PONTOS DE CONTATO ENTRE EDGAR ALLAN POE E ALPHONSUS DE GUIMARAENS QUANTO À MORTE E AO AMOR

José Carlos Aissa
Universidade Estadual do Oeste do Paraná
 
 

Investigaremos neste trabalho a presença de traços góticos na poesia de Alphonsus de Guimaraens (1870-1921) e de Edgar Allan Poe (1809-1849) a fim de verificar como o manejo artístico desses elementos corrobora o tom melancólico característico em ambos os poetas e com seu posicionamento semelhante quanto à morte, ao amor e à vida.

Levamos em conta os abundantes comentários em textos críticos que ligam um autor ao outro, quer por meio de leitura direta de textos de Poe por Alphonsus, quer via triangulação com Charles Baudelaire e outros simbolistas franceses, principalmente com Paul Verlaine, na opinião de muitos.

Falamos de leitura direta, pois não há dúvida de que Alphonsus conhecia a obra de Poe, mesmo que não fosse integralmente. Em Correspondência de Alphonsus de Guimaraens, volume organizado por Alexei Bueno, encontra-se carta, datada de 15 de julho de 1919, remetida a João Alphonsus, filho mais velho, em que o poeta mineiro comenta a visita de Mário de Andrade, descrito como “um rapaz de alta cultura, sabendo de cor, em inglês, todo o ‘Corvo’ de Poe.” (BUENO 26). Em outra, com a data de 5 de agosto de 1919, também endereçada a João Alphonsus, lemos: “A tua tradução ou, antes, paráfrase, da poesia de Poe, está belíssima” (BUENO 27). Além disso, sabemos que o comentado poema “A Cabeça de Corvo”, parte de Kiriale, publicado pela primeira vez no jornal Gazeta de Notícias do Rio de janeiro em 16 de setembro de 1893 (GUIMARAENS, Poesia Completa 551), apresenta fortíssima intertextualidade com “The Raven” (1845) do poeta estadunidense.

Ademais, é bastante reconhecido o fato de que os poetas ingleses da Graveyard School do século XVIII teriam colaborado em muito para o gótico e o fantástico com seus poemas sobre as vicissitudes da vida e da frágil condição da mortalidade, sobre a solidão da morte e do túmulo e sobre a angústia proveniente da perda do ser amado. Robert Blair com “The Grave” (1743), Edward Young com seus nove volumes de The Complaint, or Night Thoughts on Life, Death, and Immortality (1742-45), and Thomas Gray com “Elegy Written in a Country Churchyard” (1751), para mencionar apenas alguns dos principais, contribuíram para o desenvolvimento do que se denominaria de romance gótico.  Sandra Guardini Vasconcelos, em Dez Lições sobre o Romance Inglês do Século XVIII (2002), salienta que

[…] como uma corrente subterrânea, já no decênio de 1740 os graveyard poets contestavam o racionalismo e o equilíbrio preconizado pelo Iluminismo,  produzindo uma poesia de desafio e inspiração divina que, além de advogar o  sentimento e a paixão, colocava em cena temas e cenários que se tornariam  caros ao romance gótico: a morte, o medo, a noite, gemidos, sepulturas.  (121)

Nesse tipo poemático, não se trabalhou apenas um vocabulário específico para o universo imagético do sombrio, do macabro e do fantástico, mas também gerou-se um gosto por esse universo, que abandonava o racionalismo e buscava o psicológico e a introspecção melancólica, o que prefigurou a tendência romântica de abordar a beleza em sentimentos “negativos”, como se identifica em “Dejection: an Ode”  (1802) de Samuel Taylor Coleridge e “Ode to Melancholy” (1819) de John Keats.

A propósito dessa união nascida entre a sublime beleza melancólica, o estranho e o gótico, Umberto Eco, em A História da Beleza (2004), mostra que

A partir da segunda metade do século XVIII, afirma-se efetivamente o gosto pelas arquiteturas góticas que, em relação às medidas neoclássicas, não podem deixar de parecer desproporcionais e irregulares, e esse gosto pelo irregular e o informe leva, justamente, a uma nova apreciação das ruínas.  […] O gosto pelo gótico e pelas ruínas não caracteriza apenas o universo do visivo, mas também a literatura […] Paralelamente, florescem a poesia cemiterial, a elegia fúnebre, uma espécie de erotismo mortuário que irá se prolongar e chegar ao ápice da morbidez com o Decadentismo do século XIX (mas que já fizera sua aparição na poesia seiscentista […] Assim, enquanto alguns representam paisagens ou situações aterrorizantes, outros interrogam-se sobre o porquê do horror suscitar deleite, dado que até então a idéia de deleite e prazer fora associada, ao contrário, à experiência do Belo. (285 e 288).

Assim, entendemos que o gótico e a melancolia, e os subprodutos dessa relação, constituíam-se na matéria-prima poética para Poe e Alphonsus. Ademais, percebemos serem esses dois poetas vozes herdeiras e ecoantes, cada um a seu modo, da beleza bizarra, mas sublime. Ratifica essa idéia Octavio Paz, no capítulo “Analogia e Ironia” de Os Filhos do Barro – do Romantismo à Vanguarda (1974):

Na realidade, os verdadeiros herdeiros do romantismo alemão e inglês são os poetas posteriores aos românticos oficiais, de Baudelaire aos simbolistas. […] A poesia francesa da metade do século passado […] é inseparável do romantismo alemão e inglês: é sua prolongação, mas também sua metáfora. É uma tradução, na qual o romantismo volta-se sobre si mesmo, contempla-se e se transpassa, se interroga e se transcende. É o outro romantismo europeu. (92)

Convictos da conexão entre melancolia e gótico, decidimos explorar como eles se entrelaçaram na produção literária de Poe e de Alphonsus. O ponto de fusão é, em essência, é a consciência da finitude, isto é, a morte, que, num primeiro momento, deixa sua marca na dor da morte do outro, daí a melancolia realçada por imagens góticas e, mais tarde corvejará “a Indesejada das gentes”, no dizer de Manuel Bandeira, sobre a existência do próprio poeta.

Octavio Paz, no mesmo capítulo citado acima, propõe uma explicação que se aplica ao procedimento estético adotado por Alphonsus e Poe:

O grotesco, o estranho, o bizarro, o original, o singular, o único, todos estes nomes da estética romântica e simbolista não são mais que distintas maneiras de se dizer a mesma palavra: morte. Em um mundo no qual desapareceu a identidade – ou seja, a eternidade cristã –, a morte se transforma na grande exceção que absorve todas as outras e anula as regras e leis. O recurso contra a exceção universal é duplo: a ironia – a estética do grotesco, o bizarro, o único – e a analogia, a estética das correspondências. (100)

O que quisemos sondar, então, foi o modus operandi desses poetas, que burilaram versos com instrumentos estéticos muito semelhantes em nações e culturas diferentes, cada um compondo obras ímpares.

Complementando tudo isso, está a idéia do sublime – um dos conceitos-chave na estética do final do século XVIII bem como nas propostas do Romantismo europeu. Edmund Burke,em A Philosophical Enquiry into the Origin of our Ideas of the Sublime and Beautiful (1757),  dá início a uma tendência conceitual muito forte. Essa reconceitualização do sublime feita por Burke foi aproveitada pelos românticos. O sublime já estava intimamente ligado à experiência de Deus na natureza (portanto, direta ou indiretamente refletido no panteísmo de William Wordsworth), e o efeito dessa vivência como sendo uma elevação da alma em conjunto com um sentimento de ficar estupefato diante da magnificência da divindade natural. Porém, Burke adiciona os fatores de imensidão, obscuridade, magnificência, e, em especial, temor ou terror, como elementos constitutivos do sublime:

O que quer que de alguma forma venha a excitar as idéias de dor, e perigo, isto é, aquilo que seja de alguma maneira terrível, ou tenha a ver com coisas terríveis, ou funcione de modo análogo ao terror, é fonte do sublime; isto é, produz a mais forte emoção que a mente é capaz de sentir. Digo a mais forte emoção porque estou convencido de que as idéias de dor são muito mais poderosas do que as que se originam pelo prazer. (Apud  ADAMS 310)1

Essa insistência de Burke na tecla do terror consolidou sua grande contribuição para o as idéias dos poetas da Graveyard School e para o estilo dos romancistas góticos dos séculos XVIII e XIX. Burke acreditava que uma idéia aterrorizante ou dolorosa criaria uma sublime paixão, fazendo a mente se concentrar somente nesse aspecto, produzindo uma suspensão momentânea de toda atividade racional. Isso soa como o alicerce da declaração de Poe quando teoriza que a morte de uma linda mulher é o mais poético e melancólico dos temas. Acrescentou Burke também a distinção entre o belo, que se prende à delicadeza, proporcionalidade, harmonia e prazer, em contraposição ao sublime, que tem a ver, como já dissemos, com a vastidão, a obscuridade, a irregularidade e a capacidade de suscitar terror/dor.

Poderíamos nos referir ao sublime como um salto estético estupefaciente; em outras palavras, é a elevação do espírito por meio de figuras que excedem a compreensão da mente, imobilizam-na, lançando a consciência a um estado de inefável assombro ou estupor (talvez o rapture em inglês). Pode-se dizer que no sublime literário temos a verticalidade e a excitante irregularidade da arquitetura gótica, enquanto que na beleza clássica se percebe a horizontalidade e a monótona proporcionalidade das ciências matematizantes do Renascimento. Entretanto, o sublime tem o poder de organizar os conflitos na mente racional, pois, ainda que misteriosamente, ele revela, ilumina, encanta e deleita. Intuímos, mais que compreendemos, a orgânica relação entre parte e todo, todo e parte.

Todavia, vale a pena salientar que George Santayana em The Sense of Beauty (1896) possibilita, senão uma releitura, ao menos uma explicação mais ampla do conceito do sublime, a qual pode auxiliar sobremaneira para se entender o caráter gótico e melancólico impresso nessa questão da sublimidade poética de Poe e de Alphonsus. Santayana, na mesma linha de pensamento de Burke, ensina-nos que, quando o terror figurativizado em arte é um terror subjugado, traz-nos, por isso mesmo, a sensação de sublimidade. Por outro lado, adverte para o fato de que não se deve confundir a causa do sublime com a sensação do sublime, ou seja, as figuras utilizadas para sugerir o terror não são em si a emoção de arrebatamento e liberação que se obtém. Em outras palavras, Santayana demonstra que

O gozo glorioso de se impor diante de um mundo incontrolável é na verdade tão profundo e completo, que fornece exatamente aquele elemento transcendente de valor que estávamos buscando quando tentamos compreender como a expressão da dor poderia por vezes deleitar. Ela pode criar deleite, não por si mesma, mas porque é equilibrada e anulada por prazeres positivos, especialmente por este tipo definitivo e vitorioso do desprendimento. (147)2

Relembra-nos também esse poeta e professor de Harvard que, por estarmos enredados no aspecto extrínseco dos objetos, pouquíssimo nos centramos em nós mesmos; contudo, a realização de nossa felicidade residiria na compreensão e fruição da natureza intrínseca desse universo ao nosso redor, o que acaba se tornando tarefa para a arte e para o amor, pois eles nos levam a um estado de unidade com a vida. Assim, com Santayana, temos de admitir que a sensação resultante do sublime, é essencialmente mística, universal, isto é, a unidade na diversidade, a diversidade na unidade. Entretanto, é uma experiência mística cruel, pois é a própria fascinação em relação a forças cósmicas que nos subjugam e consomem, mas que nos induzem a sentir um prazer gótico feroz, mesmo que isso implique pensarmos em nossa própria aniquilação como indivíduos.

Não é nem um pouco surpreendente, portanto, que Poe e Alphonsus, em seus respectivos estados de hiperconsciência, de si mesmos e do mundo a sua volta, tenham optado pela arte como instrumento agregador de uma sociedade disforicamente multifragmentada.

A percepção da beleza túrbida, a elevada nostalgia hipotímica, a apaixonante dor da tristeza, o fastio telúrico-esplênico, em resumo, o sentimento melancólico vital seria para esses dois poetas o fio condutor aterrorizante, o degrau (“sub-limen”, etimologicamente, a parte abaixo da verga superior de uma porta ou janela) do qual tomariam impulso para se lançar à sublimação e, por conseguinte, à sublimidade.

Tomemos alguns exemplos em versificação melancólica de Poe e de Alphonsus, a fim de poder visualizar melhor o que cada um dentro de seus ideais estéticos desejava atingir. Voltemo-nos primeiro para o soneto “Náufrago” de Alphonsus de Guimaraens:

E temo, e temo tudo, e nem sei o que temo.
Perde-se o meu olhar pelas trevas sem fim.
Medonha é a escuridão do céu, de extremo a extremo…
De que noite sem luar, mísero e triste, vim?

Amedronta-me a terra, e se a contemplo, tremo.
Que mistério fatal corveja sobre mim?
E ao sentir-me no horror do caos, como um blasfemo,
Não sei por que padeço, e choro, e anseio assim.

A saudade tirita aos meus pés: vai deixando
Atrás de si a mágoa e o sonho…E eu, miserando,
Caminho para a morte alucinado e só.

O naufrágio, meu Deus! Sou um navio sem mastros.
Como custa a minha alma a transformar-se em astros,
Como este corpo custa a desfazer-se em pó! (Guimaraens, Poesia Completa137)

As figuras de “trevas sem fim”, “escuridão do céu de extremo a extremo”, “noite sem luar”, “mistério fatal” (personificado em um corvo agourento), “choro”, “caminhar para a morte”, “o naufrágio”, “o náufrago”, “navio sem mastros”, “corpo” e “pó” somam-se nestes versos alexandrinos clássicos para fixar uma situação de desalento em relação à situação presente do eu-poemático. Esse desconforto existencial agudo tem suas raízes numa percepção aterrorizante de isolamento, separação de um porto seguro de que o náufrago se desprendeu, porém ao qual espera retornar numa auto-aniquilação ditosa, que retira a alma das trevas infinitas e a projeta ao luminoso espaço estelar. E é essa esperança o elo entre o terror do presente e a sublimidade do futuro. É, em última instância, o estendido período de tédio telúrico que realça, valoriza o sublime momento de ascensão, elevação, ainda que (e, talvez, especialmente porque) a desintegração da individualidade seja necessária. Isso se estabelece como a nostalgia do Paraíso perdido que só se torna suportável uma vez que as figuras frias do presente de decepções sedimentam a certeza da recompensa do acalentado e acalentante resgate futuro. Pode-se interpretar que este soneto remete ao próprio miserere do viajor solitário que almeja o oásis verdejante para alívio de cansaço e sofrimentos.

Focalizemos agora o poema “O Lago” de Edgar Allan Poe:

No verdor de meus anos, meu destino foi só
habitar,  de todo o vasto mundo,
uma região que amei mais do que todas,
tanto encantava a solidão de um lago
selvagem, que cercavam negras rochas
e altos pinheiros, dominando tudo.

Mas quando a Noite, em treva, amortalhava
esse recanto e o mundo, e o vento místico
chegava, murmurando melopéias,
então, ah! sempre em mim se despertava
o terror desse lago solitário.

Não era, esse, um terror, porém, de espanto,
mas um delicioso calafrio,
sentimento que as jóias mais preciosas
não inspiram, nem fazem definir;
nem mesmo o amor, nem mesmo o teu amor.

Reinava a Morte na água envenenada
e seu abismo era um sepulcro digno
de quem pudesse ali achar consolo
para seus pensamentos taciturnos,
de quem a alma pudesse, desolada,
no torvo lago ter um Paraíso. (Poe,  Ficção  Completa,  Poesia & Ensaios 932-933)3

Datado de 1827, esse poema revela que o jovem Edgar Poe, aos 19 anos de idade, já se preocupava em demonstrar em seus versos que terror nada teria a ver com coisas medonhas (“fright”/espanto). Figuras, normalmente disfóricas, tais como “o lago selvagem e solitário”, “negras rochas”, “a Noite em treva”, “o murmúrio do vento místico”, “a Morte na água envenenada”, “o abismo sepulcral”, “pensamentos taciturnos”, “o lago torvo”, não produzem medo ou espanto, mas terror, o que,  muitíssimo ao contrário, é a condição em conjunto com a solidão de alma, para se atingir o sublime (“tremulous delight”/calafrio delicioso), ao qual nem à imensa riqueza material (“jewelled mine”/jóias mais preciosas) nem o Amor (ainda que da pessoa de quem se deseje o amor) se comparam em termos de arrebatamento excelso (“Eden”/Paraíso).

Destarte, nítido é o poder de religação com a fonte edênica que o sublime exerce. O grau de autoconsciência do ser humano é diretamente proporcional: a) ao grau de angústia e ansiedade sobre as incertezas que se manifestam como conseqüência do existir humano; b) à intensidade do desejo e à necessidade de se recuperar o (suposto ou sonhado) estado paradisíaco de certezas e de tranqüilidade psíquica.

Interessante também é constatar que Poe menciona no primeiro verso “no verdor dos meus anos/in spring of youth”. Isso nos faz pensar que suas reflexões estéticas sobre o sublime são bastante precoces, pois 1827 é o ano em que publica Tamerlane and Other Poems em Boston, historiograficamente sua primeira obra. Não é muito diferente o caso de Alphonsus de Guimaraens, que teria entre 21 e 25 anos quando compôs “Náufrago”, que integra Kiriale, escrito entre 1891-1895, mas publicado somente em 1902.

O fato de desejo e morte coexistirem nos poemas de Poe e de Alphonsus intensamente leva-nos a passar pela teoria freudiana de Eros (instinto de vida)/Tânatos (instinto de morte), o que certamente vai ao encontro das idéias anteriormente discutidas: o gótico, a melancolia, o estranho, e o sublime. Cremos estar aí um dos ingredientes psicológicos primordiais nos textos poéticos dos autores que ora temos como foco de análise.

Mario Praz, em A Carne, a Morte e o Diabo (1996), afirma que desejo, luto, melancolia, beleza e horror já estavam nos versos de autores seiscentistas: “Podia-se extrair portanto beleza e poesia de matéria geralmente considerada ignóbil e repugnante; e isso sabiam já Shakespeare e outros elisabetanos, apesar de não teorizarem sobre isso.” (1996 45) Vale lembrar, portanto: especificamente,  no caso da figura da amada, ou da figura feminina desejada, ela tem-nos sido oferecida em versos eivados de uma volúpia do sofrimento que conduz ao macabro, ao terrível, ao estranho.

Essa visão, todavia, é veiculada pela voz masculina. Com freqüência, a percepção do feminino tem oscilado entre o sagrado (deusa, criança, anjo, mãe) e o profano (ninfa, prostituta, bruxa, femme fatale). Em ambos os pólos, o masculino sofre a interdição de seu desejo, porque em ambos os casos impera o conceito de pecado cristão e, conseqüentemente, culpa, mesmo que ocorra apenas o desejo sexual sem o ato em si. É neste ponto que a civilização transforma nossa psique num mecanismo masoquista. A solução para essa interdição será a transgressão para um mundo (o da arte) onde a mulher não é sagrada nem profana – ela é morta, cuja beleza o homem pode ter como objeto de desejo sem culpa. De certo modo, essa transgressão surge a fim de suportarmos o sofrimento da existência, ou seja, é uma satisfação substitutiva, uma sublimação, que, invariavelmente, é acompanhada de luto e melancolia, condição para a continuidade do desejo e do subseqüente  prazer gótico-melancólico.

Os poetas deste estudo empenharam-se na fusão do profano e do religioso: sentem o poder de Eros, mas o experimentam, sublimando-o, em Tânatos. Assim, a morte é o meio de sublimação.

Todo esse mecanismo de sublimação nos provoca a trazer à baila o desdobramento de diferentes estágios por que passa a anima masculina, analogamente a Eros. Aparentemente, parte-se de um envolvimento romântico-erótico que se transforma em uma subida para o degrau da devoção religiosa, alcançando o aspecto da sabedoria ou sapiência que transcende até mesmo a pureza e a santidade, criando-se a perfeita harmonia entre o consciente e o inconsciente, quando se procura o sentido da existência e religação com o todo universal.

Cremos que tanto Poe quanto Alphonsus deixam rastros dessa evolução/transformação de Eros, cada um, a seu modo, alcançando o derradeiro nível de harmonia em sua trajetória poética ascensional.

Alphonsus de Guimaraens insiste amiúde em figuras ascensionais como a escada, o caminho celestial, a subida, as asas angelicais, que em muitos versos resultam na paz do grande e esperado retorno da alma, e não do reencontro com a amada, pois como lemos em Escada de Jacó: “Afundam-se na terra as imagens lascivas / Não mais a comunhão dos beijos e salivas… / Amamo-nos em vida: o pó fez-nos irmãos” (Guimaraens 2001 381). Aliás, esse regresso místico só poderia ser concretizado à la Ismália, ou seja, com a separação de corpo e alma; entretanto sem desvario nenhum agora, porque o poeta já teria atingido a sabedoria redentora: Memento homo, quia pulvis es, et in pulverem reverteris. Aqui estão alguns exemplos de diferentes poemas:

“SONETO DE UMA SANTA” (parte IV)

[…] Pude ver-te, Senhor destes meus versos,
Dominador dos áureos universos,
Iluminar o celestial caminho…

Fez-se ao redor de mim silente calma.
Para o teu seio voou toda a minha Alma,
Como um pássaro em busca de seu ninho. (2001, p. 449)

“SONETO XXXVII” (duas últimas estrofes)

[…] E vão-se as horas em completa calma.
Um dia (já vem longe ou já vem perto?)
Tudo o que sofro e que sofri se acalma.

Ah se chegasse em breve o dia incerto!
Far-se-á luz dentro de mim, pois minh’alma
Será trigo de Deus no céu aberto… ( 435)

“SONETO XXI” (da parte Caminho do Céu)

[…] Suba o Poeta escolhido a ebúrnea e diante
Dele os anjos iriais hão de cair de rastros!

E entre alas virginais de angélicas e rosas
Cego pelo fulgor da mansão do Noivado,
Feche contrito o Poeta as pálpebras chorosas.

E pensará: Para onde o caminho que trilho?
E o Pôr-do-sol largando o seu manto sagrado
Há de envolvê-lo assim como se fora um filho. (399)

Semelhantemente, Poe defende que a ascensão da alma traz mais júbilo do que a consumação do amor terreno, pois, conforme diz em “Israfael”, […] esta Terra é um mundo de doçuras e de dores / nossas flores nada mais são que flores.” (2001, p. 51). Proclama em Marginalia, que é uma coletânea de observações anotadas à margem nas páginas dos livros que costumava ler: “Não é ilógico supor que, numa existência futura, possamos considerar esta vida terrestre como um sonho” (Poe, Ficção Completa, Poesia & Ensaios 173). E em Eureka, cujo subtítulo é Um Poema em Prosa, por meio de raciocínio cosmogônico de equivalências entre céu e terra,  Poe assegura enfaticamente que cada personalidade se fundirá no coração divino, numa das etapas do grande plano cósmico, que vai desde o florescer embrionário de uma semente, uma criança, um planeta, uma galáxia ou um universo até a sua eventual reunião com a força criadora de tudo isso:

Todas essas criaturas, todas, a que chamas animadas, como aquelas a que negas a vida, sem razão melhor do que a de não as veres em ação, todas essas criaturas têm, em grau maior ou menor, capacidade para o prazer e a dor: mas a soma geral de suas sensações é, precisamente, aquele total de Felicidade que pertence de direito ao Ser Divino quando concentrado em Si Mesmo. Todas essas criaturas, também, são inteligências mais ou menos conscientes; em primeiro lugar, conscientes de uma identidade própria; em segundo lugar, e a relances indeterminados e débeis, conscientes de uma identidade com Deus. Imagina que, dessas duas espécies de consciência, a primeira enfraquecerá e a segunda se fortalecerá, durante a longa sucessão de séculos, que devem defluir, até que essas miríades de Inteligências individuais se venham a fundir – quando se fundirem as brilhantes estrelas – em Uma Só. (293)4

Ademais, testemunhamos atitude de desprendimento para com a amada comparável à que vimos em Alphonsus. Consideremos “Lenora”, que, curiosamente,  traz no título o nome da amada perdida em “O Corvo”, cujo sujeito poemático não consegue se desapegar nem da noiva morta nem da dor resultante. Atentemos para os versos finais de “Lenora”, que não só ascende, mas vive o beatífico reencontro:

Ide! Meu coração não pesa! Sem canto funeral,
Quero seguir o anjo em seu vôo com um velho hino triunfal.
Não dobre mais o sino! Que a alma em seu prazer sagrado
Não o ouça, triste, ao ir deixando o mundo amaldiçoado.
Ela se arranca aos vis demônios da terra e sobe aos céus.
Do inferno, à altura se conduz e lá, na luz dos céus,
Livre do mal, da dor, se assenta num trono, aos pés de Deus! (Poe, Ficção Completa, Poesia & Ensaios 941) 5

Assim, com base em proposições freudianas, procuramos contemplar o panorama em que Eros e Tânatos, os instintos de vida e de morte, respectivamente, encaixam-se na concepção estética de Alphonsus e de Poe. Parece-nos bastante aceitável afirmar que para ambos os poetas Tânatos foi uma válvula de escape artística em sociedades extremamente marcadas pela interdição moral e religiosa em relação ao corpo feminino. Ao menos em uma fase de suas obras, o cadáver da amada se torna cada vez mais atraente à medida que sua pele empalidece e as maçãs do rosto e os lábios se ruborizam, e paradoxalmente encarna uma mulher virginal idealizada. Porém, a mulher tem de morrer objetivando propósitos androcêntricos maiores:  acentuar angústia e a melancolia da voz poemática masculina e servir de inspiração estética, na qual reside uma força oculta – a sublime beleza – que triunfa sobre a morte.

Por fim, em um momento de sublimação mais amplo, quando os poetas dão a impressão de estarem mais preocupados com sua própria morte, seguindo os degraus evolutivos de Eros propostos por Jung, o amor entre o eu-lírico e a mulher é de natureza muito mais fraternal, reflexo de um almejado retorno às condições primevas da Criação.

Portanto, esses poetas esmeraram-se em propor um retorno ao universal como sublimação última e permanente, isto é, não a morte como passagem para um estado desconhecido ou de mero reencontro romântico com a amada, mas para uma condição de total diluição no todo cósmico, para o total esvaziamento da personalidade humana e para a plena e inefável (re)integração.

 
 
Notas
 

(A seguir, estão os trechos em inglês para os quais foi apresentada uma tradução no texto do trabalho.)

1 Whatever is fitted in any sort to excite the ideas of pain and danger, that is to say, whatever is in any sort terrible, or is conversant about terrible objects, or operates in a manner analogous to terror, is a source of the sublime; that is, it is productive of the strongest emotion which the mind is capable of feeling. I say the strongest emotion, because I am satisfied the ideas of pain are much more powerful than those which enter on the part of pleasure.

2 The glorious joy of self-assertion is indeed so deep and entire, that it furnishes just that transcendent element of worth for which we were looking when we tried to understand how the expression of pain could sometimes please. I can please, not in itself, but because it is balanced and annulled by positive pleasures, especially by this final and victorious one of detachment.

3
In spring of youth it was my lot
To haunt of the wide world a spot
The which I could not love the less-
So lovely was the loneliness
Of a wild lake, with black rock bound,
And the tall pines that towered around.

But when the Night had thrown her pall
Upon that spot, as upon all,
And the mystic wind went by
Murmuring in melody-
Then- ah then I would awake
To the terror of the lone lake.

Yet that terror was not fright,
But a tremulous delight-
A feeling not the jewelled mine
Could teach or bribe me to define-
Nor Love- although the Love were thine.

Death was in that poisonous wave,
And in its gulf a fitting grave
For him who thence could solace bring
To his lone imagining-
Whose solitary soul could make
An Eden of that dim lake.

4 All these creatures — those which you term animate, as well as those to whom you deny life for no better reason than that you do not behold it in operation — these creatures have, in a greater or less degree, a capacity for pleasure and for pain: — but the general sum of their sensations is precisely that amount of Happiness which appertains by right to the Divine Being when concentrated within Himself. These creatures are all too, more or less conscious Intelligences; conscious, first, of a proper identity; conscious, secondly and by faint indeterminate glimpses, of an identity with the Divine Being of whom we speak — of an identity with God. Of the two classes of consciousness, fancy that the former will grow weaker, the latter stronger, during the long succession of ages which must elapse before these myriads of individual Intelligences become blended — when the bright stars become blended — into One. Think that the sense of individual identity will be gradually merged in the general consciousness — that Man, for example, ceasing imperceptibly to feel himself Man, will at length attain that awfully triumphant epoch when he shall recognize his existence as that of Jehovah. In the meantime bear in mind that all is Life — Life — Life within Life — the less within the greater, and all within the Spirit Divine.

5 “Avaunt! avaunt! from fiends below, the indignant ghost is riven-
From Hell unto a high estate far up within the Heaven-
From grief and groan, to a golden throne, beside the King of Heaven!
Let no bell toll, then,- lest her soul, amid its hallowed mirth,
Should catch the note as it doth float up from the damned Earth!
And I!- to-night my heart is light!- no dirge will I upraise,
But waft the angel on her flight with a Paean of old days!”

 
 
Referências
 

ADAMS, Hazard.Critical Theory since Plato. United States of America : Harcourt Brace Jovanovich, 1971.

BUENO, Alexei. Correspondência de Alphonsus de Guimaraens. Rio de Janeiro : Academia Brasileira de Letras, 2002.

BURKE, Edmund. A Philosophical Enquiry into the Origins of Our Ideas of the Sublime and the Beautiful. Ed. James T. Boulton. London: University of Notre Dame Press, 1959.ECO, Umberto. História da Beleza. Tradução Eliana Aguiar. Rio de Janeiro : Editora Record, 2004.

FREUD, Sigmund. Obras Completas. vol.14 Rio de Janeiro: Imago, 1974.

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SANTAYANA, George. The Sense of Beauty. New York : Dover Publications, Inc. 1955.

VASCONCELOS, Sandra Gonçalves. Dez Lições sobre o Romance Inglês do Século XVIII. São Paulo: Boitempo Editorial, 2002
 
 

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