Machado de Assis e o teatro: Ristori, Salvini e Rossi nos palcos cariocas e a encenação das tragédias de Shakespeare

Adriana da Costa Teles
Universidade de São Paulo/FAPESP, São Paulo – SP
 
 

Em junho de 1869, os palcos cariocas contaram com a presença da italiana Adelaide Ristori, atriz de grande prestígio internacional, considerada por muitos estudiosos como a maior atriz trágica do século XIX. Apesar de a presença de companhias teatrais estrangeiras no Brasil remontar à vinda da família real portuguesa para o Rio de Janeiro em 1808, a presença da atriz marcou o cenário carioca, impressionando o público e os críticos e, dentre eles, Machado de Assis. É o que o leitor pode observar pela leitura dos quatro artigos que o escritor escreveu sobre a atriz trágica italiana: “Medeia”; “Pia de Tolomei – Judite”; “Maria Stuart – Isabel de Inglaterra – Fedra” e “Sóror Teresa – Mirra – Estalejadeira”, publicados no jornal Diário do Rio de Janeiro, respectivamente nos dias 2, 10, 18 e 30 de julho de 1869. No primeiro deles, “Medéia”, Machado observa¹:

A imaginação pública criava uma Ristori dotada de qualidades superiores; mas aqui a realidade foi além da imaginação. Estou que ninguém calculou ao certo encontrar tão peregrino gênio unido a tão acabada perfeição. Os aplausos foram unânimes e prolongados; e era mais que aprovação, eram um agradecimento (FARIA 491).

A presença de Ristori foi importante para o teatro carioca naquele momento. Segundo João Roberto Faria em Machado de Assis: do teatro (2008),

A tournée de Adelaide Ristori inaugurou um período de vida teatral intensa no Rio de Janeiro – com reflexos em outras cidades como São Paulo, Santos, Porto Alegre, Pelotas e Rio Grande –, marcado pela presença constante dos melhores intérpretes europeus em nossos teatros, nos meses de maio a outubro (FARIA 83).

Em tais meses, verão na Europa, os teatros ficavam fechados naquele continente. Segundo Faria, este dado, aliado à

(…) perspectiva de grandes lucros, a garantia da boa acolhida por uma platéia curiosa em relação a nomes consagrados, a publicidade das viagens intercontinentais, tudo encorajou artistas portugueses, italianos, franceses e espanhóis a atravessar o Atlântico e apresentar, no Brasil e em cidades como Montevidéu, Buenos Aires e Santiago, os mesmos espetáculos que apresentavam em seus países de origem (FARIA 83).

A presença de Ristori no Brasil parece ter aberto caminho para que outros atores de renome internacional se voltassem aos palcos cariocas. No ano de 1871, o Rio de Janeiro assistiu à chegada de outros dois grandes atores europeus, os também italianos Ernesto Rossi e Tommaso Salvini, o primeiro tendo chegado em 05 de maio e o segundo em 15 de setembro do referido ano.

A presença dos dois atores no Brasil, além de marcar um interessante momento para o teatro no Rio de Janeiro, trouxe contribuições importantes para os palcos brasileiros. Os três artistas citados, Ristori, Rossi e Salvini, tinham o drama shakespeariano como carros-chefes de suas tournées, apesar de Ristori não ter apresentado nenhuma peça do dramaturgo inglês em sua temporada no Rio em 1869, ao contrário do que ocorreria com Rossi e Salvini em 1871. Segundo Daniela Rhinow, em sua tese de doutoradoVisões de Otelo na cena e na literatura dramática nacional do século XIX (2007):

(…)Adelaide Ristori notabilizou-se como Lady Macbeth (apesar de não a haver representado no Brasil em 1869); Salvini como Otelo; e Rossi especialmente como Hamlet, apesar de ter também feito outras personagens de Shakespeare de forma memorável, como Otelo, Lear e Coriolano (RHINOW 86).

 Dessa forma, a presença de Rossi e Salvini no Brasil, não apenas marcou um período singular no cenário carioca do século XIX, como também trouxe para ele a encenação do teatro shakespeariano. Até aquele momento, Shakespeare já havia passado pelos palcos brasileiros, mas por meio de traduções e adaptações francesas que, na maioria das vezes, produziram deturpações no texto do bardo inglês. Assim, a presença de Rossi e Salvini proporcionou ao público e aos críticos terem contato com o texto shakespeariano, que, apesar de representado em italiano, trazia uma versão mais próxima da composta pelo dramaturgo inglês. Sobre isso, afirma Eugênio Gomes:

(…) a introdução do teatro de Shakespeare no Brasil não podia ter sido mais condigna: os dois grandes artistas, que figuravam entre os mais aplaudidos do século, atravessaram o Atlântico para revelar a grandeza daquele teatro ao Novo Mundo, desmoralizando, assim, definitivamente, a intrujice das imitações francesas (GOMES 20).

 

  1. João Caetano e as representações das versões de Shakespeare no Brasil

Quando os atores trágicos italianos Rossi e Salvini chegaram ao Brasil, Shakespeare já havia sido encenado no país em diversas ocasiões. Décio de Almeida Prado apresenta em João Caetano (1972) números bastante precisos que dão conta das representações do dramaturgo no Brasil até aquele momento. Apresentando dados pesquisados por Celuta Moreira Gomes, Prado afirma:

O cuidadoso levantamento feito por Celuta Moreira Gomes em jornais da época deu os seguintes resultados: uma representação, em 1838, de O Mercador de Veneza, tradução da peça Shylock, de Alboise e Du Lac, criada em Paris em 1830; uma representação do Macbeth, de Ducis, em 1843; seis representações do Hamlet, sem menção do autor, em 1843 e 1844; vinte e seis representações de Otelo, de 1837 a 1860 (PRADO 25).

Tais representações tinham na figura do famoso ator brasileiro João Caetano o grande expoente. Pode-se dizer que João Caetano foi o primeiro e, por mais de meio século, o ator brasileiro identificado com um papel shakespeariano, mesmo que por meio de adaptações. Apesar de haver a suspeita levantada por Bárbara Heliodora emShakespeare in Brazil (1967) de que João Caetano teria encenado Hamlet vindo do texto original em inglês em 1835, não há evidências que comprovem tal fato e que, portanto, liguem a figura de João Caetano e os palcos brasileiros a Shakespeare em versão original até aquele momento. Ao comentar a suposta encenação de Hamlet no original em 1835, Prado afirma:

João Caetano, relembrando nas Lições Dramáticas a sua interpretação, escreveu: “na magnífica cena em que ele [Hamlet], abraçado com a urna fala às cinzas de seu pai, um frio tremor se apoderou de mim (…)”. Ora, esta famosa cena da urna funerária, inexiste em Shakespeare, constitui o clímax da tragédia de Ducis. Quanto a Otelo, todas as vezes em que figura nos anúncios o nome do autor ou de alguma personagem que permita identificá-lo, trata-se da tragédia traduzida por Gonçalves de Magalhães, não sendo crível que João Caetano intercalasse estas versões de Ducis com outras do próprio Shakespeare sem chamar a atenção para o fato nos jornais (PRADO 25).

Como vemos, além de não haver evidências de que tal representação tenha ocorrido, Prado julga, de maneira convincente, improvável que João Caetano intercalasse representações da versão original de Hamlet e da adaptação sem chamar a atenção para o fato. É importante enfatizar que a tradução de Otelo feita por Gonçalves de Magalhães a que Prado se refere – e repetidamente encenada por João Caetano – é proveniente da adaptação de Ducis para a tragédia do mouro de Veneza. Segundo os dados apresentados por Celuta Moreira Gomes, João Caetano teria apenas encenado O mercador de Veneza a partir de uma tradução da peça Shylock de Alboise de Du Lac, o que nos mostra que as representações que João Caetano empreendeu de Shakespeare, quase em sua totalidade, se realizaram a partir dos textos de Ducis, que se popularizaram no Brasil por meio das representações do ator. Movido por preceitos clássicos do teatro e repudiando a liberdade com que o bardo inglês manipulava os elementos compositivos na confecção de seu drama, Ducis empreende adaptações que tentam colocar o texto shakespeariano dentro dos preceitos que julga acertados, ou seja, os preceitos neoclássicos franceses. Segundo Rhinow,

Ducis se encantou com as obras shakespearianas, apesar de todos os seus “defeitos” do ponto de vista francês, ainda ligado aos preceitos do classicismo, com as regras das unidades e das conveniências, o horror à mistura de gêneros e à apresentação de cenas violentas ou vulgares. (…). E Ducis fez então o que outros vinham fazendo (…): tentou adaptar os enredos shakespearianos às regras clássicas do bem fazer teatral (2007 19).

Dessa forma, as adaptações de Ducis resultam em textos bastante diferentes dos originais shakespearianos. Ao comentar sua adaptação para Otelo, para citarmos um exemplo, Rhinow afirma que este apresenta modificações muito significativas com relação ao original. Segundo a pesquisadora:

As modificações de Ducis começam pelo nome das personagens. Na peça, o único nome que é mantido do original é o do próprio Othelo. Para, principalmente, facilitar as rimas exigidas pelas regras neoclássicas francesas, Desdêmona transforma-se em Hedelmonda, Iago em Pézaro, Cássio em Loredano, Emília em Hermance e assim por diante. O número de personagens cai de dezesseis para sete, e suas relações diferem. Aqui, não vemos ligação profissional entre Othelo e Pézaro: eles são apenas amigos. Também não há ligação entre Pézaro e Hermance (em Shakespeare, Iago e Emília são casados). Quanto a Loredano, ele não conhece Otelo e Pézaro; é filho de Moncenigo, o doge de Veneza, envolvido na trama de outra forma. Além disso, o texto todo é composto em versos alexandrinos com rimas AABBCC (…) e as unidades de ação, tempo e espaço (apenas Veneza) são respeitadas. Para enobrecer os elementos do entrecho, o lenço de Desdêmona transforma-se em diadema, e a jovem não é asfixiada, mas apunhalada (RHINOW 20-21).

Além disso, há modificações realizadas no enredo que alteram bastante a peça. Na versão de Ducis, Hedelmonda ainda não se casou com Otelo e a aceitação do casamento por parte de seu pai é o foco central do enredo. Segundo Rhinow, o texto de Ducis apresenta como principal problema a falta de seqüência dramática, que compromete a sequência lógica e coerente do drama (26). Segundo a pesquisadora, “aparentemente, o dramaturgo estava mais interessado em fazer uso de sentimentos presentes em Shakespeare do que em manter a ação dramática em si” (RHINOW 26). No entanto, mesmo contendo impropriedades, a versão de Ducis para a obra do bardo inglês foi considerada na França da época mais equilibrada do que a de Shakespeare, tornando-se popular e representada nos palcos franceses e brasileiros, assim como ocorreu com outras peças do dramaturgo inglês.

A partir dos dados apresentados, pode-se dizer que os palcos cariocas contaram com várias representações de Shakespeare até a chegada de Rossi e Salvini. No entanto, tais representações traziam para o público adaptações francesas das peças do dramaturgo inglês, que se diferenciavam em aspectos significativos do texto shakespeariano. Dessa forma, a presença de Rossi e Salvini propiciará ao público carioca ter contato com a encenação de tragédias de Shakespeare, que, apesar de se darem em italiano, eram próximas da maneira com que o bardo inglês as havia concebido.

 

  1. Machado de Assis e as encenações de Shakespeare por Rossi no Brasil

Machado de Assis se mostrou, em suas crônicas que davam conta do teatro, nessa época, bastante impressionado pelos efeitos da tragédia. Segundo o autor, a tragédia tem o poder de despertar sentimentos inerentes ao homem de qualquer tempo e em qualquer espaço. Em crônica do dia 02 de julho de 1869, quando comentava a presença e a atuação de Ristori no Brasil, o escritor afirma:

Os antigos entendiam amplamente esta máxima de que é preciso exagerar os sentimentos para melhor os expor no teatro. Hoje que, segundo uma expressão de Sterne, cantarolamos a vida, aqueles sentimentos parecem-nos fora de proporção. Mas reparai bem: o fundo é o mesmo. Medeia comovia as mães gregas como comove as mães brasileiras; é porque qualquer que seja a crosta da civilização, palpita debaixo o coração humano. E note-se mais; as paixões da tragédia geralmente são violentas em seus resultados; mas em si são idênticas às paixões da vida. Uma Medeia desse século não envenenará Creusa nem apunhalará os filhos: mas se não sentir o amor e o ciúme como a Medeia antiga, estou que as suas paixões serão de medíocre força (FARIA 493).

Como vemos, Machado aprecia no teatro trágico a capacidade de representar as paixões da vida e comover o espectador qualquer que seja o tempo, evidenciando, portanto, a força do gênero. Apesar de reconhecer o diferente contexto em que era composto, o exagero dos antigos substituído pelo “cantarolar” de seus contemporâneos, Machado enfatiza o gênero enquanto representação dos anseios e angústias humanas. A presença do teatro trágico e, especificamente, do drama shakespeariano não passaria, portanto, despercebida.

A atuação de Rossi nos teatros do Rio de Janeiro foi comentada por Machado em duas crônicas. A primeira delas intitula-se “Macbeth e Rossi” e foi publicada em 25 de junho de 1871 na Semana Ilustrada. Nela, Machado desenvolve considerações de maneira mais específica sobre a encenação do teatro shakespeariano pelo ator. A segunda, por sua vez, intitula-se “Rossi – Carta a Salvador de Mendonça” e foi publicada em 20 de julho de 1871 em A reforma. Neste texto, Machado se ocupa em discutir a atuação do italiano em um âmbito mais abrangente, abordando sua atuação acerca do teatro do autor inglês e de outros dramaturgos que eram parte de seu repertório.

Sobre as representações de Rossi no Rio de Janeiro, é importante observar que, apesar da alta qualidade dos espetáculos, estes não despertaram a atenção do público como se esperava em um primeiro momento. Isso justifica a escrita da segunda crônica por nós referida. A ausência do público esperado chamou a atenção da imprensa carioca da época e levou alguns críticos a se manifestarem a respeito. Sobre isso João Roberto Faria afirma: “Intelectuais como Salvador de Mendonça e Francisco Otaviano publicaram artigos em jornais do Rio de Janeiro para louvar a arte de Ernesto Rossi e atrair espectadores” (84). Machado de Assis, a pedido de Salvador de Mendonça, se pronunciou sobre o assunto, ocasião em que escreveu “Rossi – Carta a Salvador de Mendonça”. É curioso observar, ainda, que Machado não comentou em suas crônicas a atuação de Salvini. Este é um dado curioso, pois, como afirma Faria, “(…) é muito provável que o tenha visto em cena, pois se refere a ele num texto curto de 17 de julho de 1885 e numa crônica daGazeta de notícias de 03 de julho de 1894” (86).

Um primeiro aspecto a ser ressaltado com relação às duas crônicas referidas é que, em ambas, Machado mostra-se impressionado com a representação de Rossi. Em “Rossi – Carta a Salvador de Mendonça”, Machado chama a atenção para a versatilidade do ator, que parece incorporar os mais diversos personagens com habilidade e naturalidade:

Não tem clima seu: pertence-lhe todos os climas da terra. Estende as mãos a Shakespeare e a Corneille, a Alfieri e Lord Byron: não esquece Delavigne, nem Garret, nem V. Hugo, nem os dois Dumas. Ajustam-se-lhe no corpo todas as vestiduras. É na mesma noite Hamlet e Kean. Fala todas as línguas: o amor, o ciúme o remorso, a dúvida, a ambição. Não tem idade; é hoje Romeu, amanhã Luis XI (FARIA 523).

A forte e positiva impressão que o cronista Machado de Assis tem da atuação de Rossi se estende à interpretação do teatro Shakespeariano. Haveria, segundo nos afirma Machado, uma espécie de afinidade entre o escritor inglês e o ator italiano, a quem o bardo haveria possibilitado potencializar o seu talento: “A intimidade de Shakespeare deu-lhe abençoados atrevimentos”, diria o cronista no artigo em resposta a Salvador de Mendonça.

No entanto, acreditamos que o que é importante enfatizar é que assistir Shakespeare por meio da interpretação de Rossi parece ter sido, em si, uma experiência esteticamente importante para Machado. Haveria, para o escritor, uma espécie de simbiose entre o dramaturgo e ator:

Olha Shakespeare. Nenhum poeta imprimiu mais vitalidade própria nas páginas de seus dramas; nenhum parece dispensar tanto o prestígio do tablado. E contudo poderia o Rossi, poderia ninguém, reproduzi-lo com tanta verdade, se se limitasse a ler e decorar-lhe os caracteres?A vida que a esses caracteres imortais deu a nossa imaginação, sentimo-la em cena quando gênio prestigioso do Rossi os interpreta e traduz, não só com alma, mas com inteligência criadora. (FARIA 525).

A capacidade do dramaturgo inglês por si só garantiria o sucesso da encenação, no entanto, Rossi conseguiu colocar-lhe ainda mais vitalidade e força. O resultado é uma interpretação que foi sucesso entre os cronistas e o público, como é possível perceber pela seguinte afirmação de Machado em “Macbeth e Rossi”: “Ernesto Rossi está representando o monólogo de Hamlet; faz o mesmo ponto de interrogação; “Que é melhor; curvar-se à sorte ou lutar e vencer?”. E não exita; luta e vence” (FARIA 517). A representação é acompanhada, segundo o cronista, de “entusiásticos aplausos” a que Machado julga merecidos:

E bem entusiásticos foram os que lhe deu o público na representação de Macbeth, em que Rossi esteve simplesmente admirável. Não sei que outra coisa se deva dizer. O monólogo do punhal, as cenas com Lady Macbeth, a do banquete são páginas de arte que se não apagam mais da memória (FARIA 517).

A forte impressão provocada pela encenação da obra de Shakespeare aparece enfatizada pela confissão em “Macbeth e Rossi” de uma suposta incapacidade em  expressar sua admiração, o que nada mais é do que uma maneira de louvar ainda mais o ator italiano: “Se o espaço no-lo consentisse, e se houvéssemos as habilitações que sobram em tantos outros, apreciaríamos detidamente a maneira por que o grande ator italiano interpretou o imortal poeta inglês. Isto, porém, é superior às nossas forças (…)” (FARIA 517).

É possível perceber pela leitura das crônicas citadas que, além da atuação de Rossi, o repertório shakespeariano trazido pelo italiano impressionou fortemente Machado de Assis. Por ter trazido para o Brasil o texto de Shakespeare em versão original, tais encenações possibilitaram ao escritor – e ao público – ver encenado o texto como o havia concebido o dramaturgo inglês. Em “Macbeth e Rossi”, o cronista afirma:

Além do gosto de aplaudir um artista como Ernesto Rossi, há outras vantagens nestas representações de Shakespeare; vai-se conhecendo Shakespeare, de que o nosso público apenas tinha notícia por uns arranjos de Ducis (duas ou três peças apenas) ou por partituras musicais.

Esta verdade deve dizer-se: Shakespeare está sendo uma revelação para muita gente (FARIA 517).

A intimidade com o texto original de Shakespeare e a desaprovação do trabalho de adaptação realizado por Ducis é evidente: “O nosso João Caetano, que era um gênio, representou três dessas tragédias, e conseguiu dar-lhes brilhantemente a vida, que o sensaborão Ducis lhes havia tirado” (FARIA 517).

Segundo apontam alguns críticos, esse período de efervescência do drama trágico no Rio de Janeiro teria influenciado a produção de Machado, que integraria, a partir desse período, com mais intensidade a produção do dramaturgo inglês às suas próprias criações. Para Eugênio Gomes, por exemplo,

(…) a partir de 1876, começaram a aparecer com maior freqüência os reflexos do teatro shakespeariano em sua obra, uma ou outra vez, com alusão a Rossi e também a Salvini, que ambos proporcionaram à metrópole brasileira as melhores interpretações de Hamlet, Otelo e outros personagens trágicos do gênio inglês, até então vista em nosso país (GOMES 160).

João Roberto Faria retomaria essa questão em Machado de Assis: do teatro (2008). Segundo ele:

o que parece importante assinalar é que Shakespeare no palco foi uma revelação para Machado. Se antes de 1871 já o lia, a partir desse ano torna-se um constante interlocutor, multiplicando em suas crônicas, contos e romances as citações das peças e falas de personagens que admira (86).

Faria, aliás, lança uma hipótese curiosa e um tanto ousada. Para o estudioso, a representação de Otelo a que Bentinho assistiu em Dom Casmurro seria uma descrição da representação empreendida por Rossi no Rio de Janeiro: “Por fim não custa arriscar uma hipótese: o Otelo que Bentinho vê no teatro, pelos olhos de Machado, é o de Ernesto Rossi” (FARIA 89). O que leva Faria a propor semelhante hipótese é o ano que o narrador do romance afirma ter assistido à representação, 1872, próximo ao ano em que Rossi esteve no Brasil, 1871, o que atribui a uma possível falha de memória, e a descrição que aparece em Dom Casmurro do espetáculo, que muito se assemelharia às descrições empreendidas por jornais da época na ocasião da representação de Otelo por Rossi. Independentemente disso, no entanto, parece inegável que a presença de Shakespeare na obra de Machado de Assis se tornou mais intensa depois de tais representações.

 

  1. Palavras finais

A presença dos atores italianos Adelaide Ristori, Ernesto Rossi e Tommaso Salvini no Rio de Janeiro não passou despercebida por Machado de Assis que, aliás, era um espectador atento aos acontecimentos de seu tempo, o que fica evidente por sua produção como cronista e jornalista. Salvini, curiosamente não mencionado, não parecia, no entanto, estar fora do foco do escritor, como nos mostra Machado na seguinte passagem, quando explicita o anseio (que sabe impossível) de ver os três grandes trágicos juntos no palco:

O que eu desejava, meu caro Salvador, sabes tu o que era? Eu desejava uma coisa impossível, um sonho imenso. Era vê-los aos dois, e não só eles, mas também esse outro, que a fama apregoa, e que os nossos irmãos do Prata estão ouvindo e vendo, era vê-los todos três juntos, a combaterem pela mesma causa e a colherem vitórias comuns. (FARIA 526)

O contato com o teatro trágico em estilo elevado de interpretação parece ter colocado diante dos olhos do escritor uma experiência estética singular, ao mesmo tempo em que possibilitou a Machado expressar e nos comunicar sua percepção do fenômeno trágico:

Os homens cujos olhos se umedeciam diante da luta de Ximena, do ciúme de Hemíone, da paixão e dos remorsos de Fedra, eram os mesmíssemos de hoje; e se o gosto, se a escola, se as condições do teatro mudaram, não mudou o coração humano; os sentimentos podem, talvez, mudar de aspecto, mas a essência é a mesma. (FARIA 503-504)

No que diz respeito às representações de Shakespeare, pode-se dizer que Machado, por meio dos dois artigos mencionados, demonstra ter ficado profundamente impressionado com Rossi e sua representação do dramaturgo inglês. Isso se deve, em um primeiro momento, pela própria versão trazida pelo italiano para o Brasil. Diferente do que havia proposto João Caetano, Rossi trazia uma versão mais próxima da escrita pelo bardo inglês, o que parece ter sido um ganho, segundo nos assegura o cronista, para o público, que ia conhecendo Shakespeare, e para o próprio Machado que, mesmo conhecendo o texto no original, não tinha tido a oportunidade de presenciar uma interpretação de Shakespeare em toda a força de sua composição. E isso se deu por meio de uma interpretação em nível elevado, por um ator cuja capacidade de representação dos mais diversos dramaturgos propiciou o renome internacional de que gozava.

A representação de Shakespeare por Rossi fez com que o escritor Machado não o apagasse de sua memória. Afirma Faria: “Em 14 de junho de 1896, comentando alguns atos praticados na alfândega, sem saber se eram crime ou não, o cronista observa “Ecco il problema, diria enfaticamente o finado Rossi”. O ator italiano havia falecido dez dias antes” (89).

Dessa forma, a presença de Shakespeare no Brasil em 1871 parece importante para o escritor Machado menos pelo caráter de revelação do autor inglês, já conhecido pelo escritor, mas por ter representado a vivência de uma experiência estética única, que teria possibilitado ao brasileiro incorporar em sua ficção elementos de tal dramaturgia com força nos anos que se seguiram.

 

Nota

 

1  Todas as citações referentes aos textos de Machado de Assis foram extraídas da edição feita por João Roberto Faria em Machado de Assis: do teatro, que reuniu as crônicas teatrais publicadas pelo autor ao longo de sua carreira.

 

Referências bibliográficas

 

FARIA, João Roberto. Machado de Assis: do teatro. São Paulo: Perspectiva, 2008.

GOMES, Eugênio. Shakespeare no Brasil. Ministério da Educação e Cultura, 1961.

HELIODORA, Bárbara. “Shakespeare in Brazil”, in Shakespeare survey no. 20. Cambridge, CUP, 1967, pp.121-124.

PRADO, Décio de Almeida. João Caetano. São Paulo: Perspectiva/EDUSP, 1972.

RHINOW, Daniela. Visões de Otelo na cena e na literatura dramática nacional do século XIX.  São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas – USP (Tese de doutorado em Literatura Brasileira), 2007
 
 

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