ASPECTOS HISTÓRICOS E SOCIAIS DA FORMAÇÃO DO ROMANCE EM PAÍSES DA PERIFERIA DO CAPITALISMO

Rodrigo do Prado Bittencourt
Universidade Estadual de Campinas
 
 
Investigar a ascensão do romance passa necessariamente por debater quais os critérios para julgar a qualidade de uma obra literária. Isso porque em seu surgimento, o gênero romanesco como um todo foi atacado como de baixa qualidade literária e, mesmo depois de se firmar e dominar o mercado literário, penetrar na Academia e conquistar intelectuais, parte das obras romanescas ainda recebe os mesmo rótulos que recebiam as que inauguraram o gênero.
 
O romance surge por meio do folhetim na França do século XIX. Embora suas origens primevas possam nos remeter ao século XVIII, na Inglaterra, Alemanha (Os sofrimentos do jovem Werther, de Goethe, é de 1774) e na própria França, é no XIX que ele vai realmente ganhar contornos definidos. Ele aparece como expressão do ideário burguês, buscando se aproveitar da ampla vendagem, agora possibilitada pelo desenvolvimento tipográfico e do maior número de alfabetizados, e valorizando o individualismo, a originalidade e o sentimentalismo. O romance, em sua origem, se liga ao Romantismo.
 
Aos poucos esse gênero foi se difundido por outros países, alcançando Brasil e Portugal por volta de 1840. Em Portugal, ele se firmará em 1850 e, no Brasil, em 1860. Essa importação, entretanto, não se dará na forma de uma simples cópia. O romance se ligava a um universo de valores ateus ou protestantes e Portugal e Brasil eram fortemente católicos, na época. Os enredos e a linguagem serão, assim, adaptados e as traduções nem sempre serão fiéis ao livro original, retirando ou acrescentando coisas conforme o gosto do público local. Isso não apenas por uma questão de valores, mas também de vendas.
 
A adaptação não se dá apenas na forma romanesca, mas na ideologia das obras. Mesmo com a presença de semelhanças, há que se pensar que havia muitas diferenças entre as realidades sociais de Portugal ou Brasil e as da França, centro da produção romanesca da época e país hegemônico culturalmente, em relação aos outros dois. Assim, basta ver que um romance que se passa numa cidade grande e desenvolvida, com inúmeras formas diferentes de trabalho e amplo operariado era possível na França ou na Inglaterra, mas não no Brasil. Bem como a presença de escravos nos romances brasileiros não se justificaria num romance francês.
 
A França, devido a seu poder econômico (abundância de tipografias e capitais), social (público alfabetizado e grande número de produtores culturais especializados, no caso, escritores) e político-cultural (língua francesa tida como língua culta e usada nas relações diplomáticas e comerciais; valorização da arte, da ciência e da filosofia francesas sobre as dos países periféricos ), constituía um empecilho para a produção de outros países. Como com qualquer outra mercadoria outrora importada, o produtor nacional deve provar que a sua é superior, mais barata ou mais adequada às necessidades do consumidor que a estrangeira. Assim, os romancistas portugueses tiveram que concorrer com os romances franceses trazidos para dentro de Portugal e os brasileiros tinham de concorrer com os franceses e portugueses. Os romances franceses poderiam representar uma forte concorrência, seja traduzidos, seja em seu próprio idioma, sendo que o francês era falado por grande parte da intelectualidade ocidental da época, não importando de que país ela fosse. Estabelecer-se como produtor cultural de um país periférico, por isso, era muito difícil e foram poucos os que conseguiram viver apenas de sua arte.
 
É preciso salientar a influência de tais aspectos sociais para o desenvolvimento da Literatura, pois ela não se afasta das realidades humanas, mas delas vive. Moretti (13) ressalta isso, ao apresentar sua reflexão sobre a Crítica Literária. Para ele, ela não pode continuar sendo uma história do extraordinário e incomum, mas deve se focar sobre o recorrente, sobre o que é sistêmico e regular. O romance não se constitui como gênero aceito e difundido apenas por causa dos considerados “grandes escritores romanescos”, mas também por causa daqueles escritores classificados como “medíocres”, desconhecidos da História e do grande público e dos que conquistaram o grande público, mas são considerados “escritores comerciais”, “sem qualidade”. Tudo isso para não falar no papel do público, dos editores, das escolas e da universidade para a consolidação do gênero.
 
Afinal, ninguém publica algo com a intenção de que aquilo não seja lido. As escolhas do público, por sua vez, influenciam e são influenciadas pela valorização feita pela universidade ou pela escola. Para Moretti (156), ao contrário do que geralmente se pensa, escolas e universidades apenas consolidaram e ratificaram o que já era sucesso entre o público leitor: “…o equívoco nasce da ideia errada de que o canône novelístico é uma criação da escola (e da universidade). Isso é falso; levou gerações para a escola ‘aceitar’ o romance e, mesmo então, a escola simplesmente adotou aqueles textos que já haviam sido selecionados pelo mercado (com algumas exceções).”
 
Assim, uma História da Literatura não pode se afastar ou prescindir de conhecimentos da História das Tipografias ou da Alfabetização, pois uma obra literária precisa de meios técnicos para ser composta e de um público para ser lida e não cair no esquecimento. Moretti (13) afirma que a ascensão do romance tem relação, essencialmente, com duas coisas:
 
1) Os aspectos históricos-sociais do grupo que o consome, notadamente a ascensão da burguesia e dos valores individualistas;
2) Uma oferta considerável de obras do gênero, modificando o modo como se lê (de uma leitura repetitiva, e por vezes coletiva, de uma mesma obra à leitura uma única vez de vários livros).
 
A História do Romance intercruza, assim, a História da Burguesia, da produção e do consumo de arte voltados para ela. Algumas características internas do gênero evidenciam essa ligação. Uma delas é a presença da ação do tempo sobre as personagens, típica do romance. Em uma obra não romanesca como A Demanda do Santo Graal (Megale, 2008), Galaaz continua o mesmo, não importa quanto tempo passe. Já o romance incorpora a transitoriedade e há transformações de ordem moral e na personalidade das personagens. Assim, a Laura de O filho do pescador irá se transformar, ao descobrir que seu marido estava vivo e que o caçador amado era seu filho; de perversa assassina e traidora, se tornará uma mulher virtuosa e entrará para um convento.
 
A mudança se coaduna com os ideias burgueses de transformação da sociedade ainda semi-aristocrata e semi-mercantilista, com resquícios do Antigo Regime, numa sociedade plenamente capitalista e liberal. A mudança é um valor a ser pregado pela burguesia para vencer os ideias aristocráticos de valorização da origem e permanência e defender a mobilidade social, não apenas para assegurar a justificação ideológica e o reconhecimento social e político de seu poder econômico, como para transmitir ao proletário a ilusão de que ele também tem acesso à mobilidade e que pode ascender socialmente.
 
Com a sua ascensão, a burguesia vai conseguir, com o tempo e muita luta (por que não dizer?) política, a introdução de livros romanescos no Cânone “Ocidental.” Há que se lembrar que a formação deste é extremamente política: livros formadores/consolidadores de idiomas nacionais com muitos falantes no Ocidente (Divina Comédia, Lusíadas, Dom Quixote…), defensores do ideário burguês (Os sofrimentos do jovem Werther, Madame Bovary…) e de países hegemônicos cultural e politicamente (França, Inglaterra) sempre terão algum lugar no cânone. A entrada do romance nesse cânone representa uma vitória burguesa e é sintoma de uma sociedade diferente da do Antigo Regime, mais próxima de um capitalismo desenvolvido.
 
Os editores de romance, em seus primórdios, usavam a estratégia de produzir obras baratas em grande quantidade para lucrarem mais. Elas, porém, nem sempre chegavam às casas dos leitores. Isso porque mais comum que comprar um romance era aluga-lo de uma biblioteca circulante paga ou mesmo alugar um gabinete de leitura dentro dessa biblioteca, onde se leria em paz os livros por ela oferecidos. Analisando os registros dessas bibliotecas comerciais, Moretti (2003) percebe uma grande homogeneidade de leituras, mesmo variando de região para região. As particularidades locais se apagam e todos os lugares leem a mesma coisa.
 
Enquanto isso, as publicações se centralizam cada vez mais nas capitais. Esse processo acompanha os de outras mercadorias dentro do capitalismo em desenvolvimento no século XIX. Ele concentra a produção cada vez mais em torno de grandes indústrias e difunde sua produção para mercados cada vez mais amplos, “engolindo” os pequenos concorrentes locais e proletarizando-os, tornando a sociedade cada vez mais desigual e centralizada. Ao menos é o que afirma Marx, em O Capital. E assim como as fábricas inglesas contratavam mulheres para serem operárias, por estas aceitarem receber um salário menor que os dos homens, o romance, quando ainda desprestigiado, se destacou dentre os outros gêneros literários por incorporar cada vez mais mulheres na sua produção e consumo, o que serviu para que ele fosse ainda mais depreciado, naquele momento. Quando, porém, esse gênero passa a ser reconhecido, as mulheres escritoras vão desaparecendo e quase nenhuma é lembrada dentre os mais importantes escritores de romance. Vê-se que a incorporação da mulher se liga mais a uma estratégia de acumulação de capital – obtendo o mesmo resultado que com trabalhadores homens, mas com menor custo – que com uma pretensa vocação democrática do romance. Por que os editores deixam de publicar textos de mulheres quando o romance ganha status de obra válida artisticamente?
 
Quando se pensa em relações internacionais, é preciso pensar num certo “imperialismo cultural”: os romancistas portugueses e brasileiros, por exemplo, tinham de escrever para um público acostumado a ler romances franceses e ingleses. Eles próprios, porém, liam as obras estrangeiras com frequência. A fórmula de sucesso de vendagens na França passa a ser adotada em outros países; adaptada, porém. O oposto não acontece: dificilmente um escritor de um país periférico dentro do capitalismo mundial terá sucesso num país hegemônico, mesmo que publique traduções de seus livros lá ou escreva diretamente no idioma hegemônico. Mesmo sua classificação dentro do cenário cultural se dará em comparação com o que há nos países poderosos e não por si próprio. Desse modo, Guimarães Rosa, por exemplo, é visto por muitos, dentro e fora do Brasil, como um “Joyce Brasileiro” e não como ele em si, com suas particularidades e idiossincrasias.
 
As classificações entre escritor de países hegemônicos e subalternos e entre obras de qualidade e a chamada “subliteratura” muito prejudica a avaliação crítica do cenário artístico-cultural. Tanto o preconceito quanto o elogio podem ser danosos. Depreciar uma obra e dizer que o que há de bom nela talvez tenha sido escrito sem que o autor tivesse consciência do que estava fazendo pode nos impedir de analisar imparcial e criticamente um texto. Quem pode ter consciência das consequências de todos os seus atos? Pior ainda: quem pode dizer com certeza se tal autor tinha ou não consciência do que estava fazendo? Talvez nem ele! E isso vale tanto para escritores “de qualidade” quanto para os “escritores ruins”.
Se a depreciação de uma obra pode nos levar a não lê-la, o elogio também. Uma obra alardeada como muito superior a tudo mais que já se escreveu ou se tem escrito no momento assusta o leitor e pode fazer com que ele não queria lê-la, por vê-la como “difícil” ou “tediosa”. Além do que, a crítica que denigre uma obra, recusando a ver seus pontos positivos e seu valor, pode enaltecer tanto outra que a faça parecer caída do céu, descontextualizando-a, numa espécie de análise a-histórica e ideológica.
 
Para dar um exemplo, tomemos outra vez o caso de Guimarães Rosa. Este escritor já foi chamado de “gênio”, “mago” e outras coisas do tipo, o que, segundo Bolle (17) tem tolhido a crítica de uma análise imparcial e realista. Para este, tomar a qualidade e profundidade da obra como dadas a priori têm impedido que a crítica de situar a obra de Rosa em seu contexto e fazer uma análise científica dela.
 
“Uma grande obra” não saiu apenas das mãos do escritor, mas é fruto de todo um desenvolvimento social complexo que colocou o artista dentro de um processo de produção/circulação/consumo/reprodução de bens simbólicos, econômicos e culturais, e, portanto, políticos e históricos, além de estéticos, que confere legitimidade a determinadas produções e nega a outras. O que difere Rosa de Alexandre Dumas, por exemplo? O fato de um ser “gênio” e o outro um “escritor de sub-literatura”? Ou será que cada um deles se situou em uma posição diferente dentro das relações sócio-históricas de seu meio e correspondeu, de acordo com esse seu posicionamento, a diferentes demandas artísticas? Tentar responder essas perguntas é perceber a obra em seu contexto histórico e que diferentes obras podem nele ocupar posições diferentes, devido às possibilidades inúmeras de estratégias de inserção social. É preciso perceber essas possibilidades distintas de inserção para avaliar o sucesso ou o fracasso da obra em sua tentativa de se consolidar. Isso implica em dizer que nem todos escrevem pelos mesmos motivos, nem toda obra, portanto, busca atingir as mesmas metas, o que implica em uma multiplicidade de possibilidades de objetivos para as obras e, consequentemente, uma multiplicidade de critérios para julgar essas obras. Livros com objetivos diferentes devem ser julgados com critérios diferentes. Não se deve julgar um livro literário e um manual de agronomia com os mesmos critérios, pois ambos se destinam a aplicações diferentes e devem ter competências distintas para atingir seus objetivos. Ora, será que somos ingênuos o suficiente para pensarmos que todos os livros literários são escritos com os mesmos objetivos?! Será que é possível estabelecer um único critério para julgar seu valor? Ou será que questões de classe e ideologia têm influenciado nossos julgamentos?
 
A Estética não se descola das realidades humanas, mas delas faz parte. Assim, deve leva-las em consideração. Numa realidade multifacetada de obras, multifacetada deve ser a Estética. Tal amplitude permite-nos avaliar o valor estético de uma obra parnasiana e uma que se coloque radicalmente contra o Parnasianismo, isso sem hierarquiza-las como boas ou ruins, mas apenas como diferentes. Grande preconceito, porém, se instaura contra algumas obras de sucesso, acusadas de não serem “sérias”, ou “profundas”. Argumenta-se que elas almejam apenas o sucesso e nada contribuem para a arte. Disse, a respeito disso, Schopenhauer (56):

“Pois é como se uma maldição pesasse sobre o dinheiro: todo autor se torna um escritor ruim assim que escreve qualquer coisa em função do lucro. As melhores obra dos grandes homens são todas provenientes da época em que eles tinham de escrever ou sem ganhar nada, ou por honorários muito reduzidos. Nesse caso, confirma-se o provérbio espanhol: honra y provecho no caben em um saco.”

Porém, todos, de alguma forma, buscam o sucesso. Não importa se essa é uma busca por sucesso imediato ou a longo prazo, se por um sucesso mais ligado ao dinheiro ou outro, mais próximo do status. Classificar uma obra como valiosa pela estratégia que ela traça para obter sucesso é usar de uma categoria externa à obra – sua aceitação nesse ou naquele círculo, agora ou em determinado momento – para julgar sua qualidade.
 
Como bem mostra Bourdieu, em As regras da arte (1996), a atuação abnegada do artista que defende “a arte pela arte” e não busca retorno financeiro e simbólico imediato não exclui sua inserção num processo de satisfação econômica e simbólica a longo prazo, mais lento, porém mais duradouro e revestido de maior legitimidade dentro do sistema simbólico-cultural. De modo que a abnegação apenas mascara, consciente ou inconscientemente, um investimento diferenciado que acumulará capital simbólico ao longo do tempo para posteriormente revertê-lo em capital econômico de modo continuado e constante. Guimarães Rosa está mais próximo desse padrão de uma arte “abnegada” que, embora pareça se esquecer do tempo e até negar sua historicidade, não deixa de se inserir nas esferas econômicas, ainda em ciclos mais longos de produção e consumo; Dumas se aproxima do artista que atende demandas imediatas, sendo rapidamente recompensado economicamente, ainda que desprezado pelos círculos intelectuais. O que não significa que cada um deles traçou sua estratégia conscientemente; um dos aspectos que garante eficácia à ideologia é justamente ser percebida como realidade independente e não como justificação do sistema econômico-cultural no qual se insere.
 
Essas diferentes inserções sociais da produção artística, não diminui nem acrescenta nada ao “valor”, à “qualidade”, da obra literária desses escritores. Julgar tal coisa compete ao domínio da Estética e a análise sociológica da produção da arte não interfere na sua apreciação. O que se faz aqui é justamente um resgate da Estética enquanto ramo de conhecimento autônomo e não um mera reprodutora da ideologia dominante. Reconhecer esses diferentes caminhos de inserção social que uma obra pode tomar sem impingir nisso juízo de valor é justamente criticar a penetração de considerações ideológicas no domínio da Estética. Buscar o sucesso imediato não faz com que uma obra seja necessariamente “má”; tampouco buscar agradar a intelectualidade legitimadora não faz uma obra ser “boa”. É preciso refletir então sobre o que faz uma obra ser considerada boa, sobre qual o bem contido nela que a distingue das demais.
 
Ora o “bom” é relativo, ele depende do ponto de vista de quem o postula. Até o mal pode parecer bom para quem o faz, pode lhe trazer gozo. Esse julgamento se enviesa pela posição tomada pelo sujeito. Assim, é preciso se questionar sobre os sujeitos do campo artístico e sua atuação frente a essas classificações de “bom” e “ruim”. A grosso modo, segundo Bourdieu (1996), podemos ver dois públicos formados por grupos extremamente heterogêneos entre si que costumam adotar posturas díspares: os consumidores que buscam “entretenimento” e os que buscam a “arte”. Deve-se perceber que essa divisão não é estanque, mas que muitas pessoas podem hora fazer parte de um grupo, hora de outro. Julgar o que é “bom” em Literatura, portanto, passa por julgar o que é “bom” para cada um desses grupos, os mais importantes, devido a seu tamanho e poder, dentre os seus consumidores.
 
Os leitores que buscam “entretenimento” seriam aqueles ligados a obras de sucesso imediato e a autores desprezados pela intelectualidade, ainda que – ou talvez porque (sic!) – de grande sucesso de vendas; a estes se ligaria autores como Dumas. Os leitores que buscam a “arte” seriam os ligados a obras reconhecidas como válidas pela intelectualidade, ainda que desconhecidas do grande público – e às vezes essa pouca divulgação até serve para dar mais charme ao leitor dessas obras, tido, então, como erudito – com alta legitimidade e vendas que continuam a ocorrer por um longo período de tempo, ainda que menores que a dos grandes sucessos do momento; a estes se ligam Guimarães Rosa e outros. Ambos os grupos vão adotar como critérios de valor para as obras, conscientemente ou não, a adequação delas a seu conjunto de valores e visão de mundo, pois como já se disse, a definição do objeto passa pelo ponto de vista do sujeito.
 
Há obras, entretanto, que conseguem ser ao mesmo tempo uma coisa e outra; ter penetração nas duas categorias. De todo modo, essa divisão não deixa de ser útil para pensarmos em duas coisas: na injustificada oposição entre “arte séria” e “entretenimento”, que só pode ser explicada enquanto fruto da ideologia dominante, e o papel da recepção (do público leitor, dos críticos, da mídia, das escolas, das editoras…) na valoração da obra literária.
 
Assim, a Crítica e a História Literárias têm se debruçado apenas sobre os autores que buscam a “arte séria”, desprezando os autores que produzem “entretenimento”. Isso se dá porque esses ramos do conhecimento são armas da intelectualidade na disputa por poder com o grande público – o do “entretenimento”. Esses grupos disputam o poder sobre o capital simbólico e econômico existente em forma de livros. Isso se dá por uma razão muito simples: ninguém quer gastar dinheiro, tempo e esforço mental para ler um livro e depois ver essa obra sendo menosprezada por outrem. Ainda mais importante, o leitor que se identifica com uma obra não vê com bons olhos os que a detratam. Lutas por poder, então, vão se consolidar e moldar o campo literário, bem como o fazem com os campos político, econômico e social.
 
Analisar as disputas de poder na significação social e cultural de uma obra é essencial para entendê-la de modo imparcial e científico. Desse modo, para estudar a obra e o autor, se faz necessário pensar as relações de poder que a envolvem. No caso de Rosa, há um singular empoderamento do discurso do autor, que cresce e o consolida como distinto e único, por ser dono de um saber que é só seu: o como fazer sua obra. Quanto mais sua obra é tida como singular, maior seu poder. Quanto mais banal ela for, menos importa saber como fazê-la. Ora, essa qualificação de “singular” e “banal”, “boa” e “ruim”, depende do sujeito que a faz. Qualquer que seja a sua escolha, será uma tomada de posição na luta pelo poder e conferirá ou não poder ao autor da obra e aos outros membros do grupo que a ele se ligam (outros leitores, tradutores, editores, críticos, imprensa…). Esse empoderamento não precisa do aval do autor e pode acontecer até mesmo à revelia dele e sua legitimidade depende do contexto, das relações que estão sendo travadas: ele é legítimo frente a escritores de massa de qualquer lugar do mundo, mas não será quando colocar um escritor de um país periférico frente a “um grande escritor” de um país hegemônico. As relações antecedem os termos.
 
É por esses fatores que a apreciação de uma obra deve ser vista como um fato social, como a construção coletiva de um “valor estético”, o que é um bem simbólico; bem esse que se transforma em valor econômico e social. Como produção/circulação/consumo/reprodução de bens simbólicos no seio de uma sociedade, a obra literária é antes de tudo uma construção coletiva. Ela só tem valor enquanto a coletividade lho confere. Uma obra não se liga apenas ao “mundo das obras de arte”, ela se liga a tudo que há de humano ao redor de si.
 
Geralmente, quando se fala das influências notadas na obra de um escritor, se diz de outros escritores que teriam sido lidos por este e imitados de uma ou outra forma. Essa, porém, não é a única influência que recebe uma obra de arte. Partir desse raciocínio é pensar que os livros são um domínio à parte, independente do mundo dos seres humanos e que se regem por regras próprias. O que se assemelha a dizer que o autor é apenas alguém inspirado por uma musa, ou qualquer outra divindade, um receptáculo dessa ação divina que não a compreende e perde o domínio sobre si, extasiado. Foi justamente esse o argumento de Íon diante de Sócrates (Platão, 2007), para justificar sua não compreensão do texto homérico que frequentemente recitava. Ao que o filósofo respondeu, com toda a ironia, que Íon não poderia, pois, ser considerado um artista.
 
Nem apenas inspiração divina, nem imunidade a tudo aquilo que não for Literatura. Assim como não vemos uma máscara banto do século XVII apenas como produção do aldeião x, y ou z, mas como expressão de toda a cultura banto, da qual o artista faz parte, também devemos ver uma obra de arte ocidental como produção individual, sim, mas também coletiva. Poderia se argumentar que os artistas banto fazem máscaras sempre iguais e que por isso são expressão da cultura e da coletividade e não dele; suas obras são imitações de modelos antigos, por isso não têm individualidade. Ora, os Árcades imitavam os clássicos gregos e nem por isso alguém confunde Marília de Dirceu com A Odisséia. Tampouco podemos negar que nossa visão de que as obras das culturas alheias nos parecem iguais se dá por não dispormos do conhecimento e da iniciação cultural necessárias para saber quais os elementos simbólicos daquela cultura estão em jogo na obra e como ela os relaciona (Geertz, 1997). Assim também um banto do século XVII não iniciado na cultura ocidental acharia pouca ou nenhuma diferença entre as obras de El Greco e Rafael Sanzio, embora essas diferenças nos pareçam óbvias.
 
A arte demanda uma iniciação nos elementos com que trabalha para poder ser compreendida e admirada, é o que se chama muitas vezes de “a educação do gosto”. Mesmo um ocidental não iniciado pode ter dificuldades para diferenciar as obras de diferentes escolas artísticas e para criticar o que lhe é apresentado, se valendo de componentes ideológicos (estar num museu importante, a legitimidade dada por um círculo de intelectuais…) para julgar o valor estético daquilo que vê, lê ou ouve. Isso mostra que arte é um jogo de relações com elementos e seu valor estético está em fazer essas relações dentro de uma determinada gramática ou não. Ou seja, seu valor é socialmente determinado, na medida em que os elementos que trabalha são socialmente dados. Um exemplo simples: é notório o valor que teve o surgimento de novos pigmentos na dinâmica de criação dos pintores ao longo dos séculos. Seria impossível para um pintor do século IV a. C. realizar a mesma obra que um do século XIX, que dispunha de uma gama muito maior de opções de cor e a “gramática” que analisa um determinado quadro e as relações que ele estabelece com os elementos disponíveis têm de levar isso em conta. Um quadro que nos pareça escuro e sombrio pode passar a ser considerado colorido, se se leva em conta que o pintor usou muitas das cores que dispunha na época, ainda que para a atualidade essa gama pareça limitada. Assim, o valor estético não pode ser totalmente independente do contexto histórico e social. Geertz chega a dizer que “a definição de arte nunca é intra-estética” (146).
 
Isso não diz respeito, porém, apenas à particularidades técnica, mas também a dimensões sociais. Como mostrou Elias (1995), a Mozart foi impossível ter a liberdade que outros artistas, posteriores a ele, tiveram, devido às condições sociais de sua época. Ele foi obrigado a se subjugar durante muito tempo a um patrono e a fazer o tipo de música que a este agradava. Ainda que pudesse compor para si obras que respeitassem seu gosto pessoal, tinha de se adequar a padrões sociais e se esforçar por agradar gente que nem sempre pensava como ele a respeito de música, o que certamente influenciou decisivamente, no mínimo, essa parte de sua produção, além de lhe tirar o tempo necessário para compor do jeito que queria.
 
A obediência às regras sociais, à gramática que ordena os elementos do jogo de relações da arte, nem sempre opera no sentido de uma ordenação clássica e tradicional dos elementos da obra. Às vezes pode acontecer exatamente o contrário: artistas que tenham um pendor para o clássico podem ser marginalizados em épocas e lugares em que a “regra seja quebrar as regras” e inovar nas formas e nos padrões estilísticos. De qualquer modo, o artista joga com o que a sociedade e a cultura lhe dão. O pintor terá de usar os pigmentos conhecidos de sua época e local; o músico se adequar ao mercado consumidor que quer atingir.
 
Ignorar isso na produção literária é ignorar sua presença na sociedade e a dinâmica de sua obra no seio o entendimento do papel da recepção na leitura de sua obra. Em outras palavras, um Proust não seria considerado um bom escritor se ele não atendesse a desejos e anseios de um determinado grupo, pequeno ou não, conhecedor de sua obra. Um outro grupo receptor implicaria em um outro julgamento estético e é necessário refletir sobre isso para entender melhor a obra em si e sua penetração nos círculos eruditos da sociedade em questão e sua posterior disseminação em direção aos outros grupos.
 
Vê-se, pois, que a definição de “bom escritor” se liga ao poder do grupo erudito, consolidado na universidade, na alta burocracia escolar (os formadores do currículo escolar), nas academias (Academia Brasileira de Letras e outras do gênero) e onde mais possam se encontrar aqueles que por seu saber, e consequentemente, poder impõe um ponto de vista ideológico do que é legítimo ou não artisticamente. Reproduzir essas categorias implica em aceitar a ideologia desse grupo, sem questionar a luta social que aí se engendra. É uma questão de classe: para se consolidar, este grupo, ligado à burguesia, teve de atacar os padrões de arte do grupo de quem tomou o poder, ligado à aristocracia. Se um dia, a burguesia cair, o grupo que tomar seu lugar, terá de lutar contra os valores por ela defendidos e, consequentemente, com seu padrão de arte. Essa oposição, porém, não é total: embora, pouco se fale em Racine ou Corneille, muito próximos do ideal aristocrático suplantado pela burguesia, não se nega seu valor, embora ele seja considerado menor que os dos autores afeitos aos ideais burgueses. Tampouco, Homero, Virgílio, ou Dante tenham sido deixados de lado. Isso porque a oposição entre a classe emergente e a detentora do poder não gera uma destruição total de nenhuma das duas, mas uma síntese dos elementos presentes nas duas classes. Ou seja, trata-se de uma relação dialética.
 
 
Bibliografía
 

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CANDIDO, Antonio. Tese e antítese. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 1976.

ELIAS, N. Mozart – a sociologia de um gênio. 1 ª Edição. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995. 152 p.

GEERTZ, C. O saber local. Trad. JOSCELYNE, V. M. Petrópolis: Vozes, 1997.366 p.

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MEGALE, H. (org.) A demanda do Santo Graal. Trad. MEGALE, H. 1ª Edição Coleção Companhia de Bolso. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. 656 p.

MORETTI, F. Atlas do romance europeu 1800-1900. 1 ª Edição. Rio de Janeiro: Boitempo, 2003, 216 p.

_________Literatura vista de longe. Trad. NETO, A.P.1 ª Edição. Porto Alegre: Arquipélago, 2008. 184 p.

PLATÃO. Sobre a inspiração poética (Ion) & Sobre a mentira (Hípias Menor). 1ª Edição. Trad. MALTO, A. Porto Alegre: LP & M Editores, 2007. 93 p.
 
 

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