preservar seus costumes, sua religião, suas vidas. Como nas demais narrativas, as personagens de El otro exilio oferecem uma significativa reflexão acerca da imigração, da culpa e dos conflitos culturais. Ao rememorar, o narrador-protagonista Gregório Gurstonsky percorre o caminho do lembrar, compreender e perdoar. Gregório sintetiza os conflitos vivenciados por seus pares, judeus que escaparam do holocausto, mas que se percebem aprisionados pela culpa de ter sobrevivido e pela obrigação de assegurar a cultura judaica.

O narrador Gregório envereda por uma narrativa memorialística, realizada por quem aceita visitar o seu passado, ressignificar a sua história e a de seus pares, como afirma Viana:

Importância da experiência pessoal e a oportunidade de oferecê-la ao outro até o estabelecimento de uma relação pactual, num acordo tácito de um eu autorizado pelo próprio sujeito da enunciação e que toma para si sua vivência passada (Viana 16).

Paul Ricouer (2007), um dos teóricos mais significativos para a compreensão do processo memorialístico afirma: “[…] não temos nada melhor que a memória para significar que algo aconteceu, ocorreu, se passou antes que declarássemos nos lembrar dela”. Em seguida, destaca que:

 (…) a “rememoração” […] proporciona o sentimento da distância temporal; mas ela é a continuidade entre presente, passado recente, passado distante, que me permite remontar sem solução de continuidade do presente vivido até os acontecimentos mais recuados da minha infância (Ricoeur, A memória, a história, o esquecimento, 40).

O protagonista-narrador de El otro exilio (2007), Gregório, é o personagem criado por Susana Gertopán para nos conduzir pelo jogo da memória. Gregório em espanhol, Ghershn em Yiddish e Ghershon em hebreu, nasceu em 1930, em Varsóvia-Polônia. Quase aposentado da profissão de jornalista, o protagonista é desafiado, por si mesmo e pelo desejo de livrar-se de culpas, a reconstruir sua história: os exílios geográficos vividos com sua irmã Rebeca e seus pais; o exílio de si mesmo; o exílio de seus amores e de seus filhos.

O exílio, sem sombra de dúvidas, é o tema principal dessa narrativa. A fuga de Varsóvia para Buenos Aires, pouco antes da Segunda Guerra Mundial, evita que sua família seja morta nos campos de concentração. Esse, no entanto, seria o primeiro de outros exílios geográficos. Na Argentina, a irmã se associa a um grupo político contrário ao governo. A atuação política de Rebeca obriga a família a procurar refúgio em Assunção. Quando encontram a paz na capital paraguaia e voltam a planejar uma feliz vida em família, a irmã, mais uma vez envolvida em grupos contrários ao ditador Stroessner, obriga-os a voltar para Buenos Aires, onde passam a viver escondidos, lançados na extrema pobreza.

Gregório decide exilar-se daquela miséria e da desunião familiar. Parte, então, para os Estados Unidos da América, onde estuda jornalismo. Depois vive em Israel, Paris, Espanha e todos os demais países onde ele foi correspondente de guerra. Enquanto reconstrói as imagens que marcaram seu passado, o protagonista percebe que passou a vida exilando-se. Quando criança, perdia a voz se algo terrível ocorria; na adolescência, exila-se de sua família; na vida adulta, exila-se das mulheres que amou e de seus filhos. Ao finalizar suas memórias, percebe que a reconstrução de seu passado era o passaporte para se reconciliar consigo mesmo.

Quando é interpelado por um estudante de jornalismo, que deseja entrevistá-lo para compor seu trabalho final na universidade, Gregório emudece mais uma vez. A pergunta era simples “O que poderia contar sobre sua vida?”, mas o protagonista sente-se incapaz de cumprir a tarefa. Gregório relembra as vezes que perdeu a voz ao longo de sua vida: quando saiu da Polônia aos seis anos de idade; no dia em que se viu obrigado a mudar de Assunção e quando seu pai morreu. Despede-se do entrevistador com a promessa de que escreveria sua história e lhe entregaria para ser publicada. No processo de viver e refletir “sobre sua relação com o mundo, com os outros ou com eles mesmos” (Chartier; Cavallo 34), há, é claro, a subjetividade do narrar, a seleção de alguns fatos e o apagamento de outros. As vivências, embora diferenciadas, são ligadas pelo processo de compreender novas línguas, novos lugares e culturas: “Las corrientes del tiempo nunca son iguales para dos personas, ni siquiera cuando son amantes” (frase de Mishima Kawabata, epígrafe do livro El otro exilio).

O prefácio da obra também é assinado pelo protagonista-narrador. Nesse texto de apresentação é possível acompanhar uma intensa reflexão acerca do ato de recordar, principalmente quando as lembranças são “sofocadas por tristes recuerdos”. O ato de rememorar marca o reencontro com sentimentos que o narrador submergiu ao longo de sua vida. Rememorar implica em romper os silêncios pelos diferentes exílios que experimentou: o da fala e o não lugar:

Recuerdos sombrios, teñidos de melancolia, embebidos de angustias, cubiertos de silencios, debido a los tantos exilios y desarraigos a los que tuve que sobrevivir. Recuerdos enquistados en una mudez a veces voluntaria, y otras no, en La que también retenía dolores y miedos.
(…)
Viví en diferentes lugares, pero nunca permaneci en ninguno, ni acepté ser parte de alguno.
(…)
Las constantes mudanzas a diferentes lugares con distintos idiomas, los silencios en que nos manteníamos como cubriéndonos de los dolores de afuera y la perdida de mi voz, hicieron su estallido en un momento de mi vida, con una angustia que pronto se convirtió en huída trás huída (9).

Gregório antecipa ao leitor que suas recordações são marcadas por cenas ruins, por fugas e pela busca de uma “terra prometida”, nunca vivenciada: “La tierra prometida, ese lugar certero donde permanecer, nunca existió. Ese espacio ideal se convirtió desde entonces en mi única búsqueda. Una búsqueda que me llevó a desembocar en repetidas historias de nuevas partidas” (10). Quando criança, imaginou que a terra prometida seria o lugar que os protegeria dos horrores do holocausto. Na adolescência, pensa ser Assunção o lugar onde encontrariam a tranquilidade para viver. Depois, busca nos Estados Unidos da América refúgio para se proteger de seus pais e de sua irmã, pessoas com as quais ele não queria parecer. A vida adulta também será marcada por diferentes lugares: Polôia, Espanha Paris, Israel, Buenos Aires. Em nenhum desses lugares, no entanto, sentiu-se protegido. As múltiplas fugas o impediu de pensar em seus temores, amores e sonhos. No desafio de rememorar, chega a duvidar que tenha sido ele mesmo a vivenciar os fatos guardados em sua mente: “Tal vez ésas, las que llamo mis historias, ni siquiera sean mías, porque las guardé, las atesoré tanto, por tanto tiempo, por temor que ellas se entumecieron; como mis huesos, como mis sentidos” (11).

No tengo la voluntad de escribir una biografía puesto que no creo en ellas, simplemente un cuento, eso, la historia de un niño que se quedó sin voz, de un joven que vivió en silencios, de un hombre que sobrevivió a destierros. De un periodista que relató lo que vio y sentió, desarmando mentiras y relatando verdades. De alguien que disfrutó de pasiones y se dejó enloquecer por varios amores.
(…)
Mi intención es escribir sobre mi vida, aunque no creo en autobiografías; a pesar de ello intentaré serme fiel en cada movimiento que haga en este desafío de contar sobre mis penas, mis silencios, de cuando fui feliz y por qué quedé sin voz (11-12).

Em um trabalho significativo acerca da biografia, Philippe Lejeune (2008) possibilita compreender a confusão de sentimentos expostos no fragmento acima. Em um primeiro momento, Gregório anuncia que escreverá simplesmente um conto em que possa expor as personagens de um menino que ficou sem voz, de um jovem que viveu em silêncios e de um homem que sobreviveu a desterros. No fragmento seguinte, por outro lado, assume o propósito de escrever sobre sua vida, procurando ser fiel a tudo que for narrado. Nesse jogo entre ficção e realidade, o que resta esperar desse narrador-protagonista?

A promessa de dizer a verdade, a distinção entre verdade e mentira constituem a base de todas as relações sociais. Certamente é impossível atingir a verdade, em particular a verdade de uma vida humana, mas o desejo de alcançá-la define um campo discursivo e atos de conhecimento histórico (desejo de saber e compreender) e no campo da ação (promessa de oferecer essa verdade aos outros), tanto quanto no campo da criação artística. É um ato que tem conseqüências reais: foi o que tentei mostrar em uma série de estudos que analisavam como o ato autobiográfico se inscreve no campo do direito. Há mentirosos que são estigmatizados. Há malvados e indiscretos que são temidos e punidos. Há verdades que ferem (Lejeune 104).

Como enfatiza Lejeune, é “impossível atingir a verdade”, embora as relações sociais sejam partilhadas pelo principio ético de ser verdadeiro. Gregório, nesse sentido, demonstra uma confusão própria daquele que representa a si e ao outro. Num certo sentido, no jogo da memória, somos quase que personagens criados por nossas lembranças e pelas recordações coletivas: “é impossível conceber o problema da evocação e da localização das lembranças se não tomamos para ponto de aplicação os quadros sociais reais que servem de pontos de referencia nesta reconstrução que chamamos memória” (Duvignaud 09-10). Gregório promete chegar o mais próximo possível de uma verdade sobre a sua história, a de sua família e a de tantos outros judeus exilados de sua pátria, sua língua e sua religião.

Torna-se compreensível que, diante do acadêmico de jornalismo, o narrador-protagonista emudeça. A ele rememorar implica em sofrer novamente as dores que marcaram a sua história e a de seus familiares:

Lloré cuando recordé a mis padres, a mi hermana y a mis exilios. Sufría, porque no podía hablar, porque no podía contar, porque no pude gritar, porque no pude salvarle del ahogo a mi voz.
Frente a tanta frustración, me senté a contar mi vida. Pero en fin ¿qué significado tendría para un ser como yo sufrir la necesidad de contar sobre mí mismo? ¿qué significado tiene relatar la vida de uno? ¿cómo se hace? ¿cómo se sobrevive a recuerdos que solamente causan pena? ¿cómo se descubre y se consuela la culpa? ¿cómo se explica existir, quedar vivo, en un cuerpo que no palpita? (27).

As perguntas lançadas pelo protagonista podem ser respondidas a luz de Hannah Arendt e de Paul Ricouer:

Sem testamento ou, resolvendo a metáfora, sem tradição — que selecione e nomeie, que transmita e preserve, que indique onde se encontram os tesouros e qual o seu valor — parece não haver nenhuma continuidade consciente no tempo, e portanto, humanamente falando, nem passado nem futuro, mas tão-somente a sempiterna mudança do mundo e o ciclo biológico das criaturas que nele vivem (Arendt 31).

(…) não temos nada melhor que a memória para significar que algo aconteceu, ocorreu, se passou antes que declarássemos nos lembrar dela (Ricoeur, A memória, a história, o esquecimento  40).

A decisão de falar de si representou para Gregório a possibilidade de encontrar um lugar de pertencimento. Na citação acima, Arendt afirma a necessidade do homem de preservar a sua história para demarcar seu lugar nas sociedades que o cerca. Sem a preservação das lembranças, o homem segue desorientado, impossibilitado de ressignificar o que aconteceu no passado para compreender seu presente e se projetar no futuro:

Nosostros, las personas mayores, las que vivimos lo suficiente como para contar los fracassos de la historia de los pueblos y de la propia vida, justamente en el momento oportuno para relatarlos, nos quedamos sin lucidez, sin material.
(…)
Pero solamente voy a contar, voy a escribir, sobre mis exilios.
Siempre fueron provocados por la misma razón: el hambre, la persecución, el abandono, el frío, el horror, los miedos y las culpas, todo eso me llevó a ser un permanente errabundo, buscando un lugar donde pueda o me permitan vivir.
A buscar mi lugar (31)

Em El otro exilio, o silêncio é rompido por aquele que durante sua vida perdeu, por diversas vezes, a voz. Os medos eram enfrentados, por Gregório, com o mutismo.  Escrever sobre seu passado parece representar, portanto, a possibilidade de romper os exílios da linguagem. Registrar sua história permite-lhe demarcar não apenas o seu lugar de pertencimento como também o lugar daqueles que lhe foram caros: sua irmã, seu pai, sua mãe, a prostituta Margô, Leon e tantos outros judeus que encontrou pelos espaços geográficos em que vivenciou os seus exílios. Ao experimentar novamente os fatos do passado, Gregório liberta-se das culpas que regeram suas escolhas, para tanto, faz-se necessário: lembrar, compreender e perdoar.
 
Gregório/Ghershn/Ghershon: a difícil tarefa de recordar/perdoar

O adulto que rememora reconstrói a imagem de si e daqueles que o cercaram. Representa a si e aos seus pares, portanto, com a subjetividade e a capacidade de reflexão do jornalista aposentado, responsável por noticiar diversas guerras ao longo de sua profissão. Aos 75 anos, sente-se pronto a narrar sua própria história: a guerra que obrigou sua família a fugir da Polônia; a relação familiar; as ditaduras vivenciadas na América do Sul; seus amores; filhos e os diferentes exílios (voluntários ou não) pelos quais passou.  Trata-se de uma narrativa memorialística, que tenta reencontrar a realidade que não existe mais. Essa busca pela verdade vai ser representada a partir da subjetividade daquele que se prontifica a rememorar. Compagnon afirma que: “a ambição da literatura, fundada na Mimeses, era relatar de maneira cada vez mais autentica a verdadeira experiência dos indivíduos, divisões e conflitos opondo o indivíduo à experiência comum” (Compagnon 105). No final de sua arguição, defende que:

[…], reintroduzir a realidade em literatura é, uma vez mais, sair da lógica binária, violenta, disjuntiva, onde se fecham os literatos – ou a literatura fala do mundo, ou então a literatura fala da literatura-, e voltar ao regime do mais ou menos, da ponderação, do aproximadamente: o fato de a literatura falar de literatura não impede que ela fale também do mundo. Afinal de contas, se o ser humano desenvolveu suas faculdades de linguagem, é para tratar de coisas que não são da ordem da linguagem (Compagnon 123).

Gregório, no processo de recompor seu passado, volta à sua infância na Polônia, ou daquilo que consegue apreender dela. A imagem positiva é preenchida pela lembrança do homem que acendia os faróis. Por meio de uma descrição poética, ele relembra:

“ún tengo esos recuerdos claros, bien guardados, muy frescos en mi memoria, como el de aquel hombre que encendía cada noche los faroles de la calle, con la llama que llevaba en la punta de un palo largo. Siempre lo miraba desde arriba y él me saludaba, yo formaba parte de ese diario ritual” (35).

Esses “recuerdos claros” são compostos por poucas lembranças positivas, talvez por isso Gregório tenha silenciado por tanto tempo: a perseguição, a fuga, as brigas domésticas preenchem a maior parte dos espaços da memória:

Durante mi niñez en Polonia sufríamos un fuerte antisemitismo, además era común escuchar que pronto seríamos invadidos por Alemania. Había personas que negaban un hecho, otras sin embargo callaban, no lo hablaban porque mencionar un hecho así les provocaba pánico, ese fue el caso de mi familia.
Sabíamos de las persecuciones hacia los judíos. En nuestro barrio ya nos habían prohibido cruzar la plaza, la entrada a tiendas donde carteles inmensos decían ni judíos ni perros (33).

Se na rua Gregório era rejeitado, em casa a mesma sensação o acompanhava. De acordo com suas recordações, a irmã Rivke experimentava os carinhos e a atenção paterna, para ele, restava estar junto de sua mãe e acompanhá-la em suas tarefas domésticas. Diante da primeira lembrança, o dia em que fugiram de Varsóvia, é tomado pela dor. O pai providencia os passaportes e a maneira como fugiriam. Teriam que ir separados. Gregório rememora, então, o menino de seis anos que foi deixado pela mãe em uma rua deserta e escura para esperar por um homem que o levaria ao barco:

Permanecí ahí parado sin sentir nada, como perdido en una nube navegando por el cielo. Las manos me sudaban, los pies me temblaban, sentía que me ahogaba. No veía a nadie, nevaba insistentemente, la noche se puso negra y el piso blanco. Detrás de esa cortina gris de desesperanza me encontraba yo, sin color, doliente. Había perdido la noción del tiempo, los minutos no pasaban; en ese momento un hombre muy pequeño cuyo rostro no recuerdo – pero sí su mirada – se aproximó a mí. Tenía los ojos negros, tan profundos que me quemaban como la llama del fogón de nuestra cocina. Tuve miedo, quería correr, escaparme, pero debía obedecer. Además ¿a dónde ir? (41).

No barco, o pequeno menino, ao reencontrar com o pai, não recebe o afeto de que precisava para recuperar a segurança: “(…). Me abracé a sus piernas. Levanté la vista esperando una reacción, un ensayo siquiera de festejo por verme ahí frente a sus ojos. Pero él apenas me preguntó dónde se encontraban mi madre y Rivke” (44). A experiência o deixa totalmente mudo. A falta da voz seria, para ele, um dos exílios que, em outros momentos de tensão, se repetiria em sua vida: “Durante mucho tiempo no pude hablar. Me encontraba totalmente mudo” (45).

Acreditamos, com base na teoria da Análise do Discurso, que o silêncio, embora não fale ele significa. “Essa significância migra de tempos para tempos, de sujeitos para sujeitos” (ORLANDI, Análise de Discurso – Princípios e Procedimentos 44). Ainda de acordo com Eni Orlandi, o silêncio seria “o espaço diferencial que permite à linguagem significar (discretamente). No silêncio, o sentido se faz em movimento, a palavra segue seu curso, o sujeito cumpre a relação de sua identidade (e da sua diferença)” (ORLANDI, As formas de silêncio 161).

Em seu estado de mudez, Gregório poderia interpretar com tranquilidade os conflitos que lhe envolveram. Como uma criança de seis anos poderia explicar o sentimento do abandono, do medo, da solidão? O Gregório que rememora, jornalista responsável por divulgar tantas guerras, sofre as consequências das marcas deixadas por aquela experiência. O menino Gregório, aos seis anos, vai silenciar. Assim como silencia, desta vez de forma consciente, quando a família foge do Paraguai para proteger a irmã: “En ese momento decidi quedarme em silencio. Huir de nuevo, huir. Y huir. No quise seguir hablando. Ir a un nuevo exilio, un exilio voluntario. Sin voz” (p. 88). A terceira vez que perde a voz é por ocasião da morte de seu pai: “Después de varios días, yo seguía igual, no podía hablar, no podía comer. Necesitaba estar solo. No me interesaba nada, solamente recordar. Recordar en silencio, resguardado en mi mudez” (205):

Pensar o silêncio é pensar a solidão do sujeito em face dos sentidos, ou melhor, é pensar a história solitária do sujeito em face dos sentidos. É por aí que se pode fazer intervir as “fissuras” que nos mostram efeitos do silêncio. O Outro está presente mas no discurso, de modo ambíguo (presente e ausente). E os modos de existência (presença) das personagens do discurso são significativas (ORLANDI,Análise de Discurso – Princípios e Procedimentos 50).

O silêncio, portanto, foi a maneira encontrada pelo protagonista-narrador para expressar suas dores, seus medos.  É Gregório quem procura explicar o sentido do silêncio e a dor de recordar:

¿Qué significa tan considerable tendrá para mi existencia esta necesidad de relatar episodios de mi vida que están guardados y que tienen relación con mis exilios y con mis silencios?
¿Por qué sufrir tanto ante la necesidad de contarlos, de escribirlos? ¿Por qué padecer de este aprieto que me brota del pecho, como un impulso incontenible, como una única alternativa de seguir con vida? De otra forma siento como voy hundiéndome en las tinieblas de la desdicha.
Padecer de éste apremio por revivir recuerdos que mantuve guardados y que al traerlos al presente me llevan a sufrirlos de nuevo, me vuelve vulnerable a ellos. Pero a pesar de todo, sigo escribiendo, no puedo parar esta compulsión por contar, aunque me duela, aunque sufra por permanecer en este estado delirante, donde me enfrento con cada palabra que escribo a un nuevo duelo con un adversario conocido, intimo, que termina siendo mi voz, mi alma (113).

Ao escrever, o narrador-protagonista parece enfrentar tudo aquilo que o silêncio guardou. O ciúme da relação de seu pai com a irmã e a sensação constante do abandono são sentidos novamente no momento em que rememora. O desafio desse homem de setenta e cinco anos é o de compreender os fatos que marcaram sua vida e a de sua família, acontecimentos que provocaram em todos o sentimento da culpa:  “Tanto mi padre como mi madre sufrían del mismo mal: de la culpa. De esa culpa que nos dejaron como herencia a Rivke y a mí” (48).

O narrador-protagonista tem consciência de que não é mais a criança abandonada na noite de Varsóvia, nem o adolescente que não encontrava em sua família o lugar seguro e afetuoso que sempre procurou. Ele recorda para compreender o resultado que os exílios causaram em sua vida e o quanto suas decisões estiveram sempre apoiadas neles:

Ahora lo cuento, recién ahora puedo escribir sobre todo lo vivido durante esos años, pero con los ojos de un hombre de setenta y cinco años, que ya intentó por otros medios entender, perdonar ciertos acontecimientos que le produjeron demasiado dolor (…).
Recién ahora, a partir de la necesidad de escribir sobre mí, me estoy reconociendo, reconciliándome conmigo mismo, y aceptando por fin mí triste destino (49).

A temática do exílio, sem dúvida, preenche os sentidos dessa obra. Como tantas outras famílias de judeus que fugiram da primeira e da segunda Guerra Mundial, a família de Gregório representa a angústia daqueles que, na fuga, levam consigo a certeza de que passarão o restante de suas vidas procurando um lugar que possam chamar de casa.
 
Exílios: à procura de um lugar

O primeiro exílio geográfico que a família vivencia é na Argentina:

Cuando llegamos a América había pasado mucho tiempo, tal vez semanas, o meses, eso no lo recuerdo. Antes paramos en varios puertos, pero en ninguno nos permitieron descender.
Una mañana de mucho sol, el barco se detuvo.
– Estamos en la Argentina – dijo mi padre.
Habíamos llegado a un nuevo continente, a una nueva tierra, a una nueva vida. Distinta, lejana, inducidos por el temor al antisemitismo que impulsaba la seguridad de una próxima guerra. Pero a pesar de encontrarnos en un país lejano y aparentemente seguro, nuestro destino seguía siendo incierto (47).

A chegada à Argentina foi marcada pelo encontro com judeus que lhes arrumaram emprego, um lugar para morar em bairros ocupados somente por famílias judias. Imigrantes que procuraram, na identificação com seus pares, assegurar a sua identidade. Na representação do protagonista-narrador, os ghettos formados por esses imigrantes asseguravam o sentimento de pertencimento a alguma coisa e diminua a distância entre o novo lugar e o seu país de origem. Lembrando que identidade, de acordo com Hall, seria “aqueles aspectos de nossas identidades que surgem de nosso “pertencimento” a culturas étnicas, raciais, lingüísticas, religiosas e, acima de tudo, nacionais” (Hall 8). Na prática, a família de Gregório e as demais vão perceber que:

A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia. Ao invés disso, à medida em que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente (Hall 13).

Essa multiplicidade de identidades desenrola, no novo lugar, a resistência dos mais velhos em não querer conhecer a cultura do novo país e a disposição dos mais jovens por se entregar ao lugar que lhes recebeu. Gregório lembra que a irmã Rivke

“fue La primera en dejar de hablar en yiddish y aprender el nuevo idioma. Se compró un cuaderno donde comenzó a escribir en castellano, copiando las letras de los periódicos viejos. (…). Pronto lo habló y escribió fluidamente, como si hubiera nacido en América” (55).

Enquanto isso, a sua mãe manteve-se presa à sua língua e ao convívio apenas entre seus pares: “Sus amigas eran las mujeres del conventillo y entre elas hablaban solamente yiddish. Aprendió a decir un par de palabras en castellano, las necesarias, ninguna más” (55). Conforme nos indicam as palavras de Stuart Hall, Gregório também se dá conta de que a tentativa de preservar a identidade judia foi uma ilusão:

(…). Quizás nunca llegamos a arraigarnos de verdad, esperando siempre un próximo exilio, para sostener la fantasía o el deseo del retorno a nuestro lugar, a Polonia.
Yo sentía que en nosotros seguía guardada aquella ilusión, aquel sueño de recuperar nuestra identidad, nuestro lugar (119).

O novo exílio ocorre quando sua família sente-se segura em Buenos Aires. O pai estava trabalhando, a mãe mais conformada por ter saído de sua terra, Gregório sentia-se seguro com o amigo Leon. Todos são retirados de sua tranquilidade por Rivke. A irmã associou-se a um grupo de revolucionários que lutavam contra o governo ditatorial da Argentina3. Conseguem ser aceitos por um grupo de judeus que vivem em Assunção e partem escondidos para o Paraguai. Diante da necessidade da mudança, a mãe se desespera:

-Sí lo entiendo, pero ya no me interesa, ya no tengo fuerzas para cargar de nuevo un péquele y andar por el mundo errando. Quiero un lugar, quiero una casa, quiero regar a un jardín, quiero plantar flores.
– Ya pronto lo vamos a tener.
– Quiero tener animales, criar un perro.
– Los judíos no tienen perros.
-¿Quién lo dijo?, como lo vamos a tener si siempre estamos huyendo y nunca tenemos suficiente comida ni para nosotros y menos para alimentar a un animal (90).

Na capital paraguaia encontraram judeus que lhe ofereceram o necessário para recomeçar: emprego e uma casa confortável em um dos bairros ocupados pela comunidade judia. A família estava preste a comprar um terreno onde construiriam sua casa, cultivariam jardim e a mãe de Gregório finalmente poderia ter o seu cachorro. O envolvimento de Rivke com grupos revolucionários do Paraguai4, todavia, obriga a todos a fugirem desse país. Voltam a Buenos Aires, onde passam a viver escondidos e em situação de extrema miséria. Ao rememorar esses exílios, o narrador-protagonista procura compreender os motivos de tantos infortúnios vivenciados por sua família. Para ele, a impossibilidade de se estabelecer em um lugar no qual pudessem reconstruir suas vidas era resultado de terem escapado ao holocausto, enquanto quase todos seus parentes e amigos foram assassinados nos campos de concentração:

Irnos, sufrir y seguir sufriendo irremediablemente durante nuestras vidas; era así como debíamos pagar por haber escapado, por habernos ido, alejado, por haber abandonado Polonia, por haber abandonado a nuestros familiares en los crematorios, por la muerte de ellos. Por todo ello seguiríamos condenados a ser víctimas de dolores, de pesares. El habernos salvado del holocausto era una culpa que debíamos pagar, y el castigo era los continuos destierros. Castigos que nos imponíamos a nosotros mismos. Teníamos que sufrir siempre. Tenía que dolernos vivir (119).

A vida de privação que passam a ter em Buenos Aires obriga Gregório a trabalhar para ajudar no orçamento doméstico. De seu salário, ele guarda parte para poder fugir de seus familiares. Desta vez, ele vai se exilar de seus pais, de sua irmã e tudo que os impede de conviver como uma família. Gregório muda-se para os EUA, onde se forma em jornalismo: “Nadie me acompañó a tomar el barco, sencillamente mi madre guardó mi ropa en nuestra antigua valija de cartón, me dio un par de fotografías, unas galletas y una jala que ellame hizo para el viaje (123).

O menino, que por tantas vezes perdeu a voz, encontra na profissão de jornalista uma forma de falar, mas as palavras não são utilizadas para compreender a si, Gregório fala do outro. O senhor, que rememora, observa que, mesmo sem se dar conta, era o desejo de se compreender que o fazia trabalhar com as palavras, que o fazia procurar a palavra certa para expressar a vida:

A partir de ese momento, tras aquella partida, comienza mi búsqueda, la mía propia; la búsqueda por encontrar una cierta lucidez en mis palabras, para no perderme en la mudez, ni en el silencio, para no enterrar mi voz en los miedos. Para buscar mi lugar. Para armar mi propia historia (123).

O trabalho de jornalista o leva para espaços distintos, em todos eles, a angústia de encontrar o lugar ideal está presente. Para redescobrir-se, busca suas origens em Israel, mas lá ele também não identifica “Un lugar al que geográfica, histórica, cultural y religiosamente perteneciera” (171). O lugar que poderia lhe devolver a segurança da identidade cultural, histórica, religiosa e geográfica é buscado finalmente em sua terra Natal, Varsóvia. Mais uma vez, o narrador dá-se conta de que a Varsóvia, de onde fugiu aos seis anos de idade, não se assemelha às suas lembranças:

Seguía buscando mi tierra, mi patria, el lugar donde permanecer, y en esa búsqueda tome la decisión de un nuevo viaje. (…)Varsovia ya no era mi ciudad, ya no me abrazaba, ya nadie estaba para contarme qué pasó con ella durante mi ausencia, entonces mi desolación fue total.
Ya nadie quedaba. No había nada, ni religiosos caminando de prisa con los peiot bailándoles a cada lado del rostro; ni las mujeres con sus pelucas y sus polleras largas, con niños siguiéndolas, ni el olor a pluma quemada. Aquel tampoco era mi lugar, dejó de serlo desde el momento que salí de allí. ¿Dónde estaba mi hogar? ¿a qué lugar pertenecía? ¿Cuál era mi patria? (318-319).

O processo de rememorar possibilita ao narrador Gregório responder a questões que lhe perturbaram ao longo de sua vida. Nem Israel onde pôde encontrar um significativo número de judeus, nem a sua terra natal puderam sanar as marcas do não pertencimento. Qual seria o lugar de Gregório?   O homem de 75 anos parece encontrar no eco de suas indagações, a tranquilidade necessária para perceber que é constituído por uma multiplicidade de “eus”, apesar desse reconhecimento, ainda sente as dores emocionais que marcaram sua trajetória: “Escribir ahora sobre esa etapa de mi vida después de tanto tiempo, acordarme de esos momentos, me produce aún tristeza” (68). Ao reencontrar Ofra, sua primeira esposa e mãe de seu filho Shajar, Gregório demonstra maior maturidade e parece apontar para uma possível resposta para a pergunta “quem sou eu”:

– Fíjate, Ofra en un lugar tan pequeño como este Kibbutz, vivimos juntos personas que llegaron de Sudamérica, Europeos, sabras, del África, hablamos diferentes idiomas, no nos parecemos físicamente; o sea, no pertenecemos a una misma característica física, como sería la de los indígenas, o la piel aceitunada de los indios, o el color de la piel de los habitantes del África. Y de toda esta mezcla ¿Qué saldrá? ¿Dónde esta el punto en común? ¿ ese punto que nos une? ¿entiendes? Se trata de una identidad, no de una raza, sino de un estilo de vida? (185).

“Trata-se de uma identidade, não de uma raça?” No final, Gregório constata que se trata de uma identidade, de um jeito de ser que não é constituído apenas por um referencial identitário. Durante a cobertura da guerra do Biafra, o protagonista resgata uma criança dos escombros. Depois de salvar a vida de Asher, como passa a chamá-lo, leva-o para Paris e lhe adota, passando a ter quatro filhos: um com Ofra; as gêmeas com Nicole e Asher. Gregório faz por Asher o que nenhum adulto fez por ele quando sua família fugiu de Varsóvia. Era apenas um menino de seis anos, deixado na escuridão da rua, o medo o faz urinar em suas próprias causas e a falta de afeto do pai, quando o reencontra no navio, o faz perder a voz. O menino retirado dos escombros passaria pelo mesmo processo de Gregório: aprender nova língua, nova cultura, novo jeito de se relacionar, mas teria o que faltou ao protagonista, a segurança de se sentir amado e cuidado.

É importante ressaltar que a busca do lugar com o qual se identificasse também está presente nos estágios de mudez do narrador-protagonista. As emoções fortes vivenciadas por Gregório resultavam sempre na perda de sua voz: a fuga aos seis anos; a fuga de Assunção na adolescência, a morte de seu pai quando ele estava em Israel. Em sua mudez, ele encontrava segurança. Sozinho, podia reorganizar seu espaço, seus sentimentos. Quando volta de seu primeiro período de mudez, o adolescente Gregório reconhece que a língua constitui um dos grandes responsáveis por sua crise de identidade:

Sentía que podía hablar, que mi voz se escuchaba, pero allí surgía otro problema. Yo no sabía hablar en español. Yo sólo conocía las letras de ese idioma y lo entendía, pero no lo sabía pronunciar. Mi lengua era el yiddish, la lenguadel exilio, ni siquiera cuando vivimos en Varsovia aprendí a hablar polaco, puesto que no hubo tiempo a que fuera a una escuela común (63).

Agora, o homem de 75 anos compreende sua história. Não há culpados, eles não saíram voluntariamente em busca de outro lugar. O holocausto, que exterminou a maior parte de seus parentes, foi o responsável por essa busca do espaço seguro. Foi essa procura pela segurança que lhes desconstituíram enquanto identidade judaica. As mudanças na sua vida e na vida de seus familiares não foram voluntárias, por isso, não há porque alimentar a culpa:

Mi historia se veía complicada, nací en un país de otro continente, me crié en Polonia, con otro idioma, con otro clima, con otro paisaje y en una cultura diferente: la del hambre, del dolor, y del exilio. No emigramos de Polonia voluntariamente, salimos escapando, porque no nos quedaba otra alternativa, porque de otro elegimos Buenos Aires, nos tocó esa ciudad como pudo haber sido cualquier otra (63).

Paul Ricouer5 (2005) afirma que o ato de rememorar implica em compreender e perdoar nossa história. Para o filósofo, ao buscar o passado, encontramos a oportunidade de reviver o luto de forma reflexiva, resultando na reconciliação conosco mesmo. Como resultado, tem-se a libertação da culpa, não há mais o sentimento da dívida.
 
Por fim, a possibilidade de viver sem culpa

Em seu processo memorialístico, Gregório parece responder às indagações que marcaram a sua existência: Qual a sua identidade?; Qual o seu lugar de pertencimento? No encontro consigo mesmo, a partir da possibilidade de refletir sobre sua trajetória, privilégio concedido pela memória, o narrador protagonista procura encontrar a si e aos seus familiares, desvendando-os no emaranhado de imagens que lhe surgiam à mente:

Miles de escenas me pasaban por la mente, los recuerdos bullían en mi memoria, no podía soportar tantas imágenes que no me dejaban descansar, ni podía descifrar de cuándo eran. Figuras humanas, entre ellas la de mi padre, la de Rebeca, y la de una niña pequeña con rizos largos, perdida, llorando por calles de Varsovia (295).

Por fim, sente-se aliviado do sentimento de culpa, não deseja mais procurar pelo seu lugar, porque constata que essa busca sempre foi inútil. Não há uma identidade a definir porque sua identidade é marcada pelo hibridismo: seu lugar está em Varsóvia, em Buenos Aires, em Assunção, em Israel, em Paris e outros lugares por onde vai passar. Sua identidade judaica complementa-se com as formas de ser e viver que apreendeu nos espaços que ocupou e nas línguas que se obrigou a aprender devido às fugas. O senhor Gregório, aos 75 anos, cumpre a tarefa de buscar, em sua própria trajetória de vida, a resposta para suas angústias, culpas, dúvidas. Ao final, após reviver as dores do menino, do adolescente, do jovem e do adulto que um dia foi, sente-se aliviado e pronto para prosseguir:

Me detengo y pienso en la edad que tengo y luego en todo lo que me ha tocado vivir a lo largo de estos años, en todo lo que he sentido, y a pesar de ello sigo luchando contra mi mudez, aquí sentado frente a este ventanal, mirando las hojas de otoño, mirando el cielo, acariciando al gato, cerca de Nicole. Por fin pierdo la lástima hacia mí mismo y me siento a escribir, a seguir relatando sobre mi existencia. Mi recobro de todo, me reconstruyo, nazco de mí mismo y, como la zarza ardiente, broto de las cenizas para seguir con mi trabajo (329).

Ele consegue perdoar a sua história, percebe que nunca foi o culpado e, o mais importante, dá-se conta de que o lugar que tanto procurou está dentro dele, envolto às suas lembranças, às suas crenças, à sua história. Sem culpas, é possível seguir adiante.
 
 
Notas

1 O verbo “curar”, utilizado aqui, dialoga com o texto de Paul Ricoeur, “O perdão pode curar?”, publicado em Esprit, n. 210 (1995), pp. 77-82. Texto de uma conferência proferida no Templo da Estrela, na série “Dieu est-il crédible?”. O título foi-lhe atribuído pelos organizadores. Foi pela primeira vez publicado em português na revista Viragem, n. 21 (1996), pp. 26-29, e republicado in Fernanda HENRIQUES (org.), Paul Ricoeur e a Simbólica do Mal, Porto, Edições Afrontamento, 2005, pp. 35-40.

2 Provavelmente o do ditador Juan Carlos Onganía (1966-1970).

3 http://www.ultimahora.com:804/notas/368739-Correo-Semanal:-La-voz-de-la-inmigracion-judia

4 Provavelmente a obra faz referência à ditadura do general Alfredo Stroessner, que governou o Paraguai de 1954 a 1989.

5 Texto publicado em Esprit, n. 210 (1995), pp. 77-82. Texto de uma conferência proferida no Templo da Estrela, na série “Dieu est-il crédible?”. O título foi-lhe atribuído pelos organizadores. Foi pela primeira vez publicado em português na revista Viragem, n. 21 (1996), pp. 26-29, e republicado in Fernanda HENRIQUES (org.), Paul Ricoeur e a Simbólica do Mal, Porto, Edições Afrontamento, 2005, pp. 35-40.
 
 
Referências

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BRÍTEZ, Blas. “Correo Semanal: La voz de la inmigración judía”. In: UltimaHora .com. (http://www.ultimahora.com:804/notas/368739-Correo-Semanal:-La-voz-de-la-inmigracion-judia). Acesso em 20 de outubro de 2011.

CHARTIER, Roger; CAVALLO, Guglielmo. História da Leitura no Mundo Ocidental 1. São Paulo: Ática, 2002.

CHARTIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao navegador. Trad. Reginaldo de Moraes. São Paulo: Editora UNESP/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 1999.

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HENRIQUES, Fernanda HENRIQUES (org.), Paul Ricoeur e a Simbólica do Mal, Porto, Edições Afrontamento, 2005, pp. 35-40.

LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à internet. Trad. Jovita Maria Gerheim Noronha e Maria Inês Coimbra Guedes. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008.

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RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Tradução: Alain François. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2007.

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VIANA, Maria José Motta. Do sótão à vitrine: memórias de mulheres. Belo Horizonte: editora UFMG, 1993.
 
 

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