AS METÁFORAS NÁUTICAS NAPOÉTICA BARROCA ALEMà

Antônio Jackson de Souza Brandão
Universidade de São Paulo, USP
 
 

Imagem: pressupostos
A imagem está de tal forma inserida na humanidade que seria pouco provável imaginar essa alijada daquela. Além disso, é a expressão da cultura humana desde antes de as pinturas rupestres aparecerem nas cavernas, milênios antes do aparecimento do registro fonético do λόγος (lógos) pela escrita.

Dessa forma, pode ser tanto a representação de uma realidade visível e sensível externa à consciência do homem (desenhos, pinturas, fotografias), quanto sua representação interna, mental (sonho, devaneios, pensamentos); ou ainda quando as realidades externas e internas funcionam como recurso linguístico e o homem faz a associação inconsciente ou indireta de dois mundos ou duas realidades separadas no tempo e no espaço, como no texto literário. Assim, as imagens endógenas são dirigidas ao próprio intelecto de onde emanam; ou concebidas a partir de estímulos externos – exógenas.

Há, portanto, a possibilidade de se reconstruir o visível e sensível via mente, quando se pretende criar um efeito de realidade a partir daquilo que se viu, por meio de analogias e similitudes com padrões conhecidos. Esse papel, porém, não é exclusivo das artes plásticas ou pictóricas, pode também ser oferecido pela literatura via λόγος, já que na arte ou na literatura – escreveram Deleuze e Guattari – o que se conserva não é o material – seja o signo linguístico, a pedra ou a cor –, mas o percepto ou o afecto. (Guimarães, 1997, p. 63)

Para Peirce, por exemplo, a imagem evocada pelo λόγος, sempre será um símbolo, já que não identifica as coisas em si mesmo. Não nos mostra um pássaro, nem realiza qualquer celebração diante de nossos olhos, mas supõe que sejamos capazes de imaginar essas coisas. (Cf.: Peirce, 2005, p. 73) Dessa forma, o que o λόγος tem de imagético não é devido à similitude com o objeto que procura representar, mas pela conexão estabelecida na mente daqueles que o utilizam, “sem a qual essa conexão não existiria”. (ibidem, p. 73) Assim, é necessário que haja uma vinculação entre as pessoas do discurso para que possa haver a comunicação, ou seja, se o emissor transmite uma mensagem a um receptor sem que este possa decodificá-la, aborta-se o entendimento, visto que a palavra/objeto não está amarrada a seu referente como no índice, com o qual está fisicamente conectado. (ibidem, p. 73)

Isso se configura de modo claro em textos e imagens extemporâneos, quando, devido à alegorização e a possível perda da referencialidade, aquilo que deveria estar estabelecido entre o λόγος e a imaginação que dele fazemos, é coberto por um velame anacrônico. Afinal, as imagens lexicais, enquanto realidades inseridas no mundo, continuam sendo aquilo que sempre foram: mera arbitrariedade sígnica. Por isso afirmar que, para se compreender uma mensagem, é necessário que dois elementos da comunicação – o emissor e o receptor – possuam um código comum, para que se possam estabelecer relações mínimas de compreensão, já é lugar-comum. Isso não é válido somente ao se fazer uso da linguagem verbal, mas também para toda comunicação humana, seja por meio de gestos, sinais, olhares ou imagens.

Imagem e palavra nos Seiscentos
Assim, para que se possa buscar uma maior compreensão de textos extemporâneos como os do Seiscentismo, deve-se procurar conhecer certos aspectos que tornam aquele fazer artístico peculiar em relação ao nosso, já que

a poética do século XVII não deve ser entendida como uma poética de experiências pessoais no sentido contemporâneo, já que se baseia em formas, temas e conceitos preestabelecidos, mormente na filosofia e na retórica antigas. A literatura é, nesse momento, uma representação retoricamente codificada, em que o eu lírico individual cede espaço a um coletivo, seguindo os preceitos sociais vigentes. (Brandão, Sistemas de representação 308)

E um dos aspectos marcantes daquilo que se convencionou chamar de Barroco foi, exatamente, a imiscuição palavra/imagem. Devido à geminação entre os dois sistemas sígnicos, o lexical e o imagético, os dois sistemas compartilharam um mesmo gênero, o emblemático, cujo marco inicial foi a publicação da obra Emblematumliber, em 1531, pelo humanista italiano Andrea Alciati que, ao praticar um exercício próprio do momento – tradução e imitação –, compôs uma antologia com 99 epigramas latinos, cuja inspiração fora o livro de Horapolo.

A palavra emblema2, do grego έmblhma, pode significar a parte da lança onde se encravava o ferro; algo embutido; ou mosaico. E é, exatamente, isso que temos diante de nós: um amalgamento iconológico que, à semelhança do mosaico, não pode ser visto num relance como uma mensagem que se abre e é logo descartada – como as imagens de nossa contemporaneidade, as quais não passam de um embrulho que, ao ser rasgado, é posto fora e de que ninguém se lembrará –, mas tem de ser lida, degustada e apreciada para, por meio do engenho3, ser decodificada e dar prazer.

Além disso, traz sempre embutida mais do que uma imagem cercada de palavras que tentam se explicar mutuamente: cada emblema propunha levar seu leitor a mudanças comportamentais devido a seus preceitos morais. Estes não passavam de metáforas ilustradas, cuja função didática e moralizante, visava a fornecer princípios e modelos comportamentais. Tais alegorias não passavam de lugares-comuns, presentes em iconologias e, de forma maciça, na Bíblia. Assim, fazia-se mister seu conhecimento, sem o qual seria impossível a inserção e mesmo a permanência nas fechadas sociedades aristocráticas dos séculos XVI e XVII.

Portanto, uma leitura imagética de um poema de um tempo extemporâneo, como o do período em questão, tende a ser levada sob dois enfoques: a) ou se procura resgatar o que se pretendia no momento de sua criação – o que pressupõe o conhecimento das iconologias, dos livros de emblemas e da Bíblia; b) ou se lê sob o ponto de visto da contemporaneidade – sem o referencial empregado naquele período –, substituindo o signo imagético iconológico por outras imagens.

Metáforas náuticas: tradição
Frequentemente utilizadas nas literaturas do Renascimento e do Barroco, as metáforas náuticas são uma tradição que remonta à Antiguidade clássica, perpassa a patrística e as alegorias bíblicas medievais e mantém-se por um longo tempo (Curtius 178), inclusive transcorrendo o período Barroco, como nos poemas românticos, mormente aqueles cuja conotação é religiosa como é o caso de alguns poemas de Achimvon Arnim e mesmo Clemens Brentano.

A tradição emblemática foi inundada pela imagem do navio sendo castigado pelos ventos e pelo mar tormentoso em sua busca por segurança em meio à agitação do mar de borrasca. Assim, o navio em meio a tempestades e obstáculos que não consegue alcançar o porto a que se dirige, pode se considerar perdido: qual seria seu destino senão o de sua segurança?

A nau quer nos mostrar a vida do homem no mundo, cercada por sofrimentos e preocupações por todos os lados – como o navio está pelas águas do mar –, cujo fim é o Porto: o encontro com a morte, quando se prestará contas daquilo que fez ao Criador, pois Finis coronat opus, ou seja, “O fim coroa a obra”.

Apesar de, nesse aforismo, Otto Vaenius nos falar do Amor, não do momento em que os atos de nossa vida coroarão ou não nossa existência, o mesmo pode se referir à existência humana, visto que esse conceito/imagem era largamente empregado não só na emblemática, como na poética do período. Podemos ver isso na subscriptio de seu emblema 55, cujo título é Finis coronat opus, de 1608:

Niratisoptatumvarijsiactataprocellis/Obtineatportum, tumperijße puta

[Se um navio é dirigido ao redor de todos os tipos de tormentas e não se aproxima ao porto que é sua esperança, pode-se considerá-lo perdido].

Andrea Alciato, em seu emblema 43, cujo título é Spesproxima, de 1536, mostra-nos a mesma imagem, referindo-se ao Estado:

Spesproxima

InnumerisagiturRespublicanostraprocellis,
Etspesventurae sola salutisadest:
Non secus ac navismediocircumaequore, venti
Quamrapiunt, salsisiamquefatiscitaquis.
Quod si Helenaeadveniant, lucentia sidera, fratres:
Amissosanimosspesbonarestituit.

[Our state is shaken by innumerable storms, and there is only one hope for its future safety; just like a ship in the middle of the sea which the winds grasp, it now breaks up in the briny water. But if the brothers of Helen, shining stars, appear, good hope restores those downcast spirits.]

A confiança4 em Deus deverá ser plena, devemos nos abandonar à Divina Providência para que, por seu intermédio, possamos chegar ao Porto de nossa vida, para isso devemos nos deixar guiar pelas mãos divinas, representadas por uma mão nos céus que segura uma tocha à semelhança de um farol que guia para o local mais seguro.

Vemos isso claramente explicitado no gênero emblemático pela francesa Georgette de Montenay, uma das poucas mulheres a dedicar-se ao gênero e, além disso, de confissão protestante, em seu emblema 11, cujo título é Quem timebo?,de 1615 [A quem temerei? Sl 27,1]: um homem em uma barca açoitada por ventos está em meio a uma grande tempestade, mas demonstra sua confiança e fé em Deus, evidenciando isso por meio de sua mão esquerda em seu peito. (Ripa 403)

O emprego das metáforas náuticas na poética
Há, no Barroco alemão, inúmeros exemplos do emprego do conceito/imagem Schiff [navio] como curso da vida em alto mar em meio a perigos e atribulações que devem ser vencidas para que se possa chegar com segurança ao Port [porto], seu destino final:

Hoffmann von Hoffmannswaldau

Ich bin ein schiff der liebes-see/
Das wind und wetter plaget/
Dem unglück/ hoffnung/ furcht und weh/
Durch mast und segel jaget.
Hier zeiget sich
Kein port für mich/
Dieweil ich itzt muß meiden(Hoffmannswaldau121)

[Tradução livre: Sou um navio do mar de amor/ Assolado pelo vento e por tempestades/ que desgraça/ esperança/ temor e dor/ Mande por mastros e velas./ Aqui não se mostra/ Nenhum porto para mim/ Que agora devo evitar]

Angelus Silesius

a) Ich schiff ohn Zagen auf dem Meer
In allem Ungewitter.
Fliegt gleich mein Schifflein hin und her
Vom Nordwind, dem Zerrütter,
Fahr ich doch fort und seh ihn an,
Den Leitstern, was ich kann.(Silesius 458)

[Tradução livre: Eu navio destemido no mar/ Em todas as tempestades./ Voa meu naviozinho para lá e para cá/ Pelo vento norte, o abalador,/ Continuo e olho para ela,/ Estrela-guia, enquanto puder.]

b) Ich werde zwar oft schwach und müd
Und bin sehr abgeschlagen,
Weil aber er mich an sich zieht,
So acht ich keine Plagen.
Mein Schifflein wird noch wohl bestehn Und in den Port eingehn.(459)

[Tradução livre: É verdade, às vezes, fico fraco e cansado/ E bastante esgotado,/ Mas por ele me puxar para si/ Não ligo para pragas. / Meu naviozinho deve aguentar / E entrar no porto.]

Sigmund von Birken

Die Wellen hier wallen,
Mein Schifflein anfallen.
Sie wollen mich senken,
Im Welt Meer ertränken.
Mein Segel ich wende,
Zur Sternen-Anlände.
O Himmel! zu dir
Steht meine Begier.(Birken 135)

[Tradução livre: As ondas aqui rolam/ Atacam meu naviozinho/ Querem me afundar/ Me afogar no mar do mundo./ Viro minha vela/ Para as estrelas./ Ó céu! A ti / Destinam-se meus desejos.]

Simon Dach

Über Wunsch und über Hoffen
Sind wir dieses, was wir sind.
Daß auch uns die Noht getroffen,
Tobt die Ost-See durch den Wind,
Sind die all’ in Angst und Pein,
Die in einem Schiffe seyn.(Dach220)

[Tradução livre: Sobre desejo e esperança/ Somos o que somos./ Que também a nós a necessidade atinja,/ O Mar Báltico passa pelo vento,/ Com medo e dor ficam todos,/ Os que estão num navio.]

Quirinus Kuhlmann

Mein Gott, mein Gott! Schau meine Trübsal an!
Ich sehe um und um nichts als nur lauter wasser!
Ob Ost und Nord mit mir zu schiffe gehen,
Und gros dein werk, das täglich mir vorlauffet!
Doch stehe ich mit Ost und Nord in Noth,
Bis an den gürtel recht in hauptgefahr und wellen.
Ich weist nicht mehr vor meiner nässe rath,
Mit der mein Weis und Blau so häuffig wird gefeuchtet.
Die flutten steigen hoch! Mein Schif zeucht mehr und mehr!
Das es di höchste zeit in grösser eil zufahren.(Kuhlmann536)

[Tradução livre: Meu Deus, meu Deus! Vê minha tristeza!/ Em minha volta só vejo água! Leste ou norte no navio comigo/ Grande tua obra que, diariamente, se me apresenta!/ Mas com Leste e Norte estava em apuros, Até a cintura em perigo e ondas./ Não sabia o que fazer de tão molhado./ Pela água que molha meu branco e azul!/ As marés sobem! Meu navio sofre cada vez mais!/ Que se dirija com rapidez no maior tempo.]

Andreas Gryphius

a) Wie  ohne Ruh’
Ein Schifflein wird bald her/ bald hin geschimissen:
So setzt uns zu
Der sorgenSturm/ wir werden hingerissen
Auff dises Lebens Schmertzenvollen See.(Gryphius195)

[Tradução livre: Assim sem descanso, o naviozinho é jogado para lá e para cá:/Ataca-nos/ A tormenta dos problemas,/somos arrastados/ para o mar de dores dessa vida.]

b) Mein offt bestürmbtes Schiff der grimmen Winde Spil
Der frechen Wellen Baal/ das schir die Flutt getrrennet/
Das vber Klip auff Klip’/ vndt Schaum/ vndt Sandt gerennet;
Komt vor der Zeit an Port/ den meine Seele wil,
Gott Lob! Der rauhe Sturm führt durch die wüste See
Der rasend-tollen Welt/ wo immer neues Weh
Und Leid auf Angst sich Häufft/ wo auf das harte Knallen
Der Donner/ alle Wind in Flack und Seile Fallen/
von kaum erkennter Klipp’ und seicht-verdecktem Sand;
Mein Schiff (zwar vor der Zeit) doch an das liebe Land.(Gryphius, Sonette 61)

[Tradução livre: Meu navio várias vezes atacado pelo jogo voraz dos ventos;/ o baile das ondas que dividem as águas;/Que passou por encostas e espuma e areia,/ chega ao porto antes do tempo; o porto que minh’alma quer.
Louvado seja Deus! A tempestade rude leva-nos pelo mar revolto/Do mundo louco-irado, onde a dor sempre renovada/E sofrimento e medo se acumulam, onde após o estouro/Do trovão, todo o vento cai nas ondas e velas/ diante de quase imperceptíveis encostas e areias levemente cobertas./ Meu navio (antes do tempo, é verdade) chega à terra amada.]

Jöns, a respeito desse soneto de Gryphius, nos diz:

Das Schiff bedeudetet den Leib, das stürmische Meer die Welt; Hafen und Land sind Sinnbilder des Endes der von calamitates und vielleicht auch errores erfüllten Lebensfahrt, wo der Geist den Leib und damit das Zeitliche verläβt. Der „Port“ ist zwar der „Port des Todes“, aber in christlichem Sinn Erlösung von der Qual und Unruhe des Irdischen und zugleich den Eingang in die Ewigkeit, das „Vaterland“. (Jöns198)

[Tradução livre: O navio significa o corpo, o mar tempestuoso, o mundo; o porto e a terra são imagens do fim da viagem da vida repleta de calamidades e também de erros, em que o espírito abandona o corpo e com ele a vida temporal. O “porto” é, precisamente, o “porto da morte”, mas, no sentido cristão, a solução do martírio e desassossego do mundano e, ao mesmo tempo, a entrada na eternidade, a “pátria”.]

Após ter vencido o mar de vicissitudes – tormentos, tempestades, ventos contrários –, resta ao navio chegar a seu Porto seguro. O homem chega, portanto, à consumação de sua jornada. Podemos ver exemplos dessa chegada no Emblema 10 de Pieter Huygen, Aan d’overkant, is ‘t zaligland., de 1689, quando vemos um homem que aponta para um navio que está chegando a seu destino.

Entre as interpretações dadas a esse emblema, está o fato de as pessoas que acenam hesitarem ir ao outro lado, talvez por medo do desconhecido ou o receio do que possam lá encontrar. Não se deve recear a morte aquele que não cometeu crimes, que não pecou, pois está livre para se defrontar com seu julgamento e ver Cristo face a face.

A seguir, exemplos poéticos que falam do porto – fim/começo – de uma nova vida:
Angelus Silesius

a) Ich lasse Donner, Hagel, Blitz
Und alles auf mich stürmen,
Schau nur nach meines Sternes Sitz
An seines Himmels Türmen.
Ich fahr voll Hoffnung nach dem Port,
Denn Jesus zeucht mich fort.(Angelus Silesius, Heilige 458)

[Tradução livre: Deixo trovão, granizo e raio/ E tudo mais cair sobre mim,/Vê só a sede de minha estrela/ nas torres de seu céu./ Vou cheio de esperança ao porto/ Pois Jesus me leva.]

b) Es stürmt kein Wind in diesem Port
Und innerhalb der Brucken,
Der Blumen feind, der strenge Nord,
Darf hier nicht einmal mucken.
Es facht und webelt nur allein
Wie spielend durcheinander
Ein tausendkühles Lüftelein
Mit lieblichem Gewander.(Angelus Silesius, Sinnliche 74)

[Tradução livre: Nenhum vento sopra nesse porto/ E em meio às pontes,/ os inimigos das flores, e o Norte vigoroso,/ Não pode nem para aqui/ Sopra e esvoaça sozinho/ Como que brincando, revolto,/ Um arzinho fusco/ com roupagem adorável.]

Catharina Regina von Greiffenberg

a) Wann nur mein Schiff erlangt / den viel gewünschten Port /
(Ich mein / ein gutes End) mein hier geführtes Leben /
So bin ich schon vergnügt / und kan mich freuen dort.
Doch kan ein gutes End allein die Tugend geben /
als die es selber ist. Werd’ ich in sie versetzt /
so bin ich alles Leids und stürmens reich ergetzt. (Greiffenberg 95)

[Quando meu navio alcançar o porto tão desejado/ (Digo: um bom fim) minha vida que levo aqui/ Estou feliz e me alegro lá./ Mas só um bom fim pode me dar a virtude/ do que ela mesma. Se nela me coloco/ fico feliz com todo sofrimento e tormenta.]

b) Gleich wie der Wolken last in tropfen sich verlieret:
also mein Vnglück auch durch Thränen Regenfällt.
als Haubt Plejaden / sie zu feuchten sind bestellt /
der Gottes Güte Land das hülff-blüh dann gebteret.
Diß quälend Wellen-Meer an wunsches Port offt führet.
Der Buße Muschel Perl in seinem schoß es hält /
zu dem die Amber sich / das Ruf-Gebet / gesellt.
Offt man darinnen mich / gleich als im Felsen / spüret:
Sonst treibt die Wasserkunst offt grosses Räderwerck.(100)

[Como as nuvens se perdem em gotas:/ minha desgraça em chuva de lágrima cai/ como plêiades centrais, feitas para umedecer/ que a bondade divina ajude a florescer a tem/ Esse mar de ondas tormentosas leva ao porto do desejo./ A pérola da concha da penitência mantém em seu colo/ ao qual o âmbar se junta com a prece-clamor./ Muitas vezes, ali, me sinto como na rocha:/ Senão a arte das águas faz grandes obras.]

c) Die Seeligkeit der Geist in diesen Segel wehet /
der in den Hafen bringt das Schiff mit Pfeiles-eil.
Ich bin bereit im Port / und mein Port ist in mir /
auch mitten in dem Meer: was darf die Flut mich scherzen? (117)

[A felicidade do espírito sopra nessa vela/ que leva o navio ao porto como uma flecha./ Estou pronto no porto e meu porto está em mim/ também em meio ao mar: o que a maré me fará?]

Andreas Gryphius

Der schnelle Tag ist hin/ die Nacht schwingt jhre fahn/
Vnd führt die Sternen auff. Der Menschen müde scharen
Verlassen feld vnd werck/ Wo Thier vnd Vögel waren
Trawrt jtzt die Einsamkeit. Wie ist die zeit verthan!
Der port naht mehr vnd mehr sich/ zu der glieder Kahn. (Gryphius, Sonette108)

[O breve dia se foi, a noite agita sua flâmula/ E traz as estrelas cansadas/ Deixam campo e o trabalho, onde estiveram animais e pássaros/ Agora está a solidão em luto. Como se gastou o tempo!/ O porto se aproxima cada vez mais do barco, de seus membros.]

Além do Porto essa segurança procurada pelo homem também pode ser alcançada pelo Fels [rochedo] que, da mesma forma que pode se tornar um obstáculo destruidor em meio a uma tempestade, pode ser a salvação em meio à amplidão do mar. Ou seja, é o refúgio que a alma procura, é o encontro com o próprio Deus, cuja tradição é bíblica:

Eu te amo Javé. Tu és minha força!
Javé, meu rochedo, minha fortaleza, meu libertador:
meu Deus, rocha minha, meu refúgio, meu escudo,
força que me salva, meu baluarte! (Sl 18, 1-3)

O holandês Jacob Cats mostra-nos isso em seu emblema 20, Dum trahimus, trahimur, de 1627, quando vemos um marinheiro que se agarra a um rochedo com a ajuda de uma âncora. Imagem parecida é utilizada por Georgette de Montenayem seu emblema 60, Inviavirtutinulla est via, de 1615, em que diz não haver nenhum caminho fechado para a virtude. Nele vê-se um soldado demolindo um rochedo em que há uma estátua personificando a virtude, apesar das ondas do mar.

O mesmo podemos dizer Emblema 11 de Jan Suderman, Non me degarttempestas aquae, de 1724, quando vemos que a alma humana (a criança) estende as mãos para o Amor Divino (anjo) que está, a sua espera, ao lado de um rochedo, algo parecido com o que nos diz os poetas a seguir.

Angelus Silesius

Christus ist wie ein Fels

Wer sich an Christum stößt, er ist ein Felsenstein,
Zerschellt; wer ihn ergreift, kann ewig sicher sein. (Silesius, Cherubinischer 1086)

[Cristo é um rochedo
Quem se chocar com Cristo que é um rochedo/ Estilhaçar-se-á; quem acolhê-lo terá segurança eterna.]

PaulFleming

 Arzt, ich bin krank nach dir. Du Brunnen Israel,
dein kräftigs Wasser löscht den Durst der matten Seel’.
Auch dein Blut, Osterlam, hat meine Tür errötet,
die zu dem Herzen geht. Ich steife mich auf dich,
du mein Hort, du mein Fels. Belebe, Leben, mich.
Dein Tod hat meinen Tod, du Todes Tod getötet. (Fleming 872)

[Médico, estou doente, ansiando por ti. Tu, fonte de Israel,/ Tua água poderosa sacia a sede de minha alma enfraquecida./ Também teu sangue; Cordeiro da Páscoa tingiu de vermelho a minha porta./ que leva a meu coração. Apoio-me em ti,/ meu refúgio, meu rochedo. Vida, dá-me vida./ Tua morte a minha morte matou, Tu, morte da morte.]

Paul Gerhardt

Mein Volk kommt aus dem Weinen,
Sein Feind kommt aus der Ruh,
Ihr tausend flieht vor einem,
Wie geht das immer zu?
Ihr Herr, ihr Fels und Leben,
Ist weg aus ihrem Zelt,
Er hat sie übergeben
Zur Flucht ins freie Feld.(Gerhardt 534)

[Meu povo vem do choro,/ Seu inimigo vem da calma,/ Vós, milhares, fugis de um só,/ Como pode ser isso?/ Seu Senhor, seu rochedo e vida,/ Foi-se de sua tenda./ Entregou-os à fuga/ Para os campos livres.]

Considerações finais

É evidente que todas as leituras abordadas neste artigo representam apenas uma gota no oceano imagético que permeava o fazer poético do século XVII alemão, que não se restringia, evidentemente, a metáforas náuticas.

No entanto, mesmo ao restringirmos o nosso objeto de apreciação, nos vimos diante de uma quantidade razoável de modelos representativos: fossem eles de poetas que fizeram parte do movimento, fossem de textos diversos e de suas traduções.

Tais imagens metafóricas pedem que as interpretemos e as apreciemos, porém se não tivermos acesso aos conceitos empregados por aqueles artistas, podemos ser levados a formular uma interpretação equivocada, desconexa e distante daquilo que aqueles poetas propunham.

O artigo, portanto, procurou ampliar, para aqueles que realmente se interessam por textos extemporâneos, aspectos desconhecidos ou ignorados por nossa sociedade; a fim de que, ao se depararem com textos daquele período, esses possam ser lidos de uma forma singular, nunca de forma simplista ou minimalista.

 
 
Notas
 

1Antônio Jackson de Souza Brandão é mestre e doutor em Literatura e fotografia pela Universidade de São Paulo (USP) e sua área de pesquisa é a recepção imagética de textos extemporâneos; atualmente é docente na FIVR/ UNISEPE, email: jackbran@gmail.com

2Os emblemas possuíam uma estrutura tripartite constituída por uma imagem − seu “corpo” – que deveria ser fixada na memória dos leitores, pois ela passava preceitos morais que o autor desejava transmitir; um mote, normalmente uma sentença aguda escrita em latim, a partir do qual o leitor era direcionado a determinada leitura da imagem; e um epigrama, ou texto explicativo, que buscava relacionar o corpo com o mote do emblema, clarificando a relação existente; era, portanto, sua “alma”. (Cf.: BRANDÃO, 2010, p. 131)

3Força do intelecto que compreende dois talentos: perspicácia dialética e versatilidade retórica. Aquela penetra nas mais distantes e diminutas circunstâncias de cada assunto, esta confronta rapidamente todas essas circunstâncias entre si, ou com o assunto. O resultado desse trabalho intelectual é a agudeza, “modelo cultural de uma memória social de usos dos signos partilhada coletivamente”, que definirá a hierarquização de uma retórica comportamental, bem como o esquema ordenador das práticas da representação do século XVII, seja nos livros de emblemas, de empresas, nas preceptivas retórico-poéticas, na poesia e na pintura, ou na codificação dos gêneros e estilos a que cada um pertence, adequando-os à grande variedade de tópicas, situações e comportamentos.(BRANDÃO, 2003, pp. 44-45)

4Ripa demonstra a confiança como uma mujer(…) que sostiene com ambas manos uma nave. (…) Se pinta con la nave entre las manos por ser signo de confianza, pues con los navíos arriesgan los navegantes atravesar las ondas del mar, las cuales, con sólo su perpetuo movimiento, parece que amenazan con arruinar y dar muerte y exterminio al hombre que, abandonado la tierra, sale fuera de sus límites naturales.(Ripa, op. cit.v. I, p. 212)
 
 
Bibliografía
 

BIRKEN, Sigmund von. Geistliche LiederIn Die digitale Bibliothek der deutschen Lyrik.Berlin, Directmedia, 2003.

BRANDÃO, Antônio Jackson de S. “Sistemas de representação na arte barroca”, inRevista Eutomia, UFPE, 2008.

__________. “O gênero emblemático”, inRevista Travessias, Cascavel, Unioeste, 2010.

__________. A literatura barroca na Alemanha. Andreas Gryphius: representação, vanitase guerra. Dissertação de mestrado apresentada à Universidade de São Paulo, 2003.

CATS, Jacob. Sinne-en minnebeelden. Den Haag, Constantijn Huygens Instituut, 1996 (Facsímile).

CURTIUS, Ernst Robert. Literatura europeia e Idade Média Latina. São Paulo, Hucitec/Edusp, 1996.

DACH, Simon. Geistliche Lieder. Trostgedichte., In Die digitale Bibliothek der deutschen Lyrik.Berlin, Directmedia, 2003.

GERHARDT, Paul. GedichteIn Die digitale Bibliothek der deutschen Lyrik.Berlin, Directmedia, 2003.

GREIFFENBERG, Catharina Regina von. Geistliche Sonnette, Lieder und GedichteIn Die digitale Bibliothek der deutschen Lyrik. Berlin, Directmedia, 2003.

GRYPHIUS, Andreas. Gesammtausgabeder deutschsprachigen Werke (hrsg. Marian Szyrocki): Sonnete. Tübingen, Max Niemeyer, 1963,v.1, 273 p.

GUIMARÃES, César. Imagens da memória: entre o legível e o visível.Belo Horizonte, Fale/UFMG, 1997.

HOFFMANNSWALDAU, Christian Hoffmann von. Gedichte aus Neukirchs Anthologie, v. 1. In Die digitale Bibliothek der deutschen Lyrik. Berlin, Directmedia, 2003.

HUYGEN, Pieter,Beginselen van Gods Koninkrijk. Amsterdan, Pieter Arentsz,1689(Facsímile).

JÖNS, Dietrich Walter. “Das sinnen-Bild”: Studien zur allegorischen Bildlichkeit bei Andreas Gryphius. Stuttgart, J.B. Metzlersche Verlagsbuchhandlung, 1966.

KUHLMANN, Quirinus. Der Kühlpsalter, v. 1. In Die digitale Bibliothek der deutschen Lyrik.Berlin, Directmedia, 2003.

MONTENAY, Georgete. Emblematvmchristianorvmcentvria.Heildelberg,TypisJohannisLancelloti, 1615 (Facsímile).

PEIRCE, Charles S. Semiótica. São Paulo, Perspectiva, 2005.

RIPA, Cesare. Iconología(Prólogo de Adita Allo Manero). Tomo l. Madrid, Akal, s/d.

___________. Iconología.Tomo II.Madrid, akal, 1987.

SILESIUS, Angelus. Cherubinischer WandersmannIn Die digitale Bibliothek der deutschen Lyrik. Berlin, Directmedia, 2003.

__________. Heilige Seelenlust oder geistliche HirtenliederIn Die digitale Bibliothek der deutschen Lyrik. Berlin, Directmedia, 2003.

SUDERMAN, Jan. De godlievende ziel. Amsterdan, Marten Schagen, 1724 (Facsímile).

VAENIUS, Otto. Qvintihoratiiflacciemblemata: Imaginibus in æs incisis, Notisque  illustrata. Antverpiæ, 1612 (Facsímile)

_____________ .Amorisdiviniemblemata. Antverpiæ, Exofficina Martini Nuti&IoannisMeursi, 1615 (Facsímile).

 
 

'AS METÁFORAS NÁUTICAS NAPOÉTICA BARROCA ALEMà' has no comments

Be the first to comment this post!

Would you like to share your thoughts?

Your email address will not be published.

Images are for demo purposes only and are properties of their respective owners.
Old Paper by ThunderThemes.net

Skip to toolbar