A HETEROGENEIDADE LINGUÍSTICA E OS FATOS HISTÓRICOS EM O PAÍS DO CARNAVAL

Clarice Nadir von Borstel
Universidade Estadual do Oeste do Paraná

INTRODUÇÃO

Quando se pretende vincular uma obra ao que a tornou possível, pensar seu surgimento no tempo e no espaço determinado vem a ser uma forma de análise tão antiga quanto ao estudo da literatura. Porém, para poder analisar uma obra literária, em seu contexto histórico, social e linguístico, é possível distinguir as atitudes da história literária, quando é utilizado um léxico que convém para qualquer momento: a obra exprime o seu tempo, é representativa dele, e pode ser influenciada por determinados acontecimentos de uma dada época e, ou de um dado grupo sociocultural. Como também de uma orientação mais estilística, podendo apreender à obra literária como universo fechado (Maingueneau, O contexto 22-24).

As reflexões semântico-pragmáticas e as situações sobre enunciados narrativos permitem compreender melhor a articulação entre processo criador, instituições literárias e a discursividade linguística.

Tratando-se desse percurso narrativo de vida e experiência do escritor-romancista,

é característico que não são os acontecimentos da vida privada que se submetem e se compreendem pelos fatos sociais, mas o inverso; os acontecimentos sócio-políticos adquirem significado no romance graças somente à sua relação com os acontecimentos da vida particular. E apenas essa sua relação com os destinos particulares que é explicada no romance; a sua essência sócio-política permanece fora dele. (Bakhtin, Questões 232-233)

De acordo com essas concepções dadas por Maingueneau e Bakhtin, pretende-se analisar e interpretar a obra O país do Carnaval, de Jorge Amado, a partir de situações de enunciações narrativas pelo ato de comunicação no qual o dizer e o dito no texto e seu contexto são indissociáveis, na obra literária. Observando os fatores históricos e socioculturais, que influenciaram a heterogeneidade linguística e a forma gráfica utilizada nas situações narradas pelo autor.

A VIDA E AS SITUAÇÕES ENUNCIATIVAS DO ESCRITOR-ROMANCISTA EM SUA OBRA

As experiências de vida e os acontecimentos sociais, políticos e culturais na vida e na obra de um escritor-narrador mostram aspectos na literatura enquanto “configuração institucional que condiciona os comportamentos, mas, para criar o escritor deve explorar esse condicionamento e interferir nele”. Ou ainda, “as obras emergem em percursos biográficos singulares, porém esses percursos definem e pressupõem um estado determinado do campo” de pesquisa (Maingueneau, O contexto 44).

O estudo e o estado de determinado campo descritivo quando se trata do gênero literário “narração” e a noção de “situação de enunciação” estes não recebem, necessariamente, um sentido evidente do escritor (Maingueneau, Elementos 38), mas os fatos narrados e as situações de enunciação podem ser caracterizados a partir da vivência e da observação de fatores linguísticos, culturais, sociais e regionais.

O ato de escrever, de trabalhar uma obra literária, constitui a região de contato mais evidente entre “a vida” e “a obra” do escritor. Portanto,

[…] trata-se de fato de uma atividade inscrita na existência, como qualquer outra, mas que também se encontra na órbita de uma obra, na medida daquilo que assim a faz nascer. A ponto de se discutir muitas vezes para se saber onde passa a fronteira entre o texto e o “antetexto”. (Maingueneau, O contexto 47).

Esta obra foi o primeiro romance do escritor Jorge Amado, quando traz um relato sobre a intelectualidade brasileira, com indícios de uma formação européia, dos anos de 1920 e 1930. Na narração o escritor ironiza o Carnaval e a mestiçagem, mostrando ser um forte fator de atraso no país, quanto às discussões políticas e filosóficas da época, nas situações de enunciações da obra, quando do uso da linguagem transcende os limites nacionais, políticos e geopolíticos.

A literatura é, normalmente, concebida como manifestação artística, cultural e sociológica, por conseguinte, Jorge Amado descreve esses fatores muito presentes no país e no exterior, narrando em O País do Carnaval, principalmente os da Bahia e do Rio de Janeiro, onde vivenciou e presenciou os fatos, que ao mesmo tempo em que lhe garantia uma almejada especificidade que aliara à palavra escrita o gesto à ação imediata de traços sociológicos e linguísticos deste período político.

Ao tratar sobre as situações enunciativas de uma obra, é necessário relatar um pouco da vida do escritor-romancista, por conseguinte, Jorge Leal Amado de Faria nasceu em Itabuna, Bahia, em 10 de agosto de 1912.  Com dois anos de idade a família estabeleceu-se em Ilhéus, onde viveu a maior parte da infância, que lhe serviu de inspiração para vários romances. Foi para o Rio de Janeiro, em 1930, para estudar na Faculdade de Direito, da então Universidade do Rio de Janeiro, atual Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Durante os anos de 1920 e 1930, a faculdade era um centro acadêmico de discussões, polêmicas políticas e de arte, tendo nesse contexto universitário travado seus primeiros contatos com o movimento comunista organizado no país.

Em O País do Carnaval, o autor faz várias referências ao movimento comunista, podendo ser constatado no seguinte enunciado, quando finaliza o texto escrito,

 

Eu cheguei à suprema infelicidade… Sou bem a representação da minha geração. A geração que sofre. Que assiste aos últimos suspiros da democracia e aos primeiros vagidos do comunismo. Geração traço de união. Geração do sofrimento. Estou perdido na noite da dúvida. Desapareço cada vez mais. Braços invisíveis me apertam. Eu, afinal, tenho necessidade de qualquer coisa… (Amado 182)

 

Essa enunciação narrativa pode ser reiterada pelos estudos de Duarte, quando apresenta que

[…] o modernismo, dá ênfase bem marcada ao universo ideológico e cultural do período […], resultando em especial o conjunto de perspectivas e concepções partidárias acerca do caminho político a ser seguido pelo Brasil, aliado a isto a situação e as tendências da política internacional marcada pela antinomia capitalismo-socialismo e socialismo-facismo, situado nesse panorama a parte mais importante da novelística social da época à qual o romance amadino está diretamente ligado. (12)

 

Assim, as situações narrativas em O país do Carnaval estão, diretamente, vinculadas ao debate político, ideológico e social dessa época. Historicamente, grandes acontecimentos ocorreram nesse período, como a Semana de Arte Moderna em São Paulo, o Levante do Forte de Copacabana, no Rio de Janeiro e a fundação do Partido Comunista Brasileiro, no país, foram marcos sociais e políticos importantes para o jovem escritor. Essa preocupação com a identidade nacional, assim como também com as diferenças regionais, com a renovação da linguagem literária e a pesquisa regional dos falares populares de expressão coloquial foram dados relevantes apontados na obra. O romance do início ao fim dialoga com o tempo e com o espaço geográfico, no qual se insere na literatura social que mostra os fatos históricos, políticos, culturais e a diversidade linguística da época.

O escritor-romancista Jorge Amado foi jornalista, envolvendo-se com a política ideológica, tornando-se comunista, como muitos de sua geração. São temas constantes em suas obras os problemas econômicos, injustiças sociais, folclore, política, crenças, tradições sensualidade do povo brasileiro, com ênfase ao regionalismo da Bahia, contribuindo para caracterizar e divulgar a cultura do povo brasileiro.

Ainda, quando adolescente, em Salvador, participara da “Academia dos Rebeldes”, quando as notícias dos levantes e da marcha da Coluna Prestes levavam ao inconformismo do futuro romancista para o rumo das transformações políticas concretizadas na revolução de trinta, essa perspectiva dos liberais da época é mostrada através da discursividade narrativa, na obra literária. Assim, a “Academia dos Rebeldes” é significativa para o escritor-romancista, mostrando o caráter de revolta boêmia que estão presentes nos enunciados narrativos, as características de determinados fatos da juventude daquele tempo, ou seja, na obra predomina o sentimento de revolta, mostrando uma alternativa de um processo político mais democrático iniciando discussões entre os jovens, sobre o comunismo vigente na época, traços da radicalização político e ideológica estão caracterizados em vários enunciados narrativos sobre a atividade cultural do escritor, mesmo que esteja representado de forma inverossímil, como pode se observar na situação narrativa:

 

Paulo Rigger notou que o povo não estava satisfeito. Mas o povo não pedira a revolução? Ele mesmo. Paulo Rigger, assistira a meetings em que os oradores berravam pela revolução, “que tiraria o Brasil da beira do abismo”…

– Enterrou-o, meu amigo. Enterrou-o. (114 – grifos do autor).

 

Os fatores que tratam da história, de dados socioculturais desse período e da vivência do escritor-romancista, nesse conjunto, cumprem um papel relevante na medida em que consolidam o autor à obra e atestam as formas de ver e organizar o saber marcado pela sua formação.

Na visão de Burke, sob uma conceituação mais ampla que propõe para a histórica cultural, o fundamental, nesses casos, é observar “a importância das conseqüências involuntárias tanto na história da literatura histórica como na história dos acontecimentos políticos” (Burke 13-14).

Assim, o que interessa neste estudo sobre os fatores históricos e sociolinguísticos na obra literária são as pistas linguísticas semânticas e pragmáticas, que indiquem a dimensão que emprestou ao corpus de sua obra, e, o papel que atribui à tarefa escrita a qual se propôs a escrever neste período no qual é representante do modernismo regionalista (segunda geração do modernismo).

Neste sentido, para poder discutir as situações enunciativas apresentadas por Jorge Amado, na obra, referencia-se Bakhtin, quando diz que

 

a verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema abstrato de formas lingüísticas nem pela enunciação monológica isolada, nem pelo ato psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal, realizada através da enunciação ou das enunciações. A interação verbal constitui assim a realidade fundamental da língua. (Bakhtin, Marxismo 123 – grifos do autor).

 

Desta forma, podem ser observados na obra, os enunciados narrativos de forma discursiva quando se referencia a temática relacionada ao título, desde o início quando caracteriza O País do Carnaval, em vários momentos, recorre-se a esse enunciado do título, quanto à volubilidade e a falta de caráter do povo brasileiro, quando das situações narrativas:

 

No outro dia, o grito da descoberta:

   – Terra! Terra!

 Lá longe, o País do Carnaval. (18).

 

Apresenta-se o ceticismo e a indolência do povo, relacionados ao país e aos homens:

 

– País dos grandes homens… dos grandes homens… e do Carnaval…

No hall do hotel, Paulo Rigger teve uma surpresa. Julie lá estava, lendo uma revista. Quis passar rápido sem cumprimentá-la, mas ela o viu. Chamou-o. (25).

 

Hoje, ataca os revolucionários. Isso é mania de fazer discurso… País do Carnaval…[…]. (138).

É verdade. Está à morte. Grande Ticiano… Homens como ele vivem poucos em cada século… E morrem na miséria.

– Nasceu no Brasil…

Neste País do Carnaval só as máscaras comuns sobem… Ele foi muito superior a nós todos. Conseguiu vencer a insatisfação. Não precisou solucionar o problema da sua existência. Colou-se sobre a vida. Espectador… (152)

 

A obra e o próprio título apresentam um pessimismo característico de certa visão de um mundo conservador, responsável por mitos e por um discurso preconceituoso em termos de raça, da sensualidade e de atitudes envolvendo o Brasil e o seu povo.

As dúvidas e descobertas de Jorge Amado, quando tinha 18 anos, constatam-se nesta obra, quando o livro em prosa trata sobre o ceticismo dos intelectuais brasileiros, sobre um país sem princípios e sem preocupações filosóficas e políticas.

O autor apresenta enunciados de expressões linguísticas que caracterizam aspectos sociolinguísticos, quanto às expressões estilísticas e culturais de empréstimos no francês, no inglês e no latim, como também a utilização do bidialetalismo narrados pelos personagens de uma forma oral para o escrito, entre o culto e o popular. Mostrando através da palavra escrita ritmos e entonação prosódica da fala cotidiana – os personagens expressam-se em situações enunciativas coloquiais que poucos romancistas alcançaram na época em que a obra foi escrita, em 1930, sendo a primeira publicação em 1931, Editora Schmidt, com prefácio de Augusto Frederico Schmidt, com uma tiragem de mil exemplares, neste período o livro recebe elogios dos críticos e torna-se um sucesso. Como todo escritor-romancista que é bem aceito pelos leitores, também, Jorge Amado, tem sido alvo de uma recepção tanto crítica, quanto polêmica e heterogênea. Porém, a maneira que o autor tinha para se expressar vem a ser uma qualidade de um bom escritor.

A HETEROGENEIDADE LINGUÍSTICA EM O PAÍS DO CARNAVAL

Jorge Amado, iniciando a sua produção literária muito jovem, teve como meta principal – escrever para o povo – mostrando em sua obra uma linguagem marcada pela oralidade e pela estilística, na qual o coloquial e, ou informal, vem a ser o grande foco distintivo de um estilo cujo fim é o de mostrar as várias modalidades dos falares populares que até aquele período, o romance brasileiro fora então incapaz de incorporar a variabilidade linguística, a maioria dos escritores de romances desse período histórico fizera de modo excessivamente estililístico.

Ou seja, a linguagem popular é mostrada na obra de modo isônomo e verossímil, à igual forma de situações retratadas, para atingir, assim a representação de um sentido de informações semânticas e, de uma interpretação pragmática social, cultural e de sentimentos, nas falas dos personagens nos enunciados narrativos.

Na edição analisada, quando o autor utiliza-se de formas estilísticas, do uso informal da linguagem e dos empréstimos, esses itens lexicais apareceram sempre na forma gráfica em itálico.

Hoje, quando se trata em uma obra literária sobre a diversidade cultural, social e linguística, a preocupação com esses dados é natural em uma época como a de agora, marcada por encontros cada vez mais intensos de todos os tipos de discussões sobre a linguagem. Emprega-se uma grande heterogeneidade de itens lexicais em diferentes locais e diferentes disciplinas para descrever os processos culturais de fenômenos de variação linguística, de empréstimos, de aculturação e, ou de transculturação, de hibridização quando da interação comunicativa e de interpretação de culturas e da língua nacional.

Porém, nos anos de 1920 e 1930, isso era novo, e, muitas vezes chocava os intelectuais da época. Por isso, considera-se Jorge Amado, um inovador em utilizar a heterogeneidade linguística e sociocultural, nesta sua obra literária.

O uso de variáveis da língua na literatura tem origem desde a Antiguidade Clássica, e, ela varia no tempo e no espaço, criando os dialetos regionais, varia na hierarquia social e com o próprio indivíduo, de acordo com o contexto social com o qual o escritor narra fatos do cotidiano em sua obra.

A VARIAÇÃO LINGUÍSTICA DE NÓS POR A GENTE NOS ENUNCIADOS NARRATIVOS DOS PERSONAGENS

Para poder explicar o uso desta variável linguística de nós por a gente, do português brasileiro é necessário apresentar estudos que trazem essa discussão desse período histórico em que foi utilizado pelo escritor na obra, como também sobre estudos recentes desta variável bidialetal.

O primeiro estudo sobre a linguagem popular, no Brasil, foi em 1920, por Amaral ao mostrar traços e itens linguísticos de estudos dialetológicos sobre as singularidades fônicas, mórficas, sintáticas e lexicais que denomina “um aspecto da dialetação portuguesa em São Paulo” (43). Amaral apresentou estudos sobre oDialeto Caipira, mostrando a ocorrência quanto à forma a gente no jornal Correio da Manhã de 26/06.1901: “A primeira página é um primor de gentileza. Lendo-a chega a gente a acreditar que o Sr. Murtinho, ministro, sacrificou o Sr. Murtinho especulativo, ao Banco da República”.

Antenor Nascentes publica O linguajar Carioca, dedicando-o a Amaral, por quem tinha especial admiração pelos seus estudos inovadores “quanto à naturalidade e à espontaneidade da língua popular” (14). Nascentes mostra que é na linguagem popular que se usa cotidianamente o item lexical a gente em lugar do pronome de primeira pessoa do plural de nós, classificando-o como pronome indefinido:

 

O pronome de primeira pessoa do plural é nóis, o da segunda pessoa é vóis (na classe culta é vós de emprego retórico). Usa-se muito o indefinido a gente em lugar de nós e em lugar de vós aparecem vocês e os Srs. (89 – grifos do autor)

 

Em estudos mais recentes, quanto ao uso da forma linguística a gente Said Ali mostra o que

 

têm em comum estes dois pronomes – Homem e a gente – pronomes que ocupam pólos opostos na história da língua, o primeiro de uso comum no português primitivo até o séc. XVI e, o segundo usado principalmente na linguagem familiar da atualidade, mostrarem que se originaram cada qual de um substantivo; isto é, são nomes que assumem caráter pronominal quando usados não já na acepção própria, mas para indicar a gente vago e indeterminado. (116)

 

O autor também classifica a forma linguística a gente como pronome indefinido. Porém, algumas gramáticas divergem quanto às conceituações dadas à forma linguística de nós por a gente, ora tratam como pronome pessoal, ora como pronome indefinido e ora como forma de tratamento.

Sob a ótica da semântica Benveniste identifica as diferentes possibilidades de sentido de certas formas pronominais, quanto ao uso de nós por a gente, esta forma linguística poderia ser utilizada para expressar o “eu-ampliado”, referindo-se, às vezes, a um grupo indeterminado de pessoas.

Portanto, apresenta-se a variabilidade linguística de uso de nós por a gente, em O País do Carnaval, cuja variação tem origem na linguagem popular, ou seja, no cotidiano familiar, utilizada por Jorge Amado, em 1930, em situações de narrações pelos personagens:

 

José Lopes concordava com Rigger. Ricardo e Jerônimo Soares classificam aquilo de mais uma blague de Paulo.

– gente não deve perdoar a imbecilidade.

Não deve nem pode… Então eu hei de perdoar a burrice crassa daqueles mulatos que publicam uma revista que é uma afronta à gramática e às boas letras do país? – interrogava Ricardo Brás.

– Eles não têm culpa. Não foram eles que se fizeram burros. (80 – grifos em itálico pelo autor)

 

Podendo, também, ser observado neste enunciado:

 

– E Jerônimo oculta a sua felicidade. Deve ser assim… A gente deve sofrer e gozar sozinho. (151)

 

Esta variável linguística de nós por a gente, utilizada por Jorge Amado na obra literária, mostra o falar popular de expressão coloquial como um dado relevante do bidialetalismo do português brasileiro. Amaral, em 1920, apresentou um estudo inovador sobre os dialetos utilizados em São Paulo, deve ter gerado muita discussão e polêmica pelos intelectuais da época, sobre o uso dessa variável do falar português. Portanto, o que se observou na obra foi que todos os itens lexicais com sentido estilístico foram grifados em itálico, mas isso não ocorreu com o item lexical a gente. Outros fatores que contribuíram para o uso das inovações linguísticas e dos neologismos regionalistas na literatura brasileira foram os fatos e acontecimentos que ocorreram na Semana da Arte Moderna.

No momento, há inúmeros estudos sobre a variável nós por a gente em várias regiões do país sob uma concepção sociolinguística, devido à relação entre língua e sociedade e por ser produto desse meio, a língua apresenta inúmeras variantes, como instrumento de comunicação verbal, ela é expressiva, inovadora, dinâmica, heterogênea e diversificada em todas as escoras sociais, culturais e geográficas no país.

O USO DE EMPRÉSTIMOS EM O PAÍS DO CARNAVAL

O empréstimo linguístico na literatura é muito utilizado pelos escritores em suas obras, relacionado ao tempo histórico-cultural e ao espaço geográfico. A língua nacional tem recebido termos emprestados de línguas como resultado das relações políticas, culturais, comerciais com outros países e, ou como recursos retóricos e estilísticos em obras literárias. Há uma verdadeira riqueza lexical em relação às línguas estrangeiras, ao uso prosódico e às mudanças fonológicas no português, desde a vinda dos portugueses, dos africanos e de todas as outras imigrações que para o Brasil vieram.

Apresentando uma riqueza lexical de empréstimos estrangeiros em geral, isso está muito presente nos romances de Jorge Amado, demonstrando que o processo de mudança linguística está intimamente relacionado com a história social, política e cultural de um povo.

Utilizar elementos estrangeiros em uma língua não é fruto, apenas, das relações mencionadas, trata-se, antes, de um fenômeno sociolinguístico ligado ao prestígio de que goza uma língua ou o povo que a fala. Desta forma, os povos que dependem econômica, e culturalmente de fatores externos, não podem deixar de adotar as denominações e ideias importadas, assim como, também à nomenclatura correspondente.

De acordo com Aubert, mesmo em pesquisas empíricas ocorre a complexidade do empréstimo, esses são menos simples e transparentes do que se poderia imaginar, segundo o autor.

Inúmeros são as concepções dadas ao termo empréstimo e, ou estrangeirismo. O empréstimo acontece em uma dada língua, quando se utilizam, no item lexical, traços fonológicos (segmentos consonantais, vocálicos e recursos prosódicos), morfossintáticos, semânticos e termos culturais de um vocábulo estrangeiro em enunciados da língua nacional. Já o estrangeirismo classifica-se como um item lexical hibridizado por traços fonéticos (fônicos e prosódicos), morfossintáticos e semântico-pragmáticos de uma língua estrangeira com a língua nacional, podendo enriquecer o dialogismo em uma dada língua, priorizando temas do cotidiano, fatos culturais, acontecimentos nacionais e internacionais, caracterizado pela criatividade estilística na enunciação dada pelo falante e, ou pelo escritor em situações enunciativas de pessoas reais no tempo e no espaço de dado fato enunciado.

Corrêa desenvolve um estudo sobre empréstimos, adaptações e explicações sobre as marcas culturais sobre a frequência absoluta e relativa dos procedimentos na tradução em inglês das obras Dona Flor e Seus Dois MaridosTendas dos Milagres Teresa Batista Cansada de Guerra de Jorge Amado. Este estudo é retomado por Aubert, citando que “no conjunto de textos analisados por Corrêa, os empréstimos, as adaptações e as explicações predominam sobre os demais procedimentos” de tradução (34). Na análise desenvolvida por Corrêa os empréstimos simples nas três obras analisadas predominam sobre os empréstimos com grifo e dos empréstimos indiretos. Em Tendas dos Milagres houve 30,7% de uso de empréstimos simples, ocorrendo marcas linguísticas da especificidade cultural, quer em termos de ocorrências de cada termo, quer pela variedade de termos. A autora apresenta que em Dona Flor e Seus Dois Maridos o uso de empréstimos simples é de 18% e em Teresa Batista Cansada de Guerra é de 17,7%. Segundo Aubert, do ponto de vista de marcas culturais textualizadas há um comportamento tradutório bastante similar sobre o uso de empréstimos simples, porém, segundo Aubert, o idioleto do tradutor também pode interferir na tipologia textual do uso de empréstimos.

De acordo com estes estudos, o escritor-romancista pode utilizar-se, também, de empréstimos que mostram itens lexicais no sentido vivencial formal, estilísticos, culturais e pragmáticos em enunciados narrados pelos personagens com fortes marcas sociais e históricas.

A partir desta discussão sobre empréstimos, analisam-se os procedimentos de usos e as marcas culturais destes, utilizados em O país do Carnaval, por Jorge Amado, quando o co-texto é usado como recurso suplementar, cultural e estilístico – os empréstimos e os estrangeirismos estão graficamente grifados em itálico, nesta edição.

Inicialmente, analisam-se os empréstimos utilizados em enunciados narrativos na língua francesa,

 

(01) – Entretanto, aquela francesinha que conhece o mundo todo, que já teve casa de rendez-vous em Pequim, já foi amante de pretos da Colônia do Cabo e ganhou dinheiro em Monte Carlo, julga que viaja para um país chamado Buenos Aires, que tem por capital o Brasil, uma cidade onde a população anda de tanga. (14)

 

Neste enunciado narrativo (01), tem-se o léxico substantivo masculino rendez-vous – “lugar de encontro” (Burtin-Vinholes 570), sob uma forma cultural pode significar lugar de encontro de casais para se amarem e, ou locais de pequenas reuniões para beber e conversar.

 

(02) Paulo Rigger aproximou-se.

– Mademoiselle

– Mademoiselle, não. Julie, sim.

Ah, Julie, você é adorável!. (17)

 

No enunciado (02), aparece o empréstimo simples de uma forma cultural e retórica, o substantivo feminino Mademoiselle, tendo como significado “moça solteira e, ou senhorita” (Burtin-Vinholes 441), na obra literária no sentido de “moça de programa”.

 

(03) Maria de Lourdes desculpava-se. Tão raro um cinema… Só quando grátis. E a empresa, malvada, resolvera suspender as soirées chics (moças e senhoras, grátis; senhores, mil e duzentos réis; crianças, seiscentos). Agora, o novo proprietário (o ex-dono não pôde continuar no bairro. As mulheres moveram-lhe uma guerra de morte. E ele vendeu o cinema), querendo popularizar-se, recomeçou a dar soirées grátis.

O mulherio apoiou Maria de Lourdes. (69)

 

No enunciado (03), é utilizada a expressão nominal em forma de empréstimo cutural: soirées chics (reuniões elegantes), do “substantivo feminino soiréesignificando reunião e do adjetivo chic no sentido de elegante” (Burtin-Vinholes 142; 606). Nesse mesmo enunciado narrativo, tem-se a expressão nominal em forma de estrangeirismo: soirées grátis (reuniões grátis), o uso do item lexical no francês soirées mais o item grátis no português, no sentido que as sessões de filmes seriam gratuitas.

 

(04) José Lopes, lendo cada vez mais, enterrado entre os livros de filosofia, via uma luta intensa. Divisa entre o instintivismo e espiritualismo. Procurava os amigos para discutir, livrar-se daquele peso. Mas os amigos pouco apreciam. Entregues ao amor, mal vinha à redação fazer às pressas as suas notas. Pedro Ticiano estava insuportável.

Cada vez mais blagueur, respondera-lhe quando falara sobre o assunto:

– O espiritualista não conhece o espírito, e o materialista não conhece a matéria. A atitude da dúvida é a única atitude. Você vê toda a confusão moderna. Pois eu, o cético, me envolvo nela, sinto-a, mas entretanto, ela não me vence. (94)

 

No enunciado (04) aparece o substantivo masculino blagueur – “embusteiro, mentiroso” (Burtin-Vinholes 92). Na narração mostra o empréstimo estilístico de forma retórica blagueur no sentido de omitir as discussões e as informações sobre o comunismo, como mentiras ardilosas e, ou fatos utópicos.

 

(05) José Lopes irritava-se às vezes com as blagues dos amigos. Achava que era preciso combater a literatura de frases, de endeusamento do ceticismo. Fazer obra séria. Realizar qualquer coisa. Encontrar um caminho da vida. (40)

 

Em (06), tem-se o substantivo feminimo blagues no sentido de “embuste, mentir” (Burtin-Vinholes 92). No enunciado narrado pelo personagem tem-se o empréstimo estilístico, também, de maneira retórica no significado de contar vantagens mentirosas.

 

(06) Paulo Rieger, em Paris, como é natural, fez tudo, menos estudar Direito. Ao forma-se era um blasé, contaminado de toda a literatura de antes da guerra, um gastador de espírito, que tinha amigos entre os intelectuais e freqüentava as rodas jornalísticas, fazendo frases, discutindo, sempre em oposição. (15)

 

(07) Não. Na Europa, não. Ele não voltaria à Europa, onde se aprendia o ceticismo. Agora que resolvera o problema da vida, que chegara à finalidade, não voltaria àquela oficina de indiferentes, de blasés… Iria para a roça. (98)

Nos enunciados (06) e (07), aparecem as palavras blasé blasés, tendo origem no item lexical blaser  –  “estragar-se, corromper-se, enfastiado” (Burtin-Vinholes 93). A significação estilística e retórica deste item lexical nos enunciados mostra o personagem com ideias desvirtuadas e, ou corrompidas, depois de ter ido a Paris.

A história gira em torno de vários episódios, nos quais aparecem inúmeras vezes as palavras blagueurblague, blagues, utilizadas nas situações narrativas da obra literária, para dar o sentido estilístico de mentiroso e embusteiro quando se referia ao comunismo. Outros termos muito utilizados na obra foramblasé blasés pelo item lexical blaser, mostra, também, estilisticamente o personagem com ideias corrompidas e uma pessoa enfastiada.

Na situação narrativa de Amado, pelo personagem Rieger, Duarte diz que “na procura de si mesmo e do seu país, o personagem faz a sua ‘marcha para o interior’. Vai do Rio para Salvador e, de lá, para a fazenda. O reencontro com as origens acentua as ambigüidades do intelectual blasé, frente à poderosa presença da condição patriarcal” (41).

Em seguida, analisam-se os empréstimos da língua inglesa, têm-se os itens lexicais como emprétimos “Suerdick n. 2” (marca de charuto); Tom Mix, “o rei dos cow-boys” (o rei dos boadeiros e, ou vaqueiros); meetings (reuniões – assembléias)–  (Michaelis 164).

 

(08) A garçonete chegou com a cerveja.

Gomes pediu charutos.

– “Ouro de Cuba”… Não. “Suerdick n. 2”.

O espanto de Ticiano não tinha limites. (59)

 

O uso do léxico “Suerdick n. 2”, no enunciado (08) vem a ser um item culturalmente marcado, no sentido pragmático, quanto à importância que se dá à pessoa ao fumar um charuto “Suerdick n. 2”, fumo cultivado na Bahia, os charutos foram fabricados para os coronéis baianos. O charuto tem esta denominação por que foi criado pelo alemão August Suerdick, fabricado em Cruz das Almas, BA. O charuto Suerdick fez e faz sucesso no país.

 

(09) Lourdinha tinha razão. Tão raro um cinema… E as fitas, quais eram?

Feliz, uma alegria grande a bailar nos grandes, ela explicou:

– Tom Mix, ‘o rei dos cow-boys’. Deve ser extraordinário. (69)

Outra expressão utilizada como item culturalmente marcado é “o rei dos cow-boys”, tendo como significado o rei dos boiadeiros, as fitas e os filmes sobre os cow-boys foram e são apreciados por pessoas que gostam de assistir a um bom filme.

 

(10) Paulo Rigger notou que o povo não estava satisfeito. Mas o povo não pedira a revolução? Ele mesmo. Paulo Rigger, assistira a meetings em que os oradores berravam pela revolução, ‘que tiraria o Brasil da beira do abismo’…

– Enterrou-o, meu amigo. Enterrou-o. (114)

 

 

Neste enunciado (10) ocorre o item lexical substantivo feminino meetings no sentido de “reuniões, assembléias” (Michaelis 164). Este empréstimo utilizado no contexto enunciativo estilístico pode significar a omissão da palavra “reuniões e, ou assembléias”, quando dos enunciados narrados sobre o comunismo. Ou o uso deste item lexical no inglês pode ter sido empregado, estilisticamente, para dar maior importância às “reuniões” na obra.

Observa-se neste estudo sobre empréstimos uma única expressão linguística do latim:

 

(11) Depois, um post scriptum: “Venha embora, Paulo. As coisas aqui estão cada vez piores. Inevitável um rompimento entre Ticiano e o Gomes. José Lopes já desistiu de evitar. Só mesmo você…”

E Paulo Rigger respondeu a carta: …  (115 – grifos do autor)

 

O léxico “substantivo masculino postscriptum (posfácio) do latim” (Cunha 625) tem como objetivo fazer uma observação no final da carta. Muitos escritores-romancista utilizavam em suas narrações os empréstimos no sentido vivencial e formal da língua latina.

Jorge Amado, em O País do Carnaval, usou principalmente de recursos de empréstimos simples, que mostram itens lexicais no sentido vivencial formal, estilísticos, culturais e retóricos de uma forma pragmática em enunciados narrados pelos personagens com fortes marcas sociais e culturais de suas vivências do cotidiano. Os empréstimos utilizados pelo escritor-romancista, em sua maioria, foram empregados para uma descrição semântica do fenômeno linguístico substantivo em designar itens lexicais emprestados do francês, inglês e do latim.

CONCLUSÕES

Ao finalizar este estudo, retoma-se a visão de Burke, que as relações entre história (os fatores políticos e sociais) e literatura são marcados por Jorge Amado, em sua obra literária O país do Carnaval, quando veementemente narra sobre a história e fatos sociais, e, que nesse caso, é mostrado na narrativa “a importância das conseqüências involuntárias tanto na história da literatura histórica como na história dos acontecimentos políticos” (13-14), mostrando a discursividade da utopia socialista e as concepções partidárias a respeito do processo histórico-social, em vigor nesta época, no país.

Assim, como neste período social, cultural e histórico, houve uma preocupação com a linguagem sob os aspectos da identidade nacional e das diferenças com mudanças e inovações da linguagem, caracterizando as expressões populares na obra literária. Mostrado pelo escritor-romancista nos enunciados a variável linguística de nós por a gente. O estudo sobre esta variável, tanto em textos escritos como em expressões orais populares, foi descrito por Amaral, em 1920. No momento, há inúmeras discussões e pesquisas sobre esta variável de nós por a gente, em várias regiões do país, tanto por gramáticos sobre a língua culta escrita como por linguistas. Ainda, o autor utilizou com muita sabedoria e cuidado os emprétimos linguísticos do francês, do inglês e do latim de maneira vivencial formal, estilística, social e pragmática.

Portanto, a obra de Jorge Amado, exprime o seu tempo, é representativa dele, e pode ser influenciada por determinados acontecimentos de uma dada formação histórica e, ou de um dado grupo social, político, cultural e linguístico.

Reitera-se que a abordagem sobre os fatos históricos, socioculturais e da variabilidade linguística, em obras literárias, são relevantes para se trabalhar na prática de ensino-aprendizagem, a partir de situações enunciativas narradas pelo ato de comunicação no qual o dito e o dizer, quando são apresentados no texto e no seu contexto são indissociáveis.

REFERÊNCIAS

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Said Ali, Manuel. Gramática histórica da língua portuguesa. São Paulo: Melhoramentos, 1971.

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