GARCIA-ROZA, LIVIA. ERA OUTRA VEZ. SÃO PAULO: COMPANHIA DAS LETRAS, 2009. 85 PÁGINAS

Débora Racy Soares
Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP/FAPESP
 
 

Era outra vez Pluft, um “fantaslescente” (08). Era outra vez um lobo cansado de ser mau que nunca “est(á) a fim” de comer ninguém (15). Era outra vez uma moça branca como a neve, independente, pois desperta sozinha e dispensa o beijo do príncipe – desencantado – que chega tarde demais. Você ficou com a ligeira sensação de que o Lobo Mau não é mais o mesmo e de que a Branca de Neve anda mudada? Então, está na hora de desvendar Era Outra Vez, livro mais recente da escritora e psicanalista carioca Livia Garcia-Roza. Já adiantamos: não se trata de literatura infantil. Embora a autora estabeleça um vigoroso diálogo com o repertório tradicional de estórias infantis, seu livro é dirigido aos pais e aos educadores. Ademais, a dinâmica do recontar, operada por Roza, precisa – para funcionar – ecoar em ouvidos já familiarizados com as fábulas infantis.

Embora Garcia-Roza tenha estreado na literatura brasileira com o romance Quarto de Menina (1995), que lhe rendeu o selo de livro Altamente Recomendável, concedido pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, a maior parte de sua produção posterior transcende o universo primaveril. É o caso de Meus Queridos Estranhos (1997) e Cartão-Postal (1999) ou Cine Odeon (2001) e Solo Feminino: Amor e Desacerto (2002), semifinalistas ao prêmio Jabuti, na categoria romance. Escritora pródiga, Livia publicou ainda: A Palavra que Veio do Sul (2004), Restou o Cão (2005), Meu Marido (2006), A Cara da Mãe (2007), A Casa que Vendia Elefante (2008), Milamor (2008). Organizou também a antologia de contos Ficções Fraternas (2003), além de integrar as seguintes coletâneas:Boa Companhia – Contos (2003), 25 Mulheres que Estão Fazendo a Nova Literatura Brasileira (2004) e 35 Segredos para Chegar a Lugar Nenhum: Literatura de Baixo-Ajuda (2006).

Treze contos, articulados pelo mesmo procedimento estético – o estranhamento do familiar – compõem Era Outra Vez. Antes, porém, que você, leitor, pense que deu a louca na autora ou que os enredos infantis estão de pernas para o ar, avisamos: trata-se de outros ares. Garcia-Roza parte da desconstrução de algumas estórias clássicas, bem conhecidas, e as reelabora à luz de nossa conturbada contemporaneidade. Dessa forma, experiências e conflitos atuais são discutidos e problematizados, a partir de personagens extraídas do universo dos tradicionais contos infantis. Assim, desfilam pelo livro  três famosos porquinhos, um (in)certo Gato de Botas, com ares de marquês de Carabás, dois irmãos que atendem por João e Maria, uma cigarra e uma formiga, entre outros. Seriam eles aqueles velhos conhecidos?

parti pris de Garcia-Roza é o estabelecimento de um intenso diálogo com algumas personagens clássicas de contos infantis, tanto atuais, como a Pequena Sereia, quanto mais antigas, como Sherazade. No entanto, ao fazê-lo, a autora re-veste as conhecidas personagens com outras fantasias, operando, assim, uma verdadeira transfiguração. Transfiguração parcial, pois determinadas características precisam ser mantidas – justamente aquelas que são definidoras da identidade das personagens – para que estas sejam reconhecidas. Assim, o gato continua usando botas, porém roubadas de um garoto que tem os pés disformes. Sherazade ainda inventa estórias, mas adora utilizar gírias. O Lobo Mau fica moderno: fala ao telefone e também não espera mais pela Chapeuzinho, vai até sua casa. A vovó? Bem, ela está na barriga de outro lobo.

Embora o universo de Era Outra Vez possa soar familiar, de repente, sobressai a impressão de termos perdido o caminho de casa e a hora do baile. É que, ao remodelar personagens conhecidas, fornecendo-lhes novas tramas, Garcia-Roza acaba por re-significar seus gestos e atitudes. Poderíamos dizer que a mágica ainda funciona porque o final é sempre outro. Em outras palavras: a desestabilização do esperado, através do deslocamento dos significados dados pela tradição e por sua sucessiva substituição por outros sentidos, mais atualizados, fundamenta a escrita da autora. Ao promover o sistemático estranhamento do que era tido como familiar, Garcia-Roza redimensiona a linguagem e o sentido de um mundo, outrora estabilizado. Em contraponto, as personagens tomam consciência de si, através da visada crítica e reflexiva que explora ambigüidades lingüísticas e desperta a ironia. Logo, cada conto, além de acrescentar outros pontos – que dão muito o que pensar – é capaz de produzir um susto novo e descosturar as amarras do que era tido como imutável.

Se nos contos infantis tradicionais tudo se passa como se tivesse de ser exatamente daquele modo e, não, de outro, em Era Outra Vez as personagens são libertadas dos papéis que lhes eram designados e, ainda, têm força para contestá-los. De imediato percebe-se que uma pedagogia orientada pela educação para a liberdade pode produzir milagres. Talvez seja essa a maior lição deste Era Outra Vez. Ao insistir na lembrança de que não há destinos pré-estabelecidos, Garcia-Roza reafirma a importância de sermos responsáveis por nossas escolhas. A reboque, orienta a percepção do leitor para a discriminação dos detalhes, para a apreensão do particular, ensinando que o parecido não deve, jamais, ser tomado como igual. O igual, neste caso, o conhecido, responde pela tradição literária que compreende autores como Charles Perrault, La Fontaine e os irmãos Grimm. No âmbito brasileiro, o diálogo é estabelecido, no primeiro conto, com a peça teatral Pluft, o fantasminha (1955), de Maria Clara Machado. Assim, ao longo do livro, somos embalados pelo movimento de leitura que exige o re-conhecimento e, portanto, a re-significação crítica de uma trama que, embora pareça familiar, não é mais a mesma.

No primeiro conto, “Mamãe fantasma”, Garcia-Roza introduz as preocupações maternais de um fantasma, às voltas com Pluft, seu filho “fantaslescente”. Ao descobrir seu amor pela menina Maribel, Pluft perde o medo de gente e resolve “ir para o mundo na companhia dela” (08). Maribel era “gente de verdade”, tinha sido raptada pelo “pirata caolho com uma perna de pau” e estava presa no “velho sótão” em que Pluft esvoaçava, ao lado de sua mãe e do tio Gerúndio, um velho fantasma que já estava “esfiapa(ndo)” (08). A certa altura do conto, Mamãe fantasma, entre um conselho e outro, volta-se para Pluft e lhe pergunta: “por que esses olhos tão grandes, meu filho?” (09) A sensação de déjà vu e de estranhamento é imediata. Ainda que seja possível reconhecer a pergunta de Chapeuzinho Vermelho ao Lobo Mau, ficamos com a impressão de que a autora confundiu as estórias. No entanto, Pluft e Chapeuzinho estão ligados – mutatis mutandis – pela curiosidade infantil que conduz à saída de casa, à exploração de um mundo desconhecido, assustador e perigoso, pois alheio ao olhar maternal, protetor. Do ponto de vista da Mamãe fantasma, os “olhos tão grandes” de Pluft retratam seu susto diante da descoberta existencial de que é “da natureza do vapor” e de “dimensão” “infinita” (09). Ao dialogar com seu “fantaslescente” ausente, Mamãe fantasma acaba se resignando com sua saída de casa (09). Ao mesmo tempo, reflete sobre a dimensão fantasmática da condição humana e do amor idealizado: “uma assombrosa visão”, uma verdadeira ilusão (10).

Na seqüência, em “A bruxa”, Garcia-Roza trata do delicado universo dos medos infantis através de Raquel, uma criança que não consegue dormir porque tem medo de bruxa. Em última instância, ter medo de bruxa, do ponto de vista da protagonista, significa “ficar sozinha lá na torre”, o que remete à dificuldade de conviver com a ausência ou a perda dos pais (12). Pari passu, a autora discorre sobre a recusa de certos pais de serem guiados pelos desejos tirânicos dos filhos pequenos. Assim que os limites são estabelecidos e que a “porcaria da bruxa” é morta, por iniciativa paterna, a protagonista desiste de chamar atenção e deixa seus pais dormirem em paz (14).

Em “O lobo mau”, encontramos um lobo insatisfeito, que não consegue falar ao telefone com a mãe de Chapeuzinho Vermelho e, por isso, resolve fazer uma visita para esclarecer sua estória. No meio da conversa percebemos, como no primeiro conto, a interferência de outra fábula: a d´Os Três Porquinhos. Os “lambões”, que “só sabem brincar de casinha”, recebem o telefonema do Lobo Mau, ordenando-lhes que “par(em) de falar mal” dele (17). Através da perspectiva do lobo, questiona-se a visão maniqueísta e moralista, própria a alguns contos infantis do repertório clássico. Cansado de ser o vilão da estória, seja a de Chapeuzinho ou a dos três porquinhos, este lobo deixa transparecer seu desejo de ser bom. Consciente do peso da tradição sobre seu caráter, ao recusar seu destino e criticar os estereótipos, o lobo dessa nova fábula acaba esbarrando em inúmeras dificuldades.

Recurso recorrente ao longo deste Era Outra Vez, a interferência de outras fábulas transparece em jogos intertextuais que moldam contos como “João e Maria”, “Os sete anões” e “Cinderela”. Em “João e Maria”, além de a  “floresta” ser trocada pela “selva”, Maria –  e não os passarinhos – come o “miolo de pão” que deveria indicar o caminho de volta para casa (28). A confusão é tanta que até as próprias personagens estão em dúvida quanto ao enredo original. As referências trocadas legitimam, para o leitor que conhece os textos clássicos, que a estória, de fato, é outra. Portanto, a “velhinha” que cruza o caminho dos dois irmãos não é a “bruxa verdadeira”, pois não consegue “seguir o manual” e sua casa não é feita de confeitos de chocolate (29,30). A “bruxa verdadeira”, por sua vez, provavelmente foi amarrada com o “cipó do Tarzã” e cozida pela macaca Chita (28, 32). Contrariando o “manual”, como era esperado, João e Maria não precisam fugir da bruxa.

Em Era Outra Vez, Garcia-Roza pratica uma espécie de reescrita inventiva – e o pleonasmo aqui funciona como ênfase – cujo eixo central articula personagens reconhecíveis e enredos renovados. Ao operar dessa forma, a autora valoriza a essencial dimensão do universo das possibilidades. Se nas estórias clássicas as personagens, geralmente, são passivas diante de seus destinos, em Roza elas lutam contra a imutabilidade do sempre igual. Lutam em um mundo moderno e, por isso, capaz de reconhecer a instabilidade dos sentidos e sua permanente (re)construção, a despeito de todas as bruxas com manuais a tiracolo. Só nesse mundo Dengoso – um dos sete anões – pode confundir a Branca de Neve com a Cinderela. Só nesse mundo é possível mudar a moral da estória. Era Outra Vez, mais de uma vez.
 
 

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