O trabalho da memória: entre a história e o testemunho 

Débora Racy Soares
Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP/FAPESP
 
 

Questionar o que seja memória pode nos levar a distintas respostas, tão heterogêneas conforme a área de conhecimento que se privilegie. Antes, porém, de pensarmos sobre a configuração deste tema na literatura, propomos uma breve reflexão sobre uma outra instância discursiva: a fisiologia da memória. Visando ao (re)conhecimento de outro campo de estudo, poderemos não só entender melhor o que nos parece mais familiar, como também – mutatis mutandis – estabelecer algumas analogias interessantes. Um passeio por uma área, aparentemente, tão distinta do universo literário, como a neurobiologia ou a fisiologia da memória, pode ser extremamente revelador, pois ajuda a compreender como as lembranças são processadas, problematizando o conceito de testemunho na literatura. Chegaremos a essa questão oportunamente.

Os estudos atuais sobre a fisiologia da memória ensinam que ela se divide em vários tipos, com correspondências em áreas cerebrais diferentes. A memória do trabalho, por exemplo, é quase instantânea, pois dura apenas alguns segundos. Localizada na região pré-frontal do cérebro, ela é responsável por guardar informações que logo serão descartadas, como a anotação de um endereço ou de um número telefônico. Subdivide-se ainda em outras memórias: as de procedimentos e as de atos motores que abrangem atividades como digitar um texto, nadar ou dirigir.

O que conhecemos, genericamente, por memória, corresponde à memória declarativa – entre os especialistas no assunto – que é responsável pelo armazenamento de eventos, de rostos, de sequências de fatos, de conceitos e ideias; talvez, por isso, seja a mais pesquisada e conhecida do ponto de vista bioquímico e neuroanatômico. Os especialistas preferem falar dessa memória no plural, visando a enfatizar sua multifuncionalidade. Formadas no hipocampo, quando muito traumáticas, aversivas, vigilantes ou estressantes, acabam por mobilizar outras regiões cerebrais, como a amígdala (localizada no lobo temporal) e a região média do córtex.

Para nos lembrarmos de um evento, três áreas do cérebro precisam ser mobilizadas e, dentre elas, o papel do córtex é fundamental, já que sem a sua ativação não há memórias declarativas. É do córtex (entorrinal e parietal) que se evocam as lembranças com mais de trinta dias. Sabe-se também que para a memória funcionar é necessário que cópias ou registros sejam feitos e armazenados em outras regiões do cérebro. É como se, após o cérebro ter registrado um acontecimento memorável, este fosse estocado em vários arquivos, todos dentro de uma pasta maior. Nessas pastas estão armazenadas informações que não podem ser esquecidas: informações reguladas, em grande parte, por nossos afetos e emoções, como os pesquisadores são levados a acreditar.

É interessante perceber que os avanços e as descobertas médico-científicas dos últimos séculos vieram a validar algo de que os gregos já tinham conhecimento, certamente que à sua maneira sobre a memória. Por exemplo, eles já tinham consciência de que havia mais de um tipo de memória e de que a capacidade de memorização poderia ser aumentada, através do treinamento adequado. Sabiam também que a memória registra melhor acontecimentos surpreendentes que causam algum tipo de “impressão sensorial” subjetiva (Yates 54). Assim, a “imagem mental” ficaria inscrita como se “imprim(e) um selo na cera com um sinete” (Yates 54). Os gregos consideravam a Mnemosyne como a mãe das musas e valorizavam a “arte da memória” como um bem a ser conquistado, através de um rigoroso treinamento, elaborado a partir dos “lugares da memória” (Yates 11). Além de reconhecerem o efeito do impacto das paixões sobre a capacidade de memorização, também discorriam sobre os loci da memória: uma espécie de arquivo de dados, do mundo clássico.

Segundo De Oratore de Cícero, o poeta grego Simônides de Ceos teria inventado a “arte da memória”. Segundo relata o filósofo e jurista romano, o poeta participava de um banquete oferecido por Scopas – um nobre da Tessália – e havia preparado um poema para seu anfitrião. Nesse poema, também louvava Castor e Pólux, fato que teria deixado Scopas enciumado. Assim, o anfitrião, mesquinhamente, comunicou ao poeta que pagaria somente pela metade do poema. A outra metade deveria ser paga pelos deuses gêmeos, Castor e Pólux, que igualmente tinham sido homenageados nos versos. Depois de algum tempo, Simônides retirou-se do banquete para atender dois jovens que o aguardavam do lado de fora. Durante sua ausência, o teto do salão desabou, matando Scopas e os demais convidados. Os estragos causados pelo desabamento impossibilitaram o reconhecimento dos corpos. Os parentes, incapazes de identificar suas vítimas e realizar os funerais, ficaram desesperados. Ceos, no entanto, recordava-se dos lugares dos convivas à mesa, o que possibilitou a identificação dos corpos. A partir desse feito, o poeta grego teria descoberto que a “disposição ordenada é essencial a uma boa memória” (Yates 18). Desse modo, esse princípio fundamental logo seria incorporado à técnica mnemônica clássica: era preciso “imprimir na memória uma série de loci, lugares” (Yates 19).

Na Antiguidade, era indispensável treinar a memória para conquistar uma “memória artificial”, através da prática rigorosa de alguns exercícios específicos. Em uma época sem imprensa, nem papel, não havia como registrar e tomar notas de dados importantes; portanto, o domínio das técnicas mnemônicas era um bem  altamente valorizado. A “memória artificial”, consolidada pelo treinamento, fundamentava-se basicamente em lugares e imagens. A visão era considerada o sentido primordial, pois a técnica ensinava a visualizar, mentalmente, imagens e lugares, de forma a constituir uma verdadeira “arquitetura da memória” (Yates 21). Assim, a arte da memória era uma espécie de “escrita interior” que ajudava a “colocar em lugares específicos” o que tinha sido visto e ouvido, além de exercitar a capacidade de “falar de memória”, habilidade essencial para poetas e oradores (Yates 23).

A memória é uma das partes que compõem o Ad Herennium (ca. 86-82 a. C.), um importante tratado romano, de autor desconhecido, cuja autoria teria sido erroneamente atribuída a Cícero, durante a Idade Média. Nesse tratado, a memória participa das cinco instâncias retóricas – inventio, dispositio, elocutio, memoria, pronuntiatio – sendo um dos saberes que devem ser dominados pelo bom orador. De acordo com este tratado, a memoria seria a “percepção firme, pela alma, das coisas e das palavras” (apud Yates 25). Sendo o domínio da “memória para palavras” mais difícil de conquistar do que o da “memória para coisas”, aquele deveria ser exercitado através de determinadas associações (Yates 26). Para que as “imagens” possam “permanecer por mais tempo na memória”, a “mente” deve ser “estimulada por algo novo ou excepcional” (apud Yates 26-27). Assim, nos lembramos melhor de “incidentes de nossa infância” e de “algo indigno, desonroso, incomum, grande, inacreditável ou ridículo” (apud Yates 26-27).

Recorremos, dessa maneira, aos saberes dos gregos e ao tratado romano Ad Herennium procurando demonstrar como alguns conhecimentos antigos sobre a memória foram comprovados por estudos científicos, muitos séculos depois. Os gregos, por exemplo, além de já terem estabelecido uma espécie de tipologia da memória, também praticavam o treinamento da “memória artificial”, a partir da escolha de lugares apropriados. Aristóteles, por sua vez, atentava no apêndice De memoria et reminiscentia, do seu De anima, para a diferença entre memória e lembrança ou reminiscência. A memória, para ele, seria um “esforço deliberado” para encontrar “aquilo de que se quer lembrar”, enquanto a lembrança seria a “recuperação do conhecimento ou da sensação ocorrida” (apud Yates 54). Oferecendo justificativas filosóficas e psicológicas para suas reflexões, Aristóteles pondera sobre as dificuldades para se lembrar de algo e procura por suas causas. Para o filósofo, a dificuldade em recordar está associada à ausência da “causa estimulante” e também da utilização inadequada dos lugares da memória (apud Yates 55). Os estudos fisiológicos da memória sinalizam que há diversas situações excessivas, excluídas as patológicas, que poderiam inviabilizar a formação de uma dada memória.

O Ad Herennium mencionava a importância das emoções para o estabelecimento da memória. Ivan Izquierdo, um dos maiores especialistas brasileiros em fisiologia da memória, comprovou, junto com sua equipe de pesquisadores, uma hipótese aventada por Antonio Damasio: a memória é capaz de guardar emoções. Segundo Izquierdo, a parte informacional ou cognitiva de um acontecimento é registrada no hipocampo; já sua parte emocional fica gravada na amígdala e no córtex. Para melhor esclarecer a esquematização, vamos relembrar do banquete oferecido por Scopa e do desabamento do teto da sala dos convivas. Hoje sabemos que se os convivas tivessem percebido que o teto estava na iminência de desabar e tivessem saído correndo, essas percepções estariam armazenadas em seus hipocampos, pois dizem respeito ao conhecimento do fato. Já as prováveis emoções suscitadas pelo desabamento – susto, medo, pavor – teriam ficado arquivadas em suas amígdalas e em seus córtices. Pesquisas recentes comprovaram que as emoções sempre ficam armazenadas, embora isso nem sempre aconteça com a parte informacional ou cognitiva de um fato. Assim como o estresse é fator inibidor da evocação da memória, os cientistas validaram um dado que já havia sido sugerido pelos tratados mnemônicos da Antiguidade: se “algo não (for) suficientemente horrível, não o guardamos”, porém “se (for) demasiado horrível, tampouco o fazemos” (Izquierdo, A Memória s/p).

É curioso perceber que, quando solicitadas a se lembrar de alguma tragédia, as pessoas reagem da seguinte forma: (a) após alguns dias do fato acontecido, elas se lembram do incidente com muitos detalhes; (b) passado algum tempo, essas pessoas começam a apresentar dificuldades quando solicitadas a falar daquele episódio em detalhes. Os pesquisadores constataram que nossa memória trabalha no sentido de realizar, ao longo do tempo, um apagamento gradual dos detalhes, embora seja bem pouco provável que ela se esqueça de um evento que tenha sido traumático. Isso ocorre porque somente os detalhes ausentes de vínculo emocional são progressivamente legados ao esquecimento. Quando há tal vínculo, os detalhes são preservados e permanecem ao longo da vida, embora haja casos conhecidos de apagamento total dos detalhes emocionais, em decorrência de situações pós-traumáticas, como um atentado à bomba.

Como nosso cérebro reage diante da dor e do sofrimento? Os neurofisiologistas explicam que certos mecanismos de regulação podem suprimir determinadas lembranças. Ainda que seja possível recordar os fatos desencadeadores do mal-estar, não seria possível recuperar a sensação de dor e de sofrimento. Do ponto de vista dessa especialidade médica, o apagamento da memória estaria associado à liberação, pelo organismo, de potentes analgésicos – as (beta)endorfinas – com efeito amnésico. Dessa forma, as memórias persistentes relacionadas a eventos traumáticos só sobreviveriam ao tempo porque seriam determinadas por alterações bioquímicas, em sínteses protéicas, de nossos circuitos cerebrais. Em outras palavras, a recorrência da memória seria responsável não só pela ativação das células do hipocampo, como também pela alteração da   morfologia dessas células. Quanto mais essas são ativadas, através de sinapses excitatórias, mais difícil seria se livrar da memória. A impossibilidade de se livrar da memória, a concepção de escrita enquanto processo catártico, capaz de liberar a memória traumática aprisionada que inviabilizaria – do ponto de vista psicanalítico – a cura, são apenas algumas das questões abordadas pela literatura de testemunho, um gênero recorrente no século XX, especialmente quando relacionado ao contexto da Shoah.

As pesquisas em neurofisiologia sinalizam que não podemos, de forma consciente, controlar nossa memória. Essa função caberia ao cérebro que decidiria, através do córtex pré-frontal, o que seria conservado. Porém, segundo Izquierdo, podemos deixar bem claro ao nosso cérebro – e ele não explica como fazemos isso – quais informações interessariam ser mantidas; a partir daí, o cérebro criaria memórias necessárias que seriam armazenadas no hipocampo. Do ponto de vista da neurociência, a memória é definida como a “aquisição”, “conservação” e “evocação” de “informações que podem ser de qualquer tipo” (Izquierdo, Sobre a memória s/p).

Se a tradição clássica considerava o lembrar uma arte, o esquecer também é necessário, do ponto de vista psicológico. Entretanto, o esquecimento, sobretudo o coletivo, pode se transformar numa “arte” política, capaz de legitimar determinadas formas de poder. É conhecido o fato de os antigos governantes egípcios eliminarem dos monumentos os nomes de seus inimigos políticos. Porém, antes de abordarmos o apagamento sistemático da memória histórica, nos interessa entender como ocorre a supressão da memória na perspectiva psicanalítica e fisiológica.

Para esquecer, o cérebro utiliza mecanismos conhecidos como bloqueio, extinção e repressão. É a partir de 1930, com Freud, que o termo repressão ou recalque ganha destaque, passando a significar o mecanismo mental inconsciente que suprime ideias ou impulsos inaceitáveis pela consciência. O material reprimido, no entanto, continua a constituir a psique, apesar de permanecer no inconsciente. O acesso a esse material só seria possível através da escuta psicanalítica, pois ele não viria à tona através da recordação voluntária, consciente. O processo de cura estaria, portanto, associado à eficácia da rememoração de lembranças esquecidas. Para Freud, a introjeção do superego seria responsável pelo recalque e pelas dificuldades que surgem durante o processo analítico. A resistência à cura apontaria a força do recalque.

Do ponto de vista da fisiologia, há três formas de perder a memória. Segundo  Izquierdo, a primeira é o esquecimento propriamente dito, decorrente da atrofia, funcional ou morfológica, das sinapses. A segunda é a extinção da memória advinda da falta de estímulo ou uso. Por fim, a repressão, normalmente gerada de forma voluntária. Aqui a fisiologia se encontra com a psicanálise ao reconhecer a repressão como mecanismo de defesa que impede a lembrança de fatos traumáticos. Na repressão, a memória que fica guardada, como se tivesse sido bloqueada clandestinamente, pode ser acionada (trigger) diante de situações específicas, associadas ao trauma inicial. Embora haja memória de acontecimentos que não desejamos lembrar, ela volta involuntariamente, quando suscitada por estímulos parecidos aos que a originaram. Como vimos, as memórias mais marcantes são aquelas carregadas de altas doses de emoção. Sabe-se que muitas memórias desaparecem quando os sentimentos que a geraram deixam de existir, o que fortalece a tese da importância das emoções para a manutenção da memória.

Nesse sentido, recuperar determinadas emoções pode desencadear o doloroso processo de ressuscitação de velhos fantasmas. Porém, valida Izquierdo, a memória é deveras traiçoeira, pois edita o que está armazenado, acrescentando ou suprimindo informações. Há dois processos em curso no que concerne à memória: a transformação da realidade em códigos cerebrais – quando a adquirimos – e a transformação dos elementos desse código em uma nova versão – quando a invocamos. Os pesquisadores parecem concordar, portanto, que entre o ocorrido e o lembrado há uma lacuna subjetiva que precisa ser considerada. Se o ocorrido não corresponde, ipsis litteris, ao lembrado, o que significa falar, então, em literatura de testemunho?  Será que significa mobilizar lembranças, mais do que acontecimentos reais?

À máxima do pensador italiano Norberto Bobbio – “somos o que nos lembramos” – Izquierdo acrescenta: “somos também o que escolhemos esquecer” (Sobre a memória s/p). Do ponto de vista fisiológico, tão importante quanto lembrar é a capacidade de esquecer, de desocupar espaços para novas informações. Do ponto de vista psicológico, esquecer é necessário para “podermos pensar melhor, não enlouquecermos e conseguirmos sobreviver neste mundo” (Sobre a memória s/p). Para Izquierdo, por sua vez, as memórias “inconvenientes”, que “causam danos”, “memórias de sofrimentos”, portanto, deveriam ser esquecidas ou tornadas “menos acessíveis à recordação”: seria bom “perdê-las mesmo” (Sobre a memória s/p). Já Nietzsche, discorrendo sobre a dinâmica envolvida no processo de memorização, constatara ser “totalmente impossível viver sem o esquecimento” (apud Seligmann-Silva, Reflexões 60).

A essa altura, após percorrermos os meandros da memória e de seu funcionamento, nos perguntamos: afinal, qual seria a possível relação de todo o exposto com a literatura? Para tanto, iniciamos recorrendo a Walter Benjamin e suas teses sobre o conceito de história. Um ponto importante a ser entendido, antes de nos aprofundarmos no assunto, é o conceito de dialética utilizado pelo autor citado.

Ancorado na visão hegeliana-marxista, sua dialética caminha em direção a uma suposta superação (Aufhebung) das contradições entre o passado e o presente. Para que haja superação, é preciso que o presente resgate o passado, reconhecendo-se nele. Assim, o trabalho da memória declarativa é fundamental, pois ela é responsável pelo agenciamento do que será ou não lembrado, a longo prazo. Quando se trata de reconstituir a memória coletiva, certos aparelhos ideológicos podem funcionar na contramão de outras histórias possíveis, pois operariam no sentido de promover o esquecimento de determinados fatos, isso não sem antes manipular o que deve ser constantemente lembrado. A manipulação e a falsificação dos registros da memória é um ponto a ser considerado para os que se dedicam à revisão crítica da história. Portanto, é fundamental compreender a concepção de história que perpassa os escritos de Benjamin. Quando a ela se refere, Jeanne Marie Gagnebin usa o termo “história aberta”. Assim como Proust, Benjamin tinha como preocupação salvar o passado no presente, graças à percepção de uma semelhança que transforma os dois. Transforma o passado porque este assume uma nova forma, que poderia ter desaparecido no esquecimento; transforma o presente porque este se revela como realização possível da promessa anterior – uma promessa que poderia se perder para sempre, que ainda pode ser perdida se não for descoberta e inscrita nas linhas atuais (Gagnebin, Walter Benjamin 16).

Michael Löwy, ao comentar a V tese de Benjamin sobre o conceito de história,  retoma o percurso de Krista Greffrath para entender seu significado. Segundo ele, essa tese pressupõe a “historicização mais radical da verdade histórica”, pois o próprio passado é submetido ao processo (Löwy 62). Em outras palavras, já que a história é contínua, não pára, não seria possível conceber o passado de forma estanque. Essa concepção de história como algo inacabado, em aberto, é um dado importante que precisa ser bem compreendido, pois fundamenta todas as teses de Benjamin. É a partir dessa concepção que o filósofo, em sua mais conhecida e citada tese, a IX, apresenta a imagem do anjo da história, inspirado na gravura “Angelus Novus”, de Klee, que comprou em Munique, ainda jovem. Nessa tese, Benjamin inverte a visão da história e, por conseguinte, desmistifica a ideia de progresso – uma verdadeira “tempestade” – tão cara à vertente positivista do evolucionismo histórico (apud Löwy 87-95).

A sexta tese de Benjamin rejeita a concepção positivista da história, ou seja, aquela que encara a mesma sob a ótica do vencedor, da classe dominante. Inicialmente, Benjamin retoma o problema da fé em uma concepção historicista da história. Conhecer a história “tal como ela propriamente foi” é ratificar certas visões dominantes (apud Löwy 65). Depois reconhece: através do trabalho da memória, seria possível “apoderar-se de uma lembrança” e inverter a ordem linear da história oficial que aposta, cegamente, na ideia do progresso ininterrupto (apud Löwy 65). O momento de perigo parece ser, justamente, aquele em que se aguça a consciência histórica, capaz de mobilizar uma outra imagem do passado. É nesse momento, de “lampejo” da imagem dialética, que parece haver alguma esperança de superação das contradições entre o passado e o presente. O historicismo, como diz o filósofo alemão, “culmina legitimamente na história universal”, isenta de “qualquer armação teórica”, pois seu “procedimento é aditivo” (Benjamin 231).  Falsificando a pesquisa objetiva, o historicismo “acaba(ria) por mascarar a luta de classes e por contar a história dos vencedores” (Gagnebin, Memória 62).

Essa concepção de história linear, positivista, progressista, costuma figurar nos manuais e livros do ensino médio e fundamental. Certamente a história brasileira seria outra se Tiradentes ou Zumbi dos Palmares tivessem testemunhado. Os estudos literários que procuram valorizar as narrativas e os relatos biográficos, dentro do gênero testemunho, ganham quando pensam a literatura a partir do ponto de vista da “história aberta” benjaminiana. Se, por um lado, essa concepção de história pode sinalizar a inevitabilidade da catástrofe, por outro, também sugere a possibilidade de movimentos de emancipação. Desse modo, a história passa a ser encarada como um campo aberto de possibilidades, cujo futuro – antes de ser o resultado previsível de um processo linear e irreversível – poderia ser reinventado. O passado, por sua vez, teria a possibilidade de ser reescrito a partir da perspectiva presente, de forma a impedir que o trem da história descarrile num futuro abismal. Contra a história de mão única, praticada pela historiografia dominante, Benjamin convoca a abertura em relação ao passado, e também ao presente e ao futuro.

Assim, refletir sobre o gênero testemunho implica pensar nas relações entre história, memória e ficção. Até que ponto história e testemunho seriam equivalentes? Quais seriam os limites entre o universo do testemunho e o da ficção? Será que a memória poderia recuperar o passado, sem editá-lo? O que seria “relato pessoal” e “verdade”, “realidade” e “lenda”? (Sarlo 17). Mais do que responder a essas questões, nos interessa problematizar alguns conceitos e encaminhar a reflexão.

Como propõe Benjamin, devemos aprender a encarar o instante de perigo e investigar outras imagens do passado, libertando os recalques históricos sob a luz do presente. A concepção benjaminiana de história, além de desconstruir o impulso legitimador do grande relato, instaura a ideia de descontinuidade histórica. Assim, a reboque desta visada crítica, a noção tradicional de progresso é posta em xeque. A relação entre o passado e o presente, estabelecida por Benjamin, não funciona dentro do paradigma positivista, orientado pela cronologia linear e fundado na progressividade histórica. Que fique claro: quando o filósofo apresenta sua teoria da história, não está, em absoluto, falando da necessidade de trazer o passado, como repetição, ao presente. Pelo contrário, o passado deve surgir reatualizado, iluminando, não só a si mesmo, mas também reordenando o presente e interferindo nos rumos do futuro. Proust, que teria influenciado Benjamin, acreditava que o passado estava perdido e retornava – quando evocado – de forma diferente. Talvez suas buscas tenham aberto o caminho para as descobertas fisiológicas atuais: já mencionamos que a memória, ao recuperar os fatos, opera edições, alterando o registro original. Nesse sentido, o registro original estaria, para sempre, perdido no tempo do inconsciente? A busca seria vã? O passado, “ao ressurgir no presente” não é o mesmo; “ele se mostra como perdido e, ao mesmo tempo, como transformado por esse ressurgir; o passado é outro, mas, no entanto, semelhante a si mesmo” (Gagnebin, Sete aulas 102).

O mundo das semelhanças, como sabemos, é o universo do inconsciente, mas, por ora, não vamos desenvolver essa ideia. A impossibilidade de resgatar o passado em sua totalidade, devido às armadilhas da memória, supõe que toda a lembrança estaria maculada por uma negatividade que pode ser lida no registro da perda ou da melancolia. A memória, enquanto instância agenciadora de lembranças e de esquecimentos, promoveria a recuperação dos acontecimentos de forma fragmentária: como se estivesse a reordenar nossa coleção imagética de cacos ou ruínas. As reflexões de Benjamin caminham nesse sentido, principalmente quando retoma o conceito de melancolia, em seu livro sobre o drama barroco alemão (Trauerspiel).

Sem nos atermos a essa questão, em específico, gostaríamos, contudo, de resgatar a noção de “história como trauma”, desenvolvida por Seligmann-Silva (2000), por corroborar a relação que está sendo aqui abordada. Segundo o pesquisador, a literatura do século XX tem sido marcada por acontecimentos traumáticos. Assim, seria possível compreender essa literatura da era das catástrofes sob um novo paradigma: o do testemunho. É preciso entender, entretanto, que essa categoria de leitura não pode ser confundida com o gênero autobiográfico, tampouco com a historiografia. O testemunho “apresenta uma outra voz, um “canto (ou lamento) paralelo”, que se junta à disciplina histórica no seu trabalho de colher os traços do passado” (Seligmann-Silva, Literatura e trauma 63, 80). Entender a “história como trauma”, portanto, pressupõe – em consonância com as ideias de Benjamin – suspender a ordem linear, positivista, da história, além de instaurar a necessidade de saber lidar com aqueles “traços do passado”, suspensos na memória, e recuperados, apenas, de forma fragmentária. Nesse sentido, podemos pensar que o trabalho da memória constitui-se em double bind: como necessidade e, ao mesmo tempo, impossibilidade de recuperação exata do acontecimento. Se a perspectiva do testemunho depende do trabalho flutuante da memória, até que ponto seria possível garantir a autenticidade de um relato? A problematização, tanto da verdade dos fatos, quanto dos limites entre história e ficção, não seria inerente ao enfoque testemunhal?

A questão do testemunho foi suscitada, na Alemanha, a partir da seguinte afirmação de Adorno: “escrever um poema após Auschwitz é um ato bárbaro, e isso corrói até mesmo o conhecimento de por que hoje se tornou impossível escrever poemas” (07, 26). Impulsionado pela Segunda Guerra Mundial, o discurso do testemunho tem sido definido, em âmbito germânico, de acordo com algumas características. A primeira delas está relacionada ao evento da Shoah como temática principal, o que implica considerar o ponto de vista subjetivo da vítima ou do sujeito que testemunha. A testemunha, que pode ser primária ou secundária, é alguém que não consegue superar um determinado acontecimento, devido ao seu impacto traumático. Nesse ponto, problematizam-se as possibilidades de representação, a partir do conceito freudiano de trauma. O discurso do testemunho, literal e fragmentado, seria caracterizado por certa “tensão entre oralidade e escrita” (Seligmann-Silva, Literatura e trauma 85). O excesso de “literalização”, assim como a fragmentação, decorreria da incapacidade sentida pelo sujeito traumatizado de “traduzir o vivido em imagens ou metáforas” (Seligmann-Silva, Literatura e trauma 85). A cena do testemunho, que também pode “servir de documento para a história”, seria, em consequência, uma tentativa de representação do “passado traumático” (Seligmann-Silva, Literatura e trauma 85).

O entrecruzamento da história, da memória e do testemunho não está isento de uma espécie de reordenação “ideológic(a) e conceitual do passado” (Sarlo 17). Portanto, é preciso atentar para os perigos de uma nova configuração acrítica da história, pelas vias da memória. Também é urgente refletir sobre as “operações de apagamento” promovidas, nas últimas décadas, pelo discurso pós-moderno em sua apologia ao instante (Sarlo 11). O discurso pós-moderno mostra-se, assim,  paradoxal, pois nele convivem tanto a tendência para dissolver os laços com o passado, quanto uma espécie de “mania preservacionista” que promove o aparecimento do “passado-espetáculo”; seja através dos “theme-parks históricos” ou do renascimento do “romance histórico” (Sarlo 11). Até que ponto essa “mania preservacionista” ou história dos antiquários, como disse Nietzsche, que invade nossa contemporaneidade, não iria na contramão de uma história crítica?

Para Daniel Bensaïd, esse esforço preservacionista seria uma tentativa de “curto-circuitar o trabalho crítico da história” (Os Irredutíveis 23). É como se o apelo exagerado ao “dever da memória” propiciasse, não a “evocação” ou a “rememoração” – no sentido forte benjaminiano de reconstituição de uma história crítica a partir das ruínas do passado – mas, tão-somente, fomentasse a “estática” lembrança (Bensaïd, Os Irredutíveis 23). Lembrança essa que, por sua vez, corre o risco de degenerar em “patologia da memória”, especialmente quando, ao interiorizar o discurso dominante, torna-se incapaz de resistir à opressão (Bensaïd,  Os Irredutíveis 23). Crítico ferrenho da voga pós-moderna que desconstrói a historicidade em favor do “imediato, do efêmero, do descartável”, Bensaïd não poupa esforços para denunciar os perigos da “imediaticidade fora do tempo” e da pulverização do dado histórico que sustentam uma perversa “retórica da resignação” (Os Irredutíveis 26, 29).

A essa altura, seria oportuno relembrar a polêmica em torno da obra de Binjamin Wilkomirski, especialmente seu Fragmentos (1995) que abalou o mundo acadêmico há alguns anos. O livro relata a infância do autor que, entre os três e os sete anos de idade, teria vivido em campos de concentração nazistas na Polônia. Os estudiosos do testemunho, especialmente os ligados ao contexto da Shoah, ficaram tão impressionados com o relato da vítima que alçaram o livro à condição de obra-prima. Depois de ter conquistado vários prêmios, de ter sido traduzido para mais de doze línguas e adaptado para o cinema, o livro revelou-se ficção. Em 1998, duas reportagens do escritor e jornalista Daniel Ganzfried foram publicadas em um jornal suíço, desconstruindo o personagem Wilkomirski. Como demonstrou o jornalista,  Wilkomirski foi criado por Bruno Doessekker que apenas frequentou os campos de concentração como turista. Conforme Seligmann-Silva, se o “embuste” ensinou os pesquisadores da Shoah “a serem mais cautelosos”, também forneceu “argumentos” para os que “negam a existência de Auschwitz” (Literatura e trauma 114-115). Nesse caso, estamos diante de uma verdadeira invenção literária, que se fez passar por literatura de testemunho, arquitetada a partir da falsificação da memória.

Como pontua Beatriz Sarlo, embora o “passado” seja “sempre conflituoso”, pois para a sua configuração concorrem a “história” e a instabilidade da “memória”, evocá-lo significa também “captura(r) o presente” (09). Influenciada por Benjamin, a pesquisadora argentina encaminha suas reflexões de modo a questionar os limites entre o “relato pessoal” e a “verdade”, a “realidade” e a “lenda”, sem perder de vista que a “própria ideia de verdade” já é um “problema” (117). Como ensina Le Goff, embora o “conceito de memória” seja “crucial”, estabelecê-lo implica lidar com “traços e problemas da memória histórica e da memória social” (419-420). Nesse sentido, a construção da memória, seja individual ou coletiva, precisa enfrentar suas próprias armadilhas.

Paul Ricoeur, por sua vez, propõe que se substitua o “dever da memória” kantiano pelo “trabalho” da memória, sugerindo que a obrigação, entendida como imposição legal ou moral, ceda lugar ao esforço rememorativo (Eingedenken), no sentido forte benjaminiano. Em outras palavras: convocar o “trabalho” da memória significa não só mobilizar os recalques históricos, isto é, “o que ainda não teve direito nem à lembrança nem às palavras”, mas, sobretudo, sinaliza um esforço no sentido de manter a consciência vigilante para que as atrocidades do passado não arruínem, novamente, o presente (Gagnebin, Memória, História 91).

 

Referências Bibliográficas

 

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