Baylor University
…quando o escrito sai com lentidão acaricio a máquina com a mão
direita, como quem passa a mão num cavalo para amansá-lo. Tenho
procurado me consertar desse animismo exagerado, mas não consigo.
Mário de Andrade, Inquérito pra Macaulay
A tese principal deste ensaio é arguir que texto, escrita e tudo o que é ligado com estes termos tem conotações negativas com relação aos poetas modernistas brasileiros mais canônicos da primeira e segunda geração, nomeadamente Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e Jorge de Lima. Acredito, pois, que a negatividade pela qual o texto e a sua materialidade é refletida na poesia modernista brasileira é um traço de coesão típica deste movimento, traço pouco explorado até agora pela crítica, que se tem ocupado mais da oposição dicotômica entre o português escrito e o português falado no Brasil. Acho que esta rejeição pelo “textual” é tema e problema na obra de alguns dos poetas modernistas. Ao me referir à materialidade do texto1 faço referência aos materiais, instrumentos e produtos da escritura na sociedade ocidental. Minha análise mostra que os modernistas conotam negativamente tudo o que é ligado ao textual, aparecendo sempre como prejudicial nos poemas. Neste estudo analiso alguns poemas de Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Carlos Drummond e Jorge de Lima para demonstrar esta hipótese. Minha pesquisa poderia abranger composições poéticas de outros grandes poetas modernistas como Oswald de Andrade e Murilo Mendes, cujos versos partilham também deste traço de coesão que achamos ser a negatividade do texto.
Até agora a crítica concorda que uma das características da poesia modernista brasileira foi a sua oposição ao português paradigmático europeu. A proposta modernista inclui, na apresentação de seus poemas, a linguagem coloquial brasileira e formas linguísticas coloquiais não aceitas pela gramática em vigor nessa altura. Os poetas não somente opunham o português falado no Brasil ao português escrito numa tentativa de conhecimento do país através do registro da fala brasileira na sua poesia, mas também desafiavam às estritas regras da gramática portuguesa imposta desde a antiga metrópole. Esta forma de privilegiar a fala levará muitos modernistas a plasmar de uma forma negativa, consciente ou inconscientemente, tudo o que é ligado com o textual e os materiais da escrita, deixando uma impressão inequívoca do que vou chamar de “textualidade negativa”.
O Brasil das primeiras décadas do século XX estava num claro processo de mudança não só cultural, mas também social e econômica. López Alfonso define o contexto socioeconômico nacional da época da seguinte forma:
Entre el final del siglo XIX y 1922, pero fundamentalmente desde la segunda década de ese siglo XX, acontece un largo e intenso proceso de urbanización e industrialización del país y el cuadro social se enriquece de elementos nuevos y perturbadores: ascensión de una clase media urbana al lado de las primeras concentraciones fabriles considerables, inmigración vertiginosa, euforia desarrollista y otros índices, entre los que no fueron menos importantes la promulgación del Código Civil, que anunciaba la pronta mudanza del cuadro de valores. (53)
Neste ponto talvez não seja errado falar que dentro deste grupo houvesse um subgrupo que escreveu uma poesia que pode ser qualificada de engajada perante os acontecimentos sociais e políticos que aconteceram no Brasil na metade do século XX. Para muitos destes poetas, a poesia era uma via para manifestar os seus princípios religiosos, políticos e nacionalistas. Assim, é conhecida a religiosidade de Jorge de Lima e o socialismo de Drummond. Os poetas modernistas questionam o papel do intelectual na sociedade brasileira da época, o que se liga à brecha entre pessoas letradas e analfabetas que, na ocasião, eram uma grande parte da população brasileira. Esta brecha é problemática para muitos poetas, pois eles tentam se aproximar e conhecer o povo, mas este não tem como se aproximar dos textos. A impossibilidade de mútua aproximação provocará uma tensão em muitos escritos e daí surgirá o que chamo de “textualidade negativa”.
O caso de Mário de Andrade talvez seja o mais ilustrativo dessa impossibilidade de comunicação literária entre o intelectual e o analfabeto ou iletrado. No campo da literatura, Mário de Andrade sempre fez uma forte crítica à filologia brasileira; no ensaio “O movimento modernista”, inserto no seu livro Aspectos da literatura brasileira, acusa aos filólogos de seu país de ter ficado obsoletos e de se preocupar só com o passado: “Preferem a ciencinha de explicar um erro de copista, imaginando uma palavra inexistente no latim vulgar. Os mais avançados vão até aceitar timidamente que iniciar a frase com o pronome oblíquo não é ‘mais’ erro no Brasil” (247). O ensaio, que descreve a gênese e a evolução do modernismo brasileiro, destaca os românticos como precursores das propostas modernistas (250). Andrade critica aqueles poetas que não entenderam, ou que entenderam de forma errada (245), as intenções modernistas de incorporação da língua falada à poesia do Brasil, embora seguissem os padrões assinalados pelos pioneiros do movimento como o próprio Mário ou Manuel Bandeira.
A tese que defendo nestas páginas é que se os modernistas tentam reproduzir a fala e o sotaque do povo brasileiro, a oralidade tem prioridade e conotações positivas porque implica uma aproximação ao português brasileiro falado e, em última instância, à realidade social e linguística do Brasil, ao homem do campo e da rua. O que se vê, pelo contrário, é que a textualidade trará implicações negativas porque aproxima a língua às regras herméticas do português escrito da ex-metrópole que representa um português arcaico e do passado que pouco tem a ver com a realidade social brasileira da primeira metade do século XX. Estes fatos, como argumento, estão representados na poesia modernista brasileira mais canônica através de uma visão negativa dos textos e de seus suportes materiais.
Mário de Andrade rejeita as críticas dos escritores brasileiros que os chamavam de “antinacionalistas, antitradicionalistas europeizados” (Aspectos235), pois como ele próprio disse: “estudávamos a arte tradicional brasileira e sobre ela escrevíamos” (Aspectos 235). Francisco José López Alfonso (49-78) analisa em detalhe a complexa problemática do nacionalismo entre os poetas modernistas, e remeto seu estudo para o leitor mais interessado. Quanto à forma é preciso sublinhar que o verso livre tem prioridade para os modernistas; este vai misturado com a oralidade, com a língua brasileira coloquial, tornando-se uma das características mais reconhecíveis do movimento por sua oposição ao verso parnasiano. Se para os parnasianos o poema deve se converter num objeto, para os modernistas essa materialidade do poema é considerada negativa porque tira do texto a liberdade que tem a palavra falada. López Alfonso afirma que: “Mário de Andrade (…) analiza el parnasianismo en la obra de Francisca Julia, Raimundo Correia, Alberto de Oliveira, Olavo Bilac y Vicente Carvalho, a los que acepta como maestros, cierto, pero como maestros del pasado, como difuntos, poetas de misión cumplida que nada tienen que ofrecer a las nuevas generaciones.” (50)
Em Mário de Andrade acho uma primeira reflexão sobre a escrita em seu poema “Descobrimento” (Poesias 150); nele encontramos o poeta na seguinte condição: “Abancado à escrivaninha em São Paulo/ (…) Com o livro palerma olhando pra mim/ (…) Esse homem é brasileiro que nem eu”. A escrita neste poema é apresentada como um fenômeno que afasta o escritor da realidade do país; acho interessante refletir sobre a personificação no verso “o livro palerma olhando pra mim” onde a ação de olhar é trocada, pois é feita pelo livro e não pela voz poética que parece tornar-se um objeto passivo frente ao livro, ou seja, o poeta parece ficar reificado frente ao texto. O adjetivo “palerma”, só usado dentro do mundo lusófono no Brasil, indica certo desprezo pelo livro e, portanto, pelo texto.
O português brasileiro falado aparece neste poema em diversas expressões: “pra”, “que nem eu”, e permite estabelecer um contraste entre oralidade e escritura. Assim, o leitor encontra uma oposição entre o escritor e o seringueiro que apanha a borracha “lá no norte”. Neste poema o poeta reflete, em seu escritório, sobre a sua condição de escritor em contraste com o homem rústico do norte que é tão brasileiro como ele. Os modernistas tentaram criar uma visão de igualdade entre todos os brasileiros, e é com esse propósito que, no poema em questão, Mário de Andrade tira importância da escrita e do conteúdo dos livros, daí o adjetivo “palerma”. Se o livro olha “para mim”, sujeito e objeto são trocados, o escritor passa a ser só um objeto que o livro olha: a textualidade, pois, anula o sujeito. O livro incorpora o seringueiro como um elemento exótico ou um tema para estudo, e o escritor, nessa tentativa de igualdade entre os brasileiros, como propunham os modernistas, afasta-se do ato de escritura e fica também reificado, negando o fato de ser ele quem escreve e, por isso, reifica aqueles elementos, pessoas com uma forte idiossincrasia brasileira. Ou seja, Mário de Andrade está ciente de que escrever sobre a sociedade brasileira é reificar a sua cultura e, portanto, a própria sociedade. O problema é grave pois a única ferramenta do poeta é a palavra, a escrita: desta tensão entre escritor e texto surge uma negatividade associada ao textual. Neste sentido, pensemos apenas na quantidade de cultura popular que há em Macunaíma e na dívida de Andrade e do resto dos poetas modernistas com a cultura popular do Brasil. É preciso reconhecer a importância das análises que Mário de Andrade fez sobre a música popular brasileira, embora seu nacionalismo ao tratar do folclore seja exagerado às vezes; claro exemplo de seu interesse pelo tópico é o seu Ensaio sobre a música brasileira, onde fala da multiculturalidade da música brasileira.
Pode-se dizer que em outro poema andraniano, “Ode ao burguês” (Poesias 37-39), há uma composição paradoxal, pois o eu-lírico rejeita os gostos culturais burgueses para louvar o popular, embora o próprio Mário pertencesse à burguesia. Aparece aqui mais uma vez a tensão entre a sua escrita e a sua posição social que vai acompanhá-lo durante toda a sua obra. Esta atitude paradoxal de Andrade poder-se-ia explicar com as palavras de Roberto da Matta quando afirma que “as relações pessoais e as regras impessoais que regem o liberalismo brasileiro correm lado a lado e em esferas sociais mutuamente exclusivas, embora complementares” (135). Assim, Mário de Andrade critica o sistema desde seu status privilegiado de intelectual que o situa como parte ativa desse sistema. As contundentes palavras de Michel de Certeau rompem este paradoxo quando afirma que: “Essas vozes [dos homens rústicos] não se fazem mais ouvir, a não ser dentro dos sistemas escriturísticos onde reaparecem. Elas circulam, bailando e passando, no campo do outro” (201). Esse ‘outro’ é o romancista, o poeta, o cronista, o advogado; não há outra saída possível para manter as vozes dos camponeses brasileiros senão textualizá-las, e os modernistas brasileiros não souberam apresentar alternativas para essa quase forçada representação da voz da massa rural através do texto. A tentativa dos poetas modernistas de se aproximar do povo brasileiro é questionada nos textos de Andrade constantemente, talvez até de maneira inconsciente.
Outro poema importante de Mário de Andrade onde a negatividade da materialidade do texto é refletida é “Acalanto do Seringueiro” (Poesias 150-53) que, junto com “Descobrimento”, conforma os “Dois poemas acreanos”. O acalanto é uma espécie de arrulho, de canção de ninar e, estando presente logo no título, põe-nos em contato direto com a oralidade: “Quero cantar e não posso,/ Quero sentir e não sinto/ A palavra brasileira/ Que faça você dormir” (vv.7-10). É interessante refletir no fato de que a “palavra brasileira”, que tem conotações positivas, refere-se à palavra falada, não à escrita. Privilegia-se a oralidade que vai estar carregada de positividade porque é a fala do povo. A escritura e o textual, pelo contrário, representam uma aptidão negativa nos versos de Andrade. O português brasileiro falado tem uma forte presença no poema: “que nem eu”, “Fomos nós dois que botamos/ Pra fora Pedro II…”, etc. Desde o verso 47 até o 61, o sujeito é a primeira pessoa do plural para expressar um sentido de união e de igualdade entre os brasileiros, mas também se poderia falar aqui de uma apropriação da voz dos iletrados por parte de Mário de Andrade. E aí, cabe a indagação: tem o poeta o direito para falar pelo povo em sua posição social burguesa?
A partir do verso 62, encontramos uma mudança de sujeito para a primeira pessoa do singular, e o tom começa a ser negativo justamente quando se inicia uma série de versos onde o tema ligado à materialidade do texto prevalece:
Seringueiro, eu não sei nada!
E no entanto estou rodeado
Dum despotismo de livros,
Estes mumbavas que vivem
Chupitando vagarentos
O meu dinheiro o meu sangue
E não dão gosto de amor…
Me sinto bem solitário
No mutirão de sabença
Da minha casa, amolado
Por tantos livros geniais,
“Sagrados” como se diz…
E não sinto os meus patrícios!
E não sinto os meus gaúchos! (vv. 62-75)
Estes versos manifestam que as ideias ligadas aos livros são negativas; o escritor reconhece: “não sei nada” (v.62), embora esteja rodeado de livros, de um “despotismo de livros” (v.64), o que implica que estes exercem uma influência autoritária ou que há um abuso de autoridade deles. A voz poética os qualifica ainda de “mumbavas”, parasitas que chupitam e não contribuem com nada positivo, além de que “não dão gosto de amor” (v.68). A impressão é que o escritor está cercado, isolado com os livros e pelos livros, uma crítica ao próprio eu que parece morar numa torre de marfim, desligado do acontecer do mundo, uma autocrítica de Andrade.
O verso “No mutirão de sabença” (v.70) merece uma análise mais detalhada. Tanto “mutirão” quanto “sabença” são vocábulos típicos do português brasileiro falado, e corresponderiam, respectivamente, segundo o Pequeno dicionário brasileiro da língua portuguesa (PDBLP em diante), a “muxirão” e “sabedoria” no português padrão. O significado de mutirão é “auxílio gratuito que se prestam os lavradores, reunindo-se todos os da redondeza e realizando o trabalho em proveito de um só que é o gratificado, mas que nesse dia faz os gastos de uma festa ou função” (PDBLP 836). Desde esta perspectiva os seringueiros, os gaúchos, os sertanejos, etc., aportam essa “sabença” ao escritor, ajudando-o a escrever seus livros pois eles são tema e problema, mas o escritor não contribui em nada para eles. Acho que uma pergunta fundamental que nós, como leitores, podemos fazer e que, provavelmente, o próprio Mário de Andrade se fez é: como contribui a poesia à sociedade, ao seringueiro, ao camponês, ao homem iletrado em definitiva? Acredito que nesta difícil resposta subjaz a tensão da poesia de Andrade entre a sua atividade de intelectual e a realidade do Brasil mais rural, que fica longe e alheia do fato literário no qual o autor está imerso. Há no poema uma alusão implícita ao escritor como explorador, no duplo significado da palavra, dos seringueiros.
Em “Acalanto do seringueiro” há um paralelismo entre o livro como “mumbava”, e o escritor como parasita, além de fortes referências à palidez do seringueiro: “Pálido, Nossa Senhora!/ Parece que nem tem sangue” (vv.35-36). Enquanto os seringueiros compartilham com o escritor a sua cultura, sendo matéria-prima da obra e de seus versos, o escritor fica isolado com seus livros sem compartilhar nada com os seringueiros: “E não sinto os meus patrícios!/ E não sinto os meus gaúchos!” (vv.74-75). Parece que os livros neste caso submetem o escritor a um processo de aculturação2: e os versos desenham o poeta trancado na torre de marfim, longe da realidade social do país.
O historiador francês Roger Chartier afirma que: “aculturación significa, en general, la destrucción de un antiguo sistema de representaciones y prácticas a partir de un nuevo sistema impuesto por una autoridad, cualquiera que sea” (159). Mário de Andrade é consciente de que esse novo sistema imposto pela autoridade no mundo moderno é a escrita, os livros, o “despotismo de livros”, e a cultura escrita, que não é, por sua vez, acessível para a maioria da população da época3. Este despotismo é uma nova forma de controle do discurso elitizado num processo de aculturação da qual ele, como escritor, é sujeito ativo. Os livros parecem querer exprimir o poeta, impedem o conhecimento de primeira mão da cultura: “Tenho que ver por tabela/ sentir pelo que me contam” (vv.20-21). Livros e escritor, assim, carregam-se de conotações negativas na poesia de Andrade, em que os textos aculturam e o escritor é aculturador e aculturado no sentido de que escreve para uma minoria sobre uma cultura que, embora seja a sua, não participa nem dela nem nela. Andrade conheceu a fundo a realidade do seu país pelas viagens que fez, mas perto do fim da sua vida reconhece que: “chego no declínio da vida à convicção de que faltou humanidade em mim. Meu aristocratismo me puniu. Minhas intenções me enganaram. Vítima do meu individualismo, procuro em vão nas minhas obras, e também nas de muitos companheiros, uma paixão mais temporânea, uma dor mais viril da vida. Não há.” (Aspectos 252)
Para continuar com estas textualidades negativas na poesia brasileira cabe comentar dois dos mais conhecidos poemas de outro escritor modernista visto como o mais representativo e provavelmente como o maior expoente deste movimento: Manuel Bandeira. Pode-se afirmar que um dos temas principais da poesia de este poeta pernambucano é o da cotidianidade e, por isso, a voz poética é a do eu, uma primeira pessoa testemunha do acontecer diário.
Com a intenção de ilustrar estes pontos, passo à análise de “Poética” (Antologia 70-71). Aí a diversidade de textos que aparece é imensa (livro de ponto, expediente, protocolo, dicionário, etc.), e cada um deles tem conotações negativas. Neste poema, onde o tom de raiva e insatisfação é evidente, Manuel Bandeira explica qual é o lirismo que ele não quer. Em geral, se poderia dizer que o rejeitado é o lirismo “livresco”, excessivamente carregado, que o leva a uma forte crítica ao lirismo quase burocrático, filológico, rançoso dos séculos passados. “Abaixo os puristas” soa como um lema quase revolucionário: o lirismo precisa libertar-se de este lastro que impede a inovação que propõe o português brasileiro falado. Os materiais textuais que aparecem no poema acentuam a ideia de que este lirismo não é criativo, pois é quase funcional, “Político/ Raquítico/ Sifilítico”, ou seja, Bandeira fala de um lirismo doente e, se pensamos na sífilis propriamente, contagiante. A temática da doença, devido à tuberculose que o poeta padeceu por quase toda sua vida, é uma constante em muitos de seus poemas, e aqui parece ter contagiado a poesia. Para esta doença “lírica”, ele propõe como remédio “sobretudo os barbarismos universais/ Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção/ Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis” (vv. 6-9), ou seja, tudo o que não estiver ajustado às regras impostas pelas instituições culturais, pelas regras da escrita da gramática portuguesa, pelo que é considerado padrão. Nessa perspectiva, falar de “livro de ponto”, “expediente”, “protocolo”, “dicionário”, é falar de textos fechados, inflexíveis, que seguem regras imutáveis que são cópias de cópias onde a criatividade não tem cabimento. Esta ideia é reforçada pela quarta estrofe onde encontramos:
De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário do aman-
te exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes
maneiras de agradar às mulheres etc. (vv. 15-18)
A oposição entre oralidade e escritura está desenvolvida ao longo de todo o poema com simplicidade expressiva, mas nesta última estrofe faz-se mais evidente; nela, Bandeira critica que a poesia seja elaborada em formas como se fosse “contabilidade tabela de co-senos”; Bandeira está, pois, sugerindo que a poesia não pode ser feita como a matemática, isto é, há um componente de criatividade que tem que ser tomado em consideração e que os “puristas” – os parnasianos –, não o têm feito até agora. Precisamente com “os cem modelos de cartas” refere-se mais uma vez aos modelos pré-estabelecidos que precisam ser rompidos, o poeta precisa desligar-se das formas impostas. Os modelos de cartas, embora haja cem, não são úteis porque são modelos; de novo a “carta”, a “contabilidade”, “a tabela de cosenos” como materiais textuais que se apresentam no poema com conotações negativas. O último verso “Não quero mais saber do lirismo que não é libertação” (v.20) retoma a ideia, já assinalada na segunda estrofe, de que só “os barbarismos universais”, “as sintaxes de exceção” e “os ritmos inumeráveis” podem libertar a poesia dessa textualidade inflexível que a tem subjugado e tirado a sua liberdade. Bandeira encontra essa liberdade e criatividade na oralidade, em “O lirismo dos bêbedos/ O lirismo difícil e pungente dos bêbedos/ O lirismo dos clowns de Shakespeare” (vv. 17-19), ou seja, nos versos brancos, sem rima.
Outro poema que é de interesse para apoio da presente tese é “Evocação do Recife” (Antologia 76-79) de Manuel Bandeira. O poema começa falando do Recife que o eu-lírico não quer, sendo um verso significativo: “Mas o Recife sem história nem literatura” (v.7) Há aqui uma contradição que julgo interessante que poder-se-ia aplicar a muitos poemas: se o escritor quer um Recife sem literatura por que é que ele está escrevendo sobre Recife? diz uma coisa e faz outra? enganou-o a escrita? Da mesma forma que a tensão surgiu em Andrade, surge agora em Bandeira, eles não podem escapar do ofício da escrita, do ofício burguês de serem escritores. Bandeira quer um Recife sem escrita, mas então, insisto, por que está escrevendo? Mais uma vez uma textualidade negativa. Outra estrofe de importância é:
A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros
Vinha da boca do povo na língua errada do povo
Língua certa do povo
Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil
Ao passo que nós
O que fazemos
É macaquear
A sintaxe lusíada (vv.61-68)
Encontro nestes versos um elogio ao português brasileiro falado e uma forte crítica ao português escrito e à materialidade do texto. Com “a vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros” (v. 61), reproduz-se a ideia de que a vida, o acontecer diário, a realidade da rua não pode ser estampada nas folhas. Os últimos versos descrevem limpidamente a poesia brasileira como uma ridícula imitação das regras da sintaxe do português.
A negatividade do texto aparece também em outro importante poeta do modernismo brasileiro: Carlos Drummond de Andrade. Ele usa em “Elegia 1938” a segunda pessoa do singular, assim o leitor tem a impressão de que o poeta está olhando para ele próprio no espelho, falando para si ou refletindo num estilo autorreferencial, mas antes disso, trata-se de um estilo que estabelece um diálogo direto com o leitor. Drummond também participa desta ideia da negatividade do textual. Em “Elegia 1938” (Antologia 116), há alguns versos sugestivos como “À noite, se neblina, abrem guarda-chuvas de bronze/ ou se recolhem em volumes de sinistras bibliotecas” (vv.7-8). Os “guarda-chuvas de bronze” aí fazem referência às estátuas de heróis antigos, mas o que desperta o interesse do leitor é o fato de que eles “se recolhem em volumes de sinistras bibliotecas”(v 8). O tom numa elegia nunca pode ser alegre, mas triste, por isso os campos lexicais do poema fazem contínua analogia à morte; Drummond parece sugerir que a história desumaniza, pois reduz o humano a um objeto de bronze, de papel. O fato de ele falar da biblioteca põe-nos em contato direto com livros, arquivos, etc. Se as bibliotecas são sinistras, mais uma vez, as conotações das ideias ligadas à materialidade do texto carregam-se de negatividade: agora aqueles lugares que contêm livros e textos são sinistros. Alguns versos depois, Drummond afirma que “A literatura estragou tuas melhores horas de amor” (v.15): o literário é, em suma, desfavorável para a vida.
Em outro poema de Drummond, “A flor e a náusea” (Antologia 19-21), a textualidade adquire um tratamento especial, quase hermético: “Sob a pele das palavras há cifras e códigos” (v.12), a humanização das palavras as converte em entes ainda mais complexos, quase hieróglifos indecifráveis, daí o hermetismo do poema. A crítica presente é contra o jornalismo: “Nenhuma carta escrita nem recebida./ Todos os homens voltam para a casa./ Estão menos livres mas levam os jornais/ e soletram o mundo, sabendo que o perdem.” (vv. 18-21) É interessante o fato de que estes homens parecem ter dificuldades para ler e provavelmente para escrever, e é a leitura que os põe, nos põe em contato com o texto; o fato de não receber nem escrever carta tem sentido e, assumindo esta perspectiva, poderia ser indício de que eles são iletrados pois “soletram o mundo, sabendo que o perdem”. Este soletrar indica uma alfabetização incipiente, falta de liberdade indiretamente ligada ao jornal, cuja textualidade reflete o mundo que perdem. Drummond refere-se com “Os ferozes padeiros do mal/ Os ferozes leiteiros do mal” (vv.27-28) aos jornalistas; eles são os que criam as notícias, o mundo logo nas primeiras horas do raiar do dia. Mais uma vez o ofício ligado à textualidade aparece como pejorativo. Neste espaço de negatividade, o único elemento que está fora do campo de ação do texto é a flor, “seu nome não está nos livros” (v. 42), o que a faz excepcional, deixando-a livre e incorrupta de contato com a textualidade.
Em “Procura da poesia” (Antologia 186-87), as referências à materialidade do texto são também explícitas, logo só me deterei em alguns versos significativos. Este poema fala sobre qual deve ser o processo de elaboração da poesia; o tema é, portanto, a elaboração material de um poema. À metade da composição encontramos:
Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
Convive com teus poemas, antes de escrevê-los. (vv. 33-38)
O campo semântico da escrita é claro. As duas ideias principais são que o poema tem que ser encontrado, achado, e que a poesia é prévia à escritura, pois “Lá estão os poemas que esperam ser escritos” (v.34). Materializar o poema num texto não é necessário: “Convive com teus poemas, antes de escrevê-los”. A poesia é parte da vida, e a escrita é só uma materialização dela, talvez desnecessária. Também o fato de contemplar as palavras (v.48) sugere que elas são objetos materiais que podem ser olhados desde distintas perspectivas.
Por último, em “Poema de qualquer virgem” (Poesias 70-71), de Jorge de Lima, a materialidade do texto adquire certa originalidade por causa dos materiais de escritura usados. Embora possa ser contraditório se pensarmos nas crenças religiosas do autor – estou ciente de que ele sempre se definiu como um católico convencido–, a impressão é que o poeta parodia nesta composição o discurso bíblico e religioso, tornado-se em uma espécie de profeta. O poema descreve uma virgem tatuada, é, pois, um texto sobre um texto em que o suporte material é o corpo humano: o corpo da virgem. A tatuagem é uma antiquíssima forma de plasmar desenhos, provavelmente anterior à escrita. Jorge de Lima escreve de um jeito quase profético em “Vamos ler a virgem, vamos conhecer o futuro: reparai que/ não são/ enfeites, ó homens de vista curta. Olhai: são tatuagens/ dentro/ de tatuagens, são gerações saindo de gerações” (vv. 7-9). O corpo da virgem não é só o material sobre o qual se desenha, mas também sobre o qual se escreve, há “letras simbólicas até o ômega” (v.14), na pele dela há um texto escrito que lemos através do que o poeta fala e que nos lembra a sentença bíblica “No princípio, era o Verbo” (São João, cap.1, 1-5). Pouco a pouco o discurso bíblico torna-se um discurso circense, a virgem tatuada aparece como uma variante da “mulher tatuada” que foi uma atração de circo durante todo o século XIX, ou seja, um fenômeno. O “fenômeno” era uma pessoa ou objeto que tinha alguma coisa anormal ou extraordinária. A voz poética enfatiza continuamente que o corpo da virgem está cheio de tatuagens, que aparecem como uma escrita sagrada, divina: “Quem tatuou a virgem? Foi Deus no dia da Queda” (v.10). Através da escrita a mulher fica reificada: “as representações incríveis estão no dorso da virgem, no pescoço, na face” (v.20). Neste processo de reificação, a mulher é suporte material da escrita, torna-se um produto de compra e venda, um objeto para contemplar e admirar, embora, paradoxalmente, a escrita sobre o corpo dela seja divina: “Vamos ver a virgem, a virgem tatuada, a virgem tatuada/ por Deus” (vv. 26-27).
A voz poética se direciona a um público potencial, conhecemos isto por causa dos imperativos: “reparai”, “olhai”, “vêde” (repetido quatro vezes), “vinde” (repetido quatro vezes), etc. As mulheres tatuadas sempre foram mais interessantes para o público masculino, que tinha uma desculpa perfeita para olhá-las abertamente, olhavam as partes do corpo tatuadas, apreciação que seria impossível de outra maneira na época. As mulheres tatuadas foram os fenômenos mais bem pagos destes espetáculos. O título, “Poema de qualquer virgem” não fala da virgem concreta e tatuada que apresenta o poema, senão a que prioriza o fato da virgindade: a palavra virgem repete-se quatorze vezes no poema. Embora o texto assinala que “não pagareis nada” (v.24), acho que isso é uma outra forma de publicidade, de atrair o público masculino. Através da escrita, a mulher se torna em prostituta: paga-se para olhar uma virgem tatuada, ou seja, uma virgem com escrita sobre a pele, escrita que a transforma em numa ‘virgem caída’. Novamente uma textualidade com conotações negativas.
O dito até aqui mostra como, na poesia modernista brasileira, tanto a materialidade do texto quanto o contato com os materiais escriturários aparecem desenhados pelos poetas com conotações negativas. Como assinalei no início, os poetas modernistas privilegiam, paradoxalmente escrevendo, o português falado e coloquial, e rejeitam as regras da gramática portuguesa que tão forte peso teve até a aparição do movimento modernista na primeira metade do século XX. Uma preocupação central dos modernistas foi, e provavelmente ainda hoje o seja, reproduzir a fala coloquial do Brasil: difícil tarefa. Essa tentativa frustrada teve repercussões de negatividade na plasmação da materialidade do texto, refletida em “textualidades negativas”, o que considero como um novo traço de coesão na poesia modernista brasileira.
Notas
1 Para uma panorâmica geral dos estudos em materialidade do texto remeto aos trabalhos de D. F. McKenzie e Thomas G. Tanselle. Além disso, a relação entre materialidade do texto e literatura tem sido estudada por Jesús Camarero Arribas em Metaliteratura: Estructuras formales literarias, trabalho extremamente sugestivo. A pesquisa de Camarero é de importância para teorizar sobre materiais textuais e estabelecer um diálogo entre escritura e literatura, cujas relações são aprofundadas neste livro desde uma perspectiva metaliterária; nessa linha de pesquisa, Camarero afirma que: “concebimos metaliteratura como una literatura de la literatura, en la que el texto se refiere, además de otras cosas, al mismo texto, una literatura que se construye en el proceso mismo de la escritura y con los materiales de la propia escritura, un conjunto de maniobras metatextuales que quedan incorporadas al texto como un elemento más del sistema de delación programada de la obra literaria.” (10)
2 Remeto aos trabalhos de Ángel Rama e Flávio Aguiar para o leitor interessado nos conceitos de aculturação e transculturação. Sobre as origens do termo transculturaçãoé de interesse o trabalho de Fernando Ortiz.
3 Segundo o estudo Alfabetização por raça e sexo no Brasil: Evolução no período 1940-2000. Na página15 deste estudo encontramos que a taxa de alfabetização no Brasil em 1940 era de 41.12 % para os homens, e 32.79% para as mulheres, o que oferece um dado total de 36.9% de população alfabetizada. Os dados manifestam que o poder burocrático e político estava em mãos de uma minoria branca.
Referências
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_____. Vida literária. São Paulo: HUCITEC, 1993.
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