REFLEXIVIDADE NARRATIVA COMO PRÁTICA EM RELATO DE UM CERTO ORIENTE, DE MILTON HATOUM

Renato Cabral Rezende
Universidade de Brasília
 
 
Reflexividade narrativa: procedimento fulcral do Relato…

Este trabalho tem por objetivo promover uma leitura da obra Relato de um certo oriente (doravante Relato…), de Milton Hatoum, valendo-se dos conceitos deprática e prática comunicativa com o intuito de trabalhar, pelo ângulo da linguística antropológica e da linguística textual, uma noção cara aos estudos literários, a noção de reflexividade narrativa. Nosso foco consistirá em argumentar que a narradora-personagem do Relato… demonstra possuir um conhecimento de natureza prática sobre a língua(gem). Esse conhecimento se revela não somente nas reflexões que ela tece a seu irmão acerca de seu processo de escritura, mas na forma como ela reflete sobre suas interações comunicativas e como estes processos interacionais revelam uma influência sobre sua reflexão acerca da escrita da obra.Relato de um certo oriente tem como argumento narrativo o retorno da narradora-personagem ao Amazonas, “depois de tanto tempo no sul” (Hatoum 30), no intuito de “reencontrar Emilie” (12), matriarca de uma família de comerciantes libaneses radicados no coração da Amazônia, e, por meio de Emilie, tomar conhecimento de fatos e episódios do passado desse clã. Filha adotiva dessa família (ela e o irmão, cujos nomes não são revelados aos leitores), seu intuito é aprofundar sua percepção da importância do clã para a constituição e consolidação da identidade individual e social sua e do irmão.

Pode-se afirmar que a obra é integrada ao que a crítica literária contemporânea compreende como um deslocamento (Carneiro 19) característico das produções literárias da década de oitenta do século XX. Do ponto de vista temático e formal, esse deslocamento seria um deslocamento “dos grandes projetos” para os “projetos particulares, formulados numa perspectiva menos pretensiosa”, em que o cidadão comum está menos interessado em combater a realidade do que tentando uma “convivência possível” com seu próprio presente (20).

Com efeito, o Relato… constitui-se como um projeto pessoal de uma filha adotiva de reconstruir um passado restrito à intimidade de uma família comum de imigrantes e revelá-lo ao irmão. São as curiosidades, expectativas, agruras e dores íntimas de alguns indivíduos que estão no centro de observação da narradora. Muitos fatos concernentes à história da família, aparentemente desarticulados pelo efeito do tempo, irão constituir os núcleos narrativos da “carta que seria a compilação abreviada de uma vida” (Hatoum 166) que a narradora enviará ao irmão (que se encontra em Barcelona): a obra que nós leitores lemos.

Para conhecer todas as histórias de que precisa, não basta à narradora lançar de sua memória. Também recorre à de terceiros, que ela encontra durante sua estadia em Manaus. Hakim (seu tio) e Hindié Conceição (amiga de Emilie), mais precisamente. Principalmente por meio de Hakim é que a narradora tem acesso a narrativas, de fatos vividos por ele ou dos quais ele lembra: vivências de outras personagens que integram a memória coletiva da família-núcleo da obra. A obra é composta por oito capítulos, sendo que há cinco personagens que narram – embora, a narração final seja atribuída a uma só personagem, essa que se denomina aqui “narradora-personagem”.

Caracteriza o Relato… o cronotopo do encontro (Bakhtin 89). Salvo os capítulos em que a narradora interpela diretamente seu irmão (capítulos primeiro, sexto e oitavo da obra), que está em Barcelona, cada capítulo é o encontro entre dois personagens que conversam e compartilham memórias; ou ainda, há capítulos constituídos pela lembrança que um personagem tem de um encontro seu com um terceiro personagem, no passado. Estes são de responsabilidade de um(a) narrador(a) que não necessariamente está in praesentia. São exemplos disso os capítulos terceiro, quarto e quinto da obra. Neles a narração aflora no texto, na verdade, em função da memória de um terceiro que, no passado mais distante, lembra para alguém que, por sua vez, rememora tudo isso e reconta-o a seu interlocutor.

A obra configura um fluxo de “memórias-que-puxam-memórias”, tendo em tio Hakim o personagem que ativa o principal “gatilho” desse fluxo de vozes que invocam outras, mas que é controlado por essa narradora-irmã-missivista na/para a composição da arquitetura textual global da obra. Assim, para tratar da relação entre conhecimento prático sobre a linguagem e escrita do Relato…, é preciso atentar primeiramente para a reflexividade manifesta pela narradora acerca da construção narrativa como um todo e, mais especificamente, da própria ação de escrever seu texto.

O momento alto dessa reflexividade (acerca da estruturação da obra e de sua própria escrita) se faz notório no capítulo oitavo do livro. Veja-se abaixo o fragmento em que a narradora revela ao irmão todo o processo da tessitura final de seu trabalho. Entra em questão aí uma reflexão metadiscursiva sobre o escrever como uma atividade de cunho controlado. Embora longo, o excerto a seguir é necessário para a compreensão dessa reflexividade narrativa. São os parágrafos finais da obra:

Excerto 1 (Hatoum 165)
Não esqueci o meu caderno de diário, e, na última hora, decidi trazer o gravador, as fitas e todas as tuas cartas. Na última, ao saber que vinha a Manaus, pedias para que eu anotasse tudo o que fosse possível: “Se algo inusitado acontecer por lá, disseque todos os dados, como faria um bom repórter, um estudante de anatomia, ou Stubb, o dissecador de cetáceos”.
O teu presságio me deu trabalho. Gravei várias fitas, enchi de anotações uma dezena de cadernos, mas fui incapaz de ordenar coisa com coisa. Confesso que as tentativas foram inúmeras e todas exaustivas, mas ao final de cada passagem, de cada depoimento, tudo se embaralhava em desconexas constelações de episódios, rumores de todos os cantos, fatos medíocres, datas e dados em abundância. Quando conseguia organizar os episódios em desordem ou encadear vozes, então surgia uma lacuna onde habitavam o esquecimento e a hesitação: um espaço morto que minava a sequência de ideias. E isso me alijava do ofício necessário e talvez imperativo que é o de ordenar o relato, para não deixá-lo suspenso, à deriva, modulado pelo acaso (…).

Observamos no excerto 1 acima a patente preocupação da narradora do Relato… em fazer de sua produção textual uma narrativa articulada, dotada de unidade de sentido, na medida em que a própria narradora prevê obediência a uma sequência básica: gravar, anotar e ordenar [trechos em negrito]. Note-se que, mesmo com o planejamento como elemento fundamental, ela ainda enfrenta um elemento inerente a toda atividade criativa: a contingência (“Quando conseguia organizar os episódios em desordem ou encadear vozes, então surgia uma lacuna onde habitavam o esquecimento e a hesitação” [grifos nossos]). Ela dá prosseguimento à sua reflexão, e finaliza o texto:

Excerto 2 (Hatoum 166)
E isso me alijava do ofício necessário e talvez imperativo que é o de ordenar o relato, para não deixá-lo suspenso, à deriva, modulado pelo acaso (…).
(…) Também me deparei com um outro problema: como transcrever a fala engrolada de uns e o sotaque de outros? Tantas confidências de várias pessoas em tão poucos dias ressoavam como um coral de vozes dispersas. Restava então recorrer à minha própria voz, que planaria como um pássaro gigantesco e frágil sobre as outras vozes (…) tudo o que era audível e visível passou a ser norteado por uma única voz (…)
Era como se eu tentasse sussurrar no teu ouvido a melodia de uma canção sequestrada, e que, pouco a pouco, notas esparsas e frases sincopadas moldavam e modulavam a melodia perdida.

Além disso, observa-se no excerto 2 acima que, para além do “ofício necessário” da organização de fatos e episódios, irrompe o problema de sua condução narrativa, que é também necessária. A busca por uma voz narrativa é a tentativa de melhor harmonizar a comunicação com o irmão. A voz situa-se na transição entre a configuração do mundo narrado e sua refiguração em experiência comunicável, pois é na leitura que, em silêncio, o leitor “ouve” a voz que lhe narrou. É nela que reside a intersecção entre o mundo do texto e o mundo do leitor (Ricoeur 163).

Embora no Relato de um certo oriente a figura do narratário, o irmão da narradora, esteja bem delineada no mundo diegético como o único destinatário do texto final, a carta, nós leitores também podemos assumir com ele a posição de quem acompanha o desenrolar dos fatos e a revelação de segredos sobre a família libanesa. Falta-nos, no entanto, a comunhão íntima com a irmã sobre um passado comum que se esvaiu; não compartimos a dor da distância de Manaus. Falta-nos, enfim, a partilha de uma intimidade de vida (que é feita também de aborrecimento, como se nota na passagem a seguir) que ambos vivenciam nas correspondências que trocam, muito antes da redação da carta a que nós leitores temos acesso. Indaga a irmã ao irmão:

Excerto 3 (Hatoum 163)
Lembro-me de que na última carta quiseste saber quando eu ia deixar a clínica, e “sem querer ser indiscreto” me fizeste várias perguntas, e até brincaste: “Não se trata de uma inquisição epistolar”. Sei que não era uma carta inquisitória, mas a sua curiosidade exorbitante às vezes me assusta, a ponto de me deixar perplexa e desarmada. O que aconteceu comigo enquanto morei na clínica?

O excerto 3 acima contém uma revelação forte e muito importante não apenas para a caracterização da narradora-personagem, mas para a composição da arquitetura do Relato…. Para nós leitores trata-se da revelação de um fato surpreendente. Em nenhum momento do livro cujo cronotopo consiste na interação dela com o irmão (os capítulos primeiro e sexto da obra), seu texto fornece qualquer pista deste fato ou mesmo de sua possível instabilidade emocional. Para o irmão, o tópico da clínica é oportunidade para a retomada de um assunto por ele solicitado (fato pouco escrutinado por ambos, notório no juízo que a irmã faz dele [“sua curiosidade exorbitante”]) e oportunidade para informar-se sobre o estado de saúde da irmã. Já a narradora-personagem, ao trazê-lo à tona, permite-nos conhecer as condições do espaço social onde ela toma uma atitude de ressignificação para com sua interação com o irmão. Não mais somente ela lhe escreve cartas com rememorações de fatos esparsos do passado, ela revela-lhe como se deu sua primeira tentativa, durante sua estadia na clínica, de elaboração de uma grande narrativa sobre o passado, sobre Emilie e a família libanesa que os acolheu. E isso não é trivial no mundo diegético do Relato…

Defendemos que é o tópico da clínica o mote narrativo que abre aos leitores a possibilidade de compreender uma certa inteligibilidade de cunho prático da narradora para elaborar sua primeira tentativa de escrever um grande relato ao irmão. É a partir dele que surge a possibilidade de investigar como, ao fim da obra (no capítulo oitavo) é revelada a percepção da narradora de língua como prática comunicativa, e que será mobilizada na/para a realização de seu texto final – e que, por isso, seria observável em diferentes momentos de sua fatura.

 

Língua como prática social: percepções da narradora do Relato…

Em sua obra Língua como prática social: das relações entre língua, cultura e sociedade a partir de Bourdieu e Bakhtin [2008] o linguista antropólogo William F. Hanks construiu uma visada epistemológica sobre a prática linguística que visa caracterizá-la como atividade comunicativa em que o ator social, no curso da prática, pode, de alguma forma, tematizar as condições enunciativas da comunicação ou mesmo sua própria participação nela. Hanks postula que o olhar do ator sobre a comunicação e sua estrutura deve ser uma visada que integre as ações linguísticas do ator, a própria linguagem enquanto semiose e suas capacidades e limites na/para a realização da ação de produção de sentidos. O autor postula que

Estudar a língua como prática é atentar-se para como pessoas reais (indivíduos e grupos) se engajam na fala, na escrita e em outros meios. É importante, desde o início, enfatizar que prática não é apenas um termo para aquilo que as pessoas fazem, entendido em separado daquilo que elas falam ou pensam que fazem. Ao contrário, uma abordagem da língua a partir da teoria da prática foca precisamente nas relações entre a ação verbal, o sistema linguístico e outros sistemas semióticos, e as ideias de senso comum que os falantes têm sobre a língua e sobre o mundo social do qual ela é parte (Hanks 205) [grifos nossos].

Segundo Hanks, como se observa, as práticas linguísticas não podem ser concebidas em separado da reflexividade dos sujeitos acerca de sua ação durante o curso desta, de forma que a reflexividade não se é meramente uma propriedade do sujeito, mas um procedimento a um só tempo epistêmico e prático: toda ação linguística do sujeito social (e a própria língua enquanto elemento de comunicação) é passível de ser alvo de comentário/avaliação do próprio sujeito; suas ações, em razão do(s) comentário(s) reflexivos, podem ser modificadas pelos sujeitos ao longo de seu curso. As ideias dos sujeitos podem ter papel importante, quiçá decisivo, na definição das práticas linguísticas em que os atores sociais tomam parte.

Tais ideias constituem o que Hanks chama de “dimensão ideológica” da linguagem: são inalienáveis à existência da linguagem enquanto fato social. Elas podem ser “metalinguísticas, ou metadiscursivas, na medida em que se referem diretamente à língua ou ao discurso, servindo para ajustar seu sentido” (Hanks, Language 230). Não importa, afirma Hanks, que tais ideias sejam imprecisas sobretudo quando fazem referência à própria produção textual em que emergem; ainda assim são fatos sociais: “atuam na organização das ações dos próprios sujeitos e de seu entendimento das ações de terceiros” (230).

Nossa leitura é a de que no Relato… esse processo reflexivo de que trata Hanks é um dos elementos de sua construção estética. Como já visto, nos excertos 1 e 2 acima, a narradora do Relato… revela uma reflexividade narrativa de expressão assaz controlada, sobre seu fazer textual: ela reflete sobre a importância da articulação das vozes narrativas sob a sua (“restava então recorrer à minha própria voz”), bem como sobre a construção do enredo de sua narração (“ofício necessário e talvez imperativo de ordenar o relato, para não deixa-lo suspenso, à deriva”).

Vejamos o fragmento a seguir, no qual a narradora personagem fala ao irmão sobre sua estadia em uma clínica de repouso. Coloquemos foco nas explicações (trechos destacados em cinza abaixo) que a irmã fornece do processo de composição do relato e do porquê de não o enviar ao irmão:

Excerto 4 (Hatoum 163)
Em certos momentos da noite, sobretudo nas horas de insônia, arrisquei várias viagens, todas imaginárias: viagens da memória. Às vezes, lia e relia com avidez as tuas cartas, algumas antigas, datadas ainda de Madri, e em muitas linhas tu lamentavas o meu silêncio ou a minha demora para escrever-te. Nessa época, talvez durante a última semana que fiquei naquele lugar, escrevi um relato: não saberia dizer se conto, novela ou fábula, apenas palavras e frases que não buscavam um gênero ou uma forma literária. Eu mesma procurei um tema que norteasse a narrativa, mas cada frase evocava um assunto diferente (…) Pensei em te enviar uma cópia, mas sem saber por que rasguei o original, e fiz do papel picado uma colagem; entre a textura de letras e palavras colei os lenços com bordados abstratos: a mistura do papel com o tecido, das cores com o preto da tinta e com o branco do papel, não me desagradou. O desenho acabado não representa nada, mas quem o observa com atenção pode associá-lo a um rosto informe. Sim, um rosto informe ou estilhaçado, talvez uma busca impossível neste desejo súbito de viajar para Manaus depois de uma longa ausência.

Nos fragmentos em cinza do excerto 4 acima observamos que a narradora reflete sobre o fato de não saber nomear e pôr em circulação um objeto textual que produziu. Note-se que logo ao valer-se do hiperônimo “relato” para nomear seu texto, ela esboça uma explicação para tal, por negação: “Não saberia dizer se conto, romance ou novela”. Em seguida, conclui com uma predicação, também negativa: seu texto eram apenas “frases que não buscavam um gênero ou um forma literária” [grifos nossos]. É também por uma negação que ela externa tampouco possuir uma razão explicativa para não ter enviado o texto ao irmão, “sem saber por que rasguei o original”. Como se observa, todas suas explicações não são de uma ordem de causa-efeito. Antes, o que há nelas é uma inteligibilidade não teleológica, mas contingente, acerca da categorização (mediante o uso de expressões referenciais como “conto”, “novela”, “fábula”, “forma literária”, “narrativa”) de um possível objeto textual, e também acerca de seu processo de produção (pelo uso da predicação de verbos como “escrever”, “colar”, “não me desagradou” [a mistura do papel com tecido]) e circulação (“pensei em enviar uma cópia”).

Não obstante suas características, essa inteligibilidade não é descaracterizada de uma reflexividade. Isto é, há um voltar-se do sujeito sobre sua própria ação de produção textual, que, por sua vez, opera um voltar-se do texto, esse que lemos, sobre ele mesmo, no que seria sua primeira versão. Note-se que mesmo sem um argumento racionalmente convincente do porquê de suas ações (escrever o texto, mas não o nomear; rasgá-lo e colá-lo a pedaços de tecido), a narradora ainda assim consegue voltar-se para sua ação e “explicar” o que realizou. É a reflexividade que é a de um sujeito clivado, interno em uma clínica de repouso, em conflito consigo próprio, que se reconhece numa espécie de “texto-rosto” (“informe ou estilhaçado, talvez uma busca impossível nesse desejo súbito de voltar para Manaus”) por meio de uma visada especular sobre seu próprio trabalho realizado.

Nosso entendimento acerca da reflexividade mostrada como claudicante em destaque no excerto 4 acima, na verdade, não pode passar ao largo das relações sociais cotidianas que a narradora-personagem trava no interior da clínica de repouso. Isto é, a narradora não age (e reflete sobre o que faz) movida tão somente por uma “vontade própria” de escrever para o irmão. Essa reflexividade, embora aparentemente desordenada, parece ser construída a partir das relações sociais e atividades comunicativas por ela vividas naquele espaço. É contextualmente construída, portanto. À amiga Miriam, que a visita durante sua estadia ali, ela responde de forma indireta do porquê de permanecer naquele lugar. Apesar de um pouco longo, o excerto é importante:

Excerto 5 (Hatoum 160, 161 e 162)
         [p. 160] Antes do fim da tarde saía do quarto para observar as mulheres que vinham reverenciar o crepúsculo ou buscar uma trégua ao desamparo e à solidão. Algumas contavam as mesmas histórias, evocando lembranças em voz alta, para que o passado não morresse, e a origem de tudo (de uma vida, de um lugar, de um tempo) fosse resgatada (…) [p. 161] Às vezes recebia a visita de minha amiga [Miriam], para quem contava o meu dia-a-dia, a conversa com os médicos, e os relatórios que escreviam depois de observar meus gestos, meu olhar, as pessoas a quem me dirigia. O minucioso itinerário do meu cotidiano era rigorosamente inventariado. Para me divertir, para distorcer alguma verdade, para tornar a representação algo em suspense, contava sonhos que não tinha sonhado e passagens fictícias da minha vida. (…) 
                   [p. 162] (…) Miriam estranhava o fato de eu não sair dali o quanto antes (…) “O que te atrai para continuares aqui?”, me dizia. Quis responder perguntando o que me atraía lá fora, mas preferi dizer que estava pensando numa viagem [grifos nossos]

Neste fragmento podemos constatar que a clínica é concebida como um espaço propício para as “viagens da memória” e para o exercício de fabulações. Há no excerto 5 acima elementos que nos permitem interpretar que, na clínica, a personagem passa a experienciar determinadas práticas discursivas: ouvir histórias das outras internas; interagir – da forma como o faz – com os médicos. Essa vivência e aprendizado levam a personagem a construir um conhecimento reflexivo sobre a linguagem, conhecimento que é potencializado por sua solidão.

De todo o Relato…, o excerto 5 acima guarda a única evidência de que foi a clínica o lugar onde a narradora-personagem com efeito combinou solidão à vivência de práticas discursivas, sendo que, estas, em especial, “canalizaram” seu poder de fabulação a manifestar-se sob a forma de dois tipos de discurso narrativo. Neste sentido, é possível defender que esse conhecimento reflexivo construído pela narradora-personagem por meio de suas interações dentro da clínica influencia a escrita do texto final ao irmão. E isso não é trivial no mundo ficcional criado no texto da obra. Nota-se no excerto 5 acima que, na clínica, a narradora promove narrações de cunho evocativo, focadas exclusivamente no passado, contra seu fenecimento. Tais narrações são tomadas de um caráter de habitualidade para sua realização na medida em que a ação de contar histórias era repetida todos os dias, sempre ao pôr-do-sol (“Antes do fim da tarde saía do quarto para observar as mulheres que vinham reverenciar o crepúsculo” [p. 160]). Assim, ao constatar que –

Excerto 5 [fragmento]
[p. 160] algumas contavam as mesmas histórias, evocando lembranças em voz alta, para que o passado não morresse, e a origem de tudo (de uma vida, de um lugar, de um tempo) fosse resgatada (…)

– a narradora-personagem não dissocia o lembrar do recontar. Nota-se aqui neste recorte do excerto 5 um reconhecimento notável por parte dela (personagem) do papel do narrar tanto para a constituição da subjetividade daquelas outras internas (narrar histórias ajuda a preservar e a manter viva a história individual de cada uma delas), quanto para, e fundamentalmente, a participação delas em uma determinada prática social: contar histórias, lembrar o passado em voz alta.

Contar repetidamente em voz alta faz vivificar o que já não mais existe, impede sua morte absoluta no esquecimento, em contraste ao o que é a clínica, espaço retratado pela narradora-personagem como de solidão e abandono. Essa franca tensão entre a esfera de produção e circulação (o espaço social da clínica e as relações em seu interior) e o discurso ali produzido não é ignorada pela narradora, mas reconhecida de maneira um tanto prática, isto é, que se constroi na medida em que é experienciado. Narrar em voz alta é, naquele espaço, dar alguma esperança de vida aos outros internos.

Segundo Bautier (200), “optar por uma concepção de linguagem que a inscreve no conjunto das atividades sociais e cognitivas dos sujeitos nos leva a pensá-la como prática”. Ora, se, desta forma, seguirmos Bautier, e também na esteira das proposições de Hanks acima, podemos interpretar que a linguagem e seus usos, no interior da clínica, é considerada pela narradora-personagem como prática social. Afinal, a linguagem ali é percebida por ela na interface entre o indivíduo e o coletivo, como o elemento fundamental da ação do sujeito no seio de algum tipo de atividade social, configurando-se como uma forma desse sujeito de atuar sobre seus interlocutores e sobre a situação em que todos estão inseridos:

A linguagem é uma prática porque a linguagem é ação. Dentre as utilizações da linguagem, dá-se que elas próprias são ações, ações sobre uma situação, sobre os interlocutores. Esta função, que não diz respeito somente aos enunciados performativos, é diferenciadora dos locutores na medida em que ela corresponde às representações que estes fazem para si próprios do papel da linguagem (Bautier 201).

Releiamos os excertos 4 e 5 acima. Quando os observamos em conjunto, obtemos uma amostragem clara da complexidade inerente às práticas de linguagem. Por um lado, a narradora demonstra clareza ao avaliar a natureza actancial, e seu valor social, da linguagem para as internas com quem convive na clínica [excerto 5]. Por outro lado, acerca de sua própria prática de escrita, ela afirma “escrevi um relato: não saberia dizer se conto, novela ou fábula, apenas palavras e frases que não buscavam um gênero ou uma forma literária”; “sem saber por que, rasguei o original” [excerto 4]. Ora, como é possível ela supostamente não saber o porquê de não enviar seu texto de memórias ao irmão – e assim consumar a comunicação escrita com ele –, mas reconhecer a função social da evocação transfigurada em prática social: a narração iterativa, a ser feita num espaço coletivo, em alta voz? Tomados conjuntamente, os dois excertos nos permitem entrever um aparente paradoxo às práticas de linguagem, a saber, o fato de o ator não conseguir explicar com precisão tudo o que faz, embora não deixe de perceber o funcionamento da linguagem como um procedimento de/para a ação (Hanks, Language 238).

Ato contínuo, ainda no curso do excerto 5 acima, vemos como a personagem reporta à amiga Miriam a forma como interage com os médicos:

Excerto 5 [fragmento]
[p. 161] Às vezes recebia a visita de minha amiga, para quem contava o meu dia-a-dia, a conversa com os médicos, e os relatórios que escreviam depois de observar meus gestos, meu olhar, as pessoas a quem me dirigia. O minucioso itinerário do meu cotidiano era rigorosamente inventariado. Para me divertir, para distorcer alguma verdade, para tornar a representação algo em suspense, contava sonhos que não tinha sonhado e passagens fictícias da minha vida. Só não inventei a respeito dos pais, mas falei muito pouco disso. Eles me escutavam com paciência, uma paciência fria para exacerbar a ausência da emoção.

Aqui observamos um segundo tipo de discurso narrativo por meio do qual a narradora se manifesta sobre a clínica. Podemos qualificá-lo como um tipo de discurso narrativo típico do contexto de clínicas psiquiátricas na medida em que a interação médico-paciente – que configura os procedimentos de evolução de paciente – requer audição e registro do discurso do sujeito internado no intuito de atribuir-lhe um grau de “normalidade” discursiva e, como corolário, psíquica. Para a narradora, trata-se de um discurso narrativo por meio do qual ela inventa sonhos, redimensiona verdades, e, mais importante, cria expectativas quanto à própria função da linguagem para que a atividade de fabulação sempre tenha continuidade [“para tornar a representação algo em suspense”].

Voltemos a Bautier, cuja teorização é assaz próxima à de Hanks. A autora afirma que as práticas de linguagem sempre pressupõem algum tipo de representação elaborada/construída pelos sujeitos sobre elas. No fragmento do excerto 5 acima (Hatoum 161), a narradora-personagem percebe a si própria como o objeto observado nas interações face-a-face que estabelece com os médicos e com as outras pessoas, percepção que a guia na sua forma de agir – configurando o voltar-se da experiência do indivíduo sobre si mesmo. Essa percepção, porém, nos é transmitida não apenas pela afirmação explícita a este respeito (“os relatórios que escreviam depois de observar meus gestos, meu olhar, as pessoas a quem me dirigia”), mas também por uma espécie de conhecimento prático de que seu uso do corpo em suas interações linguísticas – a forma como gesticula e observa e como se orienta na escolha de interlocutores ratificados – é fundamental para que lhe atestem, ou não, a condição de sã (condição pela qual, ressalte-se, ela parece não se interessar). Além disso, a personagem-narradora também demonstra saber, no curso da própria prática da interação, que lançar mão de discursos narrativos sobre si e sobre sua vida é uma forma de atuar sobre a interpretação que farão dela enquanto ator social (“Para me divertir, para distorcer alguma verdade, para tornar a representação algo em suspense”).

Ora, constatamos assim, e novamente, que ela dá mostras de como percebe a linguagem como uma prática (percepção construída na própria prática interativa), ainda segundo a acepção proposta tanto em Bautier quanto em Hanks, na medida em que deliberadamente induz os médicos a uma interpretação socialmente construída – a um tipo de avaliação clínica – de seu desempenho comunicativo (verbal e não verbal).

Referente à interpretação construída socialmente pelos sujeitos, Bautier afirma:

Sendo socialmente construídas tais representações, esta dimensão da prática a constitui [a linguagem] em prática social (…) Na medida em que a produção linguageira for definida como prática social, ela produz significações que são objetos de interpretação e de avaliação sociais. Mas esta atividade é igualmente situada socialmente, posto que o trabalho de categorização em particular é largamente ligado às outras práticas sociais dos atores sociais (Bautier  201- 202).

Como se observa, Bautier argumenta que porque as representações sobre a linguagem são construídas socialmente pelos sujeitos, isso significa afirmar a natureza concreta e situada, natureza prática, portanto, das atividades de construção dessas representações, estando as formas de categorização formuladas pelos sujeitos intimamente relacionadas ao conjunto das práticas nas quais tomam parte. Isso revela a natureza dinâmica da própria prática, abrindo margem para que indaguemos como as “representações” ou percepções dos sujeitos sobre a linguagem e sua função se dão no curso da própria ação linguageira (tal como vemos no fragmento 5 que acabamos de comentar). Este é um aspecto fundamental das práticas de linguagem.

No excerto 5 acima, a representação a ser construída pelos médicos acerca das ações da narradora personagem é, certamente, medrada na racionalidade do discurso clínico. Já a percepção da própria narradora acerca de seu próprio comportamento, ou seja, suas afirmações a respeito de seu desempenho comunicativo principalmente nas interações que estabelece com os médicos advêm de um saber reflexivo desenvolvido por ela a partir destas próprias experiências interativas de cunho clínico.

Reparemos assim, e novamente, que outro paradoxo se faz presente no final da obra: como visto anteriormente, a narradora supostamente não sabe o porquê de não enviar seu texto ao irmão quando está na clínica. No entanto, informa à amiga Miriam, que a visita na clínica, que reconhece nas práticas de linguagem estabelecidas com os médicos uma fonte de prazer, de redimensionamento do real e aguçamento de nossa capacidade de elucubração. Ela demonstra perceber que suas ações de linguagem não adquirem/produzem significação por si próprias, em isolado, mas justamente porque estão incorporadas a situações concretas de uso (no caso, suas repetidas interações com os médicos), a práticas no interior das quais ganham sentido. Observe-se esse contraste: embora troque missivas com seu irmão, quando é chegado o momento de escrever-lhe uma grande narrativa, a narradora-personagem parece não conseguir “encaixar” um novo tipo de texto naquela situação concreta de interação, chegando a interrompê-la ao rasgar seu próprio texto. Em contrapartida, à proporção que participa de diferentes formas de interação num mesmo espaço social, a clínica, vai ganhando contornos mais específicos e pontuais sua percepção do ato comunicativo, sobretudo sua percepção dos procedimentos necessários a uma participação que direciona o fazer conjunto, inter-subjetivo, que compõe toda comunicação.

Ora, na medida em que o mesmo sujeito, situado num mesmo espaço social (a clínica), revela uma notável variedade de reflexividades pressupostas nas diferentes interações das quais participa (com os médicos, com as outras internas, com a amiga e a tentativa de interação mediada pela escrita com o irmão), é preciso corroborar o conceito de reflexividade: trata-se de mais uma noção heurística do que um conceito imanentista de contornos bem delineados, na medida em que ela pode estar voltada, e o excerto 5 demonstra-o, para “processos de significação interatuantes [isto é, entre dois ou mais sujeitos] e para a ‘dimensão social dos processos linguísticos'” (Morato 245). A reflexividade enunciativa está ligada à “possibilidade dos sujeitos de refletirem de forma mais ou menos consciente e organizada sobre a linguagem e suas práticas, isto é, de ‘atuarem’ sobre a língua e seu funcionamento” (244).

Não podemos nos esquecer ainda que se a clínica é um espaço de interações sociais, é também um espaço de solidão. E, neste sentido, cabe indagar como a solidão da narradora na clínica está relacionada à sua percepção da linguagem como prática social:

Excerto 6 (Hatoum 162)
[p. 162] (…) Miriam estranhava o fato de eu não sair dali o quanto antes (…) “O que te atrai para continuares aqui?”, me dizia. Quis responder perguntando o que me atraía lá fora, mas preferi dizer que estava pensando numa viagem.
O tempo que permaneci na clínica, ora procurava o pátio para ficar com as outras, ora me confinava no quarto (…). Ao fim de algumas semanas, eu já podia, de olhos fechados, identificar as vozes de cada pessoa, imaginar os gestos das que nunca falavam, e entoar as orações das que rezavam. O quarto era o espaço da solidão. Ali, aprendi a bordar. Retalhei um lençol esfarrapado para fazer alguns lenços, onde bordei as iniciais dos nomes e apelidos, e teci formas abstratas nos pedaços de pano (…)

No excerto 6 acima observamos que, sozinha, confinada no quarto, a narradora se dedica a “identificar as vozes de cada pessoa, imaginar os gestos das que nunca falavam, e entoar as orações das que rezavam”. Repare-se, pois, que a solidão é tematizada como mais um locus privilegiado para a concepção e fabulação de práticas de linguagem (conversações orais e orações feitas em voz alta) enquanto matéria ficcional. E é exatamente neste trecho do capítulo oitavo do Relato…que o motivo do “bordar” qua urdir histórias, narrar, entra em discussão: no excerto 6 vemos que tecer com as mãos e tecer histórias imaginárias são atividades tomadas como atividades limítrofes; a ponto de a narradora começar a urdir, com sua própria imaginação, suas histórias: as “viagens da memória”. Atribuir algum sentido narrativo à combinação entre a ação de bordar (na medida em que congrega pedaços de bordado, aos quais atribuíra nomes) com pedaços de uma narrativa escrita, só é possível em razão dos momentos solitários de viagens da memória. A solidão se mostra, no contexto da clínica, certamente um dos fatores que “potencializa” a percepção da narradora-personagem sobre a linguagem como prática.

Experiências compartilhadas e solidão; uso de diferentes semioses na tentativa de construção de uma atividade narrativa escrita. Em uma palavra, a vivência na clínica demonstra como a narradora percebe e vivencia a reflexão solitária e uma espécie de saber sobre a linguagem em práticas sociais recorrentes naquele espaço social específico, e como ela combina tudo isso; combinação que aparece a nós leitores cimentada por diferentes formas explicativas que, por sua vez, não comportam qualquer relação teleológica entre a “racionalidade” que portam e o fato que descrevem.

 

Considerações finais

Conforme afirmado acima, essa dupla combinação entre experiências compartilhadas e solidão; uso de diferentes semioses na tentativa de construção de uma atividade narrativa escrita são, no universo diegético da obra, as manifestações em que a narradora elabora determinadas reflexões sobre seus usos linguísticos a partir das tramas sociais em que está enredada. Assim, a reflexividade que ela demonstra em seu discurso está incorporada ao desenvolvimento das próprias práticas em que atua, o que nos induz a pensar a reflexividade como uma espécie de princípio de inteligibilidade dos sujeitos para atuarem em práticas sociais especificas. Admitida esta hipótese, podemos partir para uma conclusão da noção de prática de linguagem que enfatize sua natureza comunicativa, e não prescinda da reflexividade como uma noção de cunho epistêmico (o sujeito reflete sobre sua prática) e prático (pensa sua prática no curso dela própria).

Este artigo consistiu em uma tentativa de promover a leitura de um romance a partir de uma visada teórica que combine conhecimentos ordinários sobre língua(gem) e como tais conhecimentos são representados no interior de um romance. Evidentemente não esgotamos (nem sequer era esse o intuito) as possibilidades de leituras que o Relato… oferece. Esperamos, por fim, ter oferecido alguma contribuição para a compreensão da obra literária: de que ela também pode ser prenhe de percepções práticas sobre língua(gem) e isso estar relacionado a sua escritura.

 

Referências

Bakhtin, Mikhail. “Forms of Time and of the Chronotope in the Novel”. The Dialogical imaginantion: four essays. Ed. Michael Holquist. Austin: University of Austin Press, 2004 [1938]: 84-258.

Bautier, Elisabeth. Pratiques langagières, pratiques sociales. De la sociolinguistique à la sociologie du langage. Paris: Editions L’Harmattan, 1995.

Carneiro, Flávio. “Das vanguardas ao pós-utópico: ficção brasileira no século XX”. No país do presente: ficção brasileira no início do séxulo XXI. Org. Flávio Carneiro. Rio de Janeiro: Rocco, 2005.

Hanks, William. Language and communicative practices. Boulder: Westview, 1996.

_______. Língua como prática social: das relações entre língua, cultura e sociedade a partir de Bourdieu e Bakhtin. Orgs. Anna Christina Bentes, Renato Cabral Rezende, Marco Antônio Machado. São Paulo: Cortez, 2008.

Hatoum, Milton. Relato de um certo oriente. São Paulo: Companhia das Letras, 2005 [1989].

Morato, Edwiges. “Metalinguagem e referenciação: a reflexividade enunciativa nas práticas referenciais”. Referenciação e discurso. Orgs. Ingedore Koch, Edwiges Morato, Anna Christina Bentes. São Paulo: Contexto, 2005.

Ricoeur, Paul. Tempo e narrativa. (Tomo II). Tradução: Marina Appenzeller. Campinas: Papirus, 1995.

 

 

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