A IMAGEM FOTOGRÁFICA COMO OBJETO DA SOCIOLOGIA DA ARTE

Silas José de Paula e Kadma Marques
Universidade Federal do Ceará e Universidade Estadual do Ceará
 
 

A fotografia é um objeto que me interessou. Considerei, naturalmente, o fato desta ser a única prática com uma dimensão artística acessível a todos e de ser o único bem cultural universalmente consumido. Achei, assim, que, por meio desse desvio, conseguiria desenvolver uma teoria geral da estética. (…) . Parece que encontrei muita coisa nesta caixa de sapatos. (Bourdieu & Bourdieu 31)
 
 
INTRODUÇÃO
 
Durante mais de um século afirmamos que a fotografia era um tipo particular de imagem operando com a imobilização de um momento no tempo, retratando objetos, pessoas e lugares na forma como eles aparecem na visão da câmera. Uma definição simples, mas é bom lembrar que ela nasceu no ambiente positivista do século dezenove que se beneficiava de descobertas e inventos anteriores e da vontade de encontrar um meio que permitisse a reprodução mecânica da realidade visual. Hoje, os autores têm visões diferentes. Roland Barthes afirma de uma forma contundente que a câmera é um instrumento de evidência. Outras posturas sugerem que o desenvolvimento da linguagem fotográfica é um processo de substituição e imposição de convenções, uma história ideológica do domínio e abandono de determinadas formas de pensamento.

Se voltarmos o nosso olhar para o instantâneo fotográfico, para o álbum de família, é bom lembrar que a prática é, desde seu início, um processo fundamental de autoconhecimento e representação. Tais imagens tendiam a seguir uma convenção rígida que consolidava e perpetuava mitos e ideologias familiares dominantes, como estabilidade, felicidade, coesão etc. E aceitas, quase sempre, sem uma crítica mais apurada, pois sempre foram valorizadas pela evidência que elas proporcionam as famílias e amigos. Na era analógica, a fotografia pessoal funcionava como um meio para a lembrança autobiográfica e terminava, quase sempre, em algum álbum ou caixa de sapatos. A função da fotografia como instrumento para a formação da identidade e como meio de comunicação era reconhecida, mas sempre percebida como algo secundário em relação a sua função primordial: a memória. (van Dijc)

Pierre Bourdieu em seu livro “Un art moyen”, escrito em 1965, situa a prática da fotografia no âmbito mais amplo das práticas sociais de formação de identidade coletiva e descreve a construção de álbuns fotográficos como um “ritual de integração” que cumpre uma “função normalizadora” com a mesma clareza de uma lápide tumular. Ele argumenta que os instantâneos familiares podem ser tirados com qualquer tipo de câmera e o que os caracteriza é a sua função determinada pela rede de relacionamentos sociais e não sua qualidade pictorial. Utilizando uma perspectiva etnográfica, Bourdieu compara essas imagens aos “churingas”i e afirma que a qualidade primordial do nosso relacionamento com os instantâneos é a ligação primitiva com objetos de fetiche. Embora o título do livro aponte a fotografia como objeto de pesquisa, fica claro que não é sobre a sua materialidade que ele (e os quatro co-autores) se debruça, e sim sobre a prática social de “tirar fotos”. Embora parte do estudo tenha sido baseada em dados quantitativos, as evidências que perpassam o texto consistem, em sua maioria, de citações diretas dos entrevistados. Assim, existem argumentos e exemplos sobre a experiência na França de 1960 que não se aplicam ao momento contemporâneo. Os desenvolvimentos tecnológicos, as câmeras digitais, fazem com que os argumentos sobre o impacto do filme colorido fiquem obsoletos, embora possam reforçar os comentários de Bourdieu sobre o fetichismo da automação. Ele não trabalha com muitas questões que são recorrentes nos discursos da história da arte atual em relação à fotografia. No entanto, ele não só apresenta uma interessante análise de um tempo passado, mas também aponta abordagens alternativas na prática da análise fotográfica e demonstra que a fotografia foi, e continua a ser, parte integral dos sistemas de identificação social, consumo e expressão no mundo ocidental.

É preciso lembrar que esta obra teve como antecedentes uma produção sociológica que tematizava inicialmente as desigualdades sociais flagrantes na Argélia para, em seguida, voltar-se sobre aquelas menos evidentes mediadas e ratificadas pelo sistema escolar francês. Nesse contexto, Bourdieu lança as bases de um projeto intelectual que assume por missão desvelar as relações de dominação socialmente estruturadas na esfera da cultura e seus mecanismos de realização ou subversão no âmbito das práticas.

Muita coisa mudou desde 1965. Os laços tradicionais da família foram desfeitos, papéis convencionais de gêneros foram questionados e os antigos alinhamentos de classe perderam sua clareza. Um mundo diferente daquele, descrito por Bourdieu, no qual os camponeses existiam como uma força social distinta e o conceito de “aldeia global” só surgiria na década seguinte.

Com a fotografia integrada à arte contemporânea é possível perceber, de uma forma ainda mais clara, como a cena mudou. É óbvio que ainda existem distinções fundamentais entre artistas trabalhando com imagens familiares e a fotografia de massa. Julian Stalabrass (1996), por exemplo, argumenta que o resultado dessas fotografias familiares transformadas em arte é nada mais do que um equívoco alçado ao domínio artístico, ilustrando o sistemático e contraditório relativismo da prática na área.

Mesmo concordando com Stalabrass sobre o “sistemático e contraditório relativismo da prática na área” é necessário, no entanto, ter em mente que uma foto não se transforma em arte, simplesmente, pelo ato fotográfico e a materialidade do objeto ao ser percebido; ela tem que ser associada a um conceito, uma poética, que pode ser tácita, ou um processo, coisas com que o mundo artístico concorde sem a necessidade de muito ser dito, embora o aprofundamento conceitual dessas questões continue a tomar forma de textos.

Segundo Becker, as escolhas feitas pelos participantes do cenário artístico dão sentido à afirmação de que os “mundos” da arte estabelecem o caminho, não os artistas, mesmo que o crédito seja dado a eles. Como afirma Nathalie Heinich, não nos encontramos mais ao abrigo de uma lógica contínua e normativa, que estabelece graus de qualidade estética, mas ligados a uma norma da simultaneidade. Para ela:

… a especificidade da situação atual reside no fato de que não existe mais um único mundo da arte (…), nem uma única definição do que são ou devam ser as artes plásticas, mas várias. As diferentes maneiras de fazer arte não estão mais dispostas gradativamente num eixo, entre pólo inferior e superior, mas em vários eixos. Assim, as querelas não dizem mais respeito somente a questões estéticas de avaliação (…) ou de gosto (…), mas a questões ontológicas ou cognitivas de classificação e de integração ou exclusão. (Heinich, Para acabar 180)

Todo o processo pode ser percebido como uma ‘edição’. Uma edição global de trabalhos aceitos, recusados ou ignorados pelos críticos ou curadores de mostras, galerias e museus que vão determinar a sobrevivência ou a morte de determinados processos. Além disso, ao editar os trabalhos e conservá-los, os museus e galerias estampam na obra um valor comercial. Quando um trabalho passa a ser amplamente reconhecido e admirado é sinal de que determinados significados ou sentidos passaram a dominar o cenário artístico.

A produção de sentidos nas artes visuais é tanto um aspecto da maneira pela qual representamos a nossa cultura como um todo, quanto à forma como ela é representada para nós. Se para Bourdieu a fotografia é determinada não por suas qualidades intrínsecas mas pelo fato de ter se tornado uma prática social de massa, como pensar a fotografia como suporte da arte visual contemporânea? Para ele, a sociologia é semelhante à psicanálise no que se refere à sua abordagem no campo da arte, e no caso da criação e consumo artístico aparentemente “o sociólogo se encontra no espaço, por excelência, da negação do social” (BORDIEU 11).

Os tipos de ilusão encontrados no campo da arte incluíam, pelo lado da produção, a “ideologia do carisma” e, pelo lado do consumo, a noção de contemplação pura ou desinteressada. Bourdieu ataca ambas as tendências por ignorarem os fatores sociais, econômicos e políticos e apontarem uma atividade supostamente autônoma ou “pura” da arte. Um tipo de perspectiva que nega os fatores extra-estéticos que interferem no modo de produção dos sistemas artísticos. Em resumo, as ortodoxias que caracterizaram a sociologia da arte desde os anos setenta do século vinte incluem tendências que a percebem de modo diferente das antigas decodificações filosóficas da arte; a preferência por estudar redes concretas de produção e consumo artístico, um ceticismo em relação à visão de mundo de artistas e ao ambiente artístico que vivenciam. A contemporaneidade da arte parece exigir uma reinterpretação de alguns desses conceitos-chave.
 
UMA SOCIOLOGIA DA ARTE OU UMA SOCIOLOGIA A PARTIR DA ARTE?
 

Nas últimas duas décadas, Nathalie Heinich vem tentando estabelecer critérios para uma nova sociologia que se origina da arte (sociologie de l’art no sentido de à partir de l’art). Para a socióloga francesa, as rupturas provocadas pela arte moderna e arte contemporânea são caracterizadas pela quebra das convenções pictóricas correntes em uma contínua formalização dos desafios artísticos. Ela aponta o engajamento em movimentos coletivos que se estabeleceram sucessivamente, acompanhados de manifestos, que visavam a suprir a falta de estruturas coletivas institucionalizadas à época. A organização corporativa dos ateliês deixara de existir; a academia era representada por um instituto com reduzido número de vagas e não existiam sindicatos e nenhuma sociedade de artistas havia vingado. A última característica da ruptura moderna seria a da “normalização da singularidade” e a necessidade de se multiplicarem as correntes artísticas, sempre em busca do novo singular, o que acarretou “um esgotamento acelerado dos gostos”.ii

Para Heinich é difícil estabelecer a especificidade do contemporâneo e ganharíamos muito se o termo “fosse tomado não no sentido de um momento da evolução artística, correspondendo a uma periodização, mas, sim, no sentido de um “gênero” da arte, homólogo ao que foi a pintura histórica no classicismo”. (Heinich, Para acabar 179). Em resumo, o gênero “arte contemporânea” constituiria apenas uma parte da produção artística atual. Outro autor, Zygmunt Bauman utiliza o conceito de “arte autodestrutiva” de Gustav Metzer para antecipar seu próprio argumento sobre as maneiras pelas quais o consumismo contemporâneo demanda novidade constante, resultando em um fluxo incansável de dejetos e dissipação – “dispositivo que já está contido no desenho original”. (Bauman 123) Ele desenvolve seu pensamento tendo como base os trabalhos de Villeglé, Valdes, e Braun-Veja e utiliza cada um deles para dar exemplos-chave da modernidade líquida: criação e destruição, a desesperada batalha por atenção e a falta de direção da marcha do tempo. Uma seqüência incessante de novos começos, mas cada novo início também contém as sementes de sua própria destruição e desaparecimento. “A imagem é fluída e móvel, menos um espetáculo ou dado do que um elemento numa cadeia de ações; uma realocação de imagens”. (Idem: 125)

Por outro lado, Cláudio Cordovil argumenta que uma vertente mais promissora da discussão diz respeito ao fato da arte contemporânea ter se transformado em uma arte oficial – um academicismo do século XXI sem qualquer poder de transgressão – normalizada e legitimada pelo circuito dos museus, na espiral transgressão-reação-integração. O autor apóia-seno argumento de Heinich de que “é mais difícil estabelecer a especificidade do contemporâneo quando a transgressão valida tendências estabelecidas na arte contemporânea” (Heinich 191)

Deveríamos, então, perceber “a sociologia da arte fundamentalmente diferente das abordagens realizadas pela história da arte e a estética filosófica? A investigação sociológica pode ignorar o trabalho de arte e manter seu foco, basicamente, nos fatores contextuais?” São questões colocadas por Eduardo de La Fuente (2007). Segundo o autor, o status disciplinar da arte mudou radicalmente com a fundação de associações profissionais dedicadas ao estudo da arte pelas ciências sociais e a publicação de dois textos seminais: Art Worlds de Howard Becker e A Distinção de Pierre Bourdieu. Ele argumenta que:

a ‘nova sociologia da arte’ pretende dizer algo sobre arte sem sucumbir aos problemas identificados por antigas abordagens, i.e. “a tendência em inflar o status e a importância da arte e a propensão em tornar imprecisas e vagas as afirmações sobre a determinação social da arte e da representação artística da realidade. (de La Fuente 411)

Seu artigo procura mapear determinadas tendências recentes nas ciências sociais que apontam que esta “nova sociologia da arte” reflete a consolidação de uma abordagem sociológica distinta. Esta envolve o reconhecimento de que os sociólogos, ao estudar a arte, produziram seus próprios pontos cegos quando se afastaram da estética filosófica e da história da arte, vistas como disciplinas insuficientemente críticas em relação às ideologias existentes entre artistas e instituições da “alta cultura”. Publicações recentes têm sido mais cuidadosas em relação a essas abordagens e “a nova sociologia da arte parece confiante o bastante para iniciar um diálogo com outras disciplinas (…) se e quando esses discursos compartilharem o argumento de que a arte é um construto social e que sua produção e consumo são profundamente sociais.” (Idem: 412)

Se concordarmos com a conclusão de Eduardo de La Fuente, como refutar argumentos de William Mitchell que apontam problemas com “teses” a favor e contra os “mitos” da cultura visual? Por exemplo, a afirmação de que “a cultura visual é a construção social da visão, é uma visão redutora”:

um conceito dialético de cultura visual não pode se contentar com a definição de seu objeto como a construção social do campo visual, mas tem que insistir em explorar o reverso quiasmático dessa proposição, a construção visual do campo social. Não é só porque vemos da forma que vemos que somos animais sociais, mas também porque nossos arranjos sociais tomam a forma que têm por que somos animais que vêem. (Mitchell 172)

Mitchell trouxe para o discurso científico que lida com imagens e texto a frase “virada pictórica”. Ele foi buscar o tópos retórico sobre “virada” nos textos de Richard Rorty que, em 1967, apontara a “virada lingüística”.iii De acordo com Rorty a filosofia antiga e medieval lidava com idéias, enquanto o momento contemporâneo está muito mais voltado para a palavra. Além disso, Rorty traçou a genealogia da virada lingüística passando por Derrida e Heidegger até Nietzsche, mas citando sempre outro dos seus filósofos favoritos, Ludwig Wittgenstein. Com seus textos, emblemáticos para a discussão sobre cultura visual, Mitchell questionou o poder e a dimensão dada à virada lingüística afirmando a importância da virada pictórica e a necessidade de uma teoria [independente] da imagem. Ele argumenta que as imagens que nos cercam transformam não só nosso mundo e as nossas identidades, mas têm um papel cada vez mais importante na construção da nossa realidade social e que as interpretações estruturalistas e pós-estruturalistas ao lidar com metáforas textuais não conseguem mais dar conta dos processos imagéticos contemporâneos.

Tendo em vista a complexidade do processo e dos debates que perpassam tais discussões, como pensar os recursos analíticos dos quais dispõe a sociologia da arte para compreender a recorrência dos instantâneos familiares como subsídio do trabalho de artistas e curadores?
 
“UMA PEQUENA HISTÓRIA DA FOTOGRAFIA”
 

A fotografia é a mídia dominante que tem retratado a família. A produção de instantâneos e de álbuns familiares insere-se no domínio da atividade social pode, de fato, ser tratada como construção de um mundo simbólico. Esse mundo de representações reflete e promove um modo particular de visualidade – uma versão preferencial da vida que pode sobreviver a todos nós. Apesar das enormes mudanças sofridas pela instituição familiar, os portraits fotográficos do século dezenove compartilham das mesmas convenções visíveis nas pinturas da Idade Média e da Renascença. Walter Benjamin, em seu texto “Pequena História da Fotografia”, afirma que a primeira década de sua invenção foi a melhor, encantando a todos. Para ele, aquelas imagens transmitiam a individualidade da pessoa fotografada; os personagens eram misteriosos, tímidos, cheios de detalhes, vívidos e impressionantes. A longa exposição forçava os modelos a ficarem imóveis por um longo tempo transmitindo um sentido de continuidade indefinida do tempo.iv

Mesmo que os argumentos de Benjamin sejam marcados pela nostalgia e se concentrem em aspectos evidentes e típicos dos primeiros portraits fotográficos, ele argumenta, acertadamente, que é necessário criar um cenário artificial para representar com credibilidade o real. Philippe Lacoue-Labarthe afirma que ao se levantar a questão sobre a fotografia ser ou não arte, deixava-se de lado um ponto mais importante, que é: o que a fotografia pode nos dizer sobre arte ou representação? Para ele, Baudellaire ao ver a fotografia como a antítese da arte, mais do que questionar o aspecto duplicativo do tipo de mídia que arruína o gesto artístico, apontava, sem querer, um aspecto importante e inovador da fotografia: a sua teatralidade.

Nos anos oitenta e noventa do século vinte, algumas dessas questões ficaram mais claras, ocorrendo grandes mudanças na maneira como as pessoas se relacionavam com a mídia fotográfica e com o mundo. Essas novas posturas, reunidas sob o termo “pós-modernismo”, sugeriam que a fotografia não teria mais referente no mundo e deveria ser compreendida e criticada somente em relação à sua própria organização estética interna. Alguns autores questionaram a noção de artista autônomo, a idéia de verdade no documentário e a noção de uma linguagem visual pura. A intenção era a de situar a fotografia em um contexto mais amplo, de debates teóricos e de compreensão, relacionado com sentido, comunicação, cultura visual e políticas de representação. Para Solomon-Godeau,

(…) eles estavam pensando a fotografia como prática de significação; isto é, materiais específicos trabalhados com propósitos determinados em um contexto histórico e social particular. A semiótica é um ponto de partida para este projeto teórico, mas não é suficiente para dar conta das complexas articulações de momentos das instituições, textos, distribuição e consumo da fotografia. (…) Uma discussão que reunisse disciplinas como lingüística, sociologia, marxismo, história da arte e psicanálise no estudo da produção de imagens possibilitaria uma melhor compreensão das operações sociais. (Solomon-Godeau 28)

Além disso, devemos ter em mente que grande parte da importância social da fotografia tem sua origem nos formatos mais acessíveis e populares dos equipamentos. Os fotógrafos profissionais eram muito mais requisitados até a popularização de câmeras mais simples,v quando perderam boa parte dos clientes para a prática amadora e familiar. Este fato acabou criando um dos modos sociais mais complexos da fotografia, especialmente em sua forte conexão com as noções de família, lazer, memória e identidade,vi levando artistas, curadores e teóricos culturais a se voltarem, com grande interesse nas últimas décadas, para uma reflexão sobre a sua prática cotidiana e sua utilização na arte.vii Na realidade, desde a vanguarda dos anos vinte do século passado, que instantâneos descartados são transformados em matéria prima da arte.

A facilidade do processo fez dele o meio ideal para explorar as maneiras pelas quais, memória, auto-imagem e família, são retratadas e estruturadas por conceitos como classe, gênero e corpo. Atualmente, as distinções entre mídias começam a se desvanecer, e o instantâneo fotográfico se encontra na interseção de vários processos e tecnologias: desde o novo jornalismo realizado por pessoas comuns, utilizando a câmera de seus celulares para registrar – e veicular – acontecimentos bem antes da grande mídia institucional, até o registro do cotidiano familiar, transformado agora num grande banco de dados – diferente das fotos de momentos esparsos dos álbuns analógicos do passado – ou disponibilizado na rede mundial através dos fotologs, criando novas conexões entre a imagem fotográfica e a rotina diária.

David Trend escreveu que o instantâneo fotográfico estava sendo apontado pelos ativistas culturais como o corolário visual do estudo da vida doméstica e isto era sinal de uma tendência encorajadora para a reflexão sobre o processo. Ele estava correto, os últimos anos provaram ser um período de boom para análise pública do instantâneo em suas diversas capacidades: emblemático para a comunicação social, artefato enigmático para uma nova história e com um enorme crescimento entre as famílias. Porém, essas investigações ocorriam, segundo Trend, em grande parte através dos esforços variados de artistas e curadores, que deram ao instantâneo um papel proeminente na reinvenção dos espaços públicos para exposição de fotografias, e não sob a égide dos estudos culturais ou da academia.viii

Rosalind Krauss argumenta que a inclusão da fotografia no campo da crítica da arte trouxe como conseqüência o esquecimento de que a fotografia é ao mesmo tempo signo e produto. Desta forma surgiu um arsenal de literatura especializada dividida em diversas categorias com o objetivo de “explicar” as imagens. “Como se algo pudesse ou devesse existir de fato como literatura da fotografia; como se a fotografia devesse ou pudesse ser objeto de literatura”. (Krauss 7)

Seguindo esta linha de raciocínio – mas sem querer, no momento, esgotar as questões colocadas por Krauss – não seria o caso de acrescentar a este debate o conceito de fotografia como “objeto”? Isto é, discutir a sua materialidade, uma vez que ela é tanto imagem quanto objeto físico no tempo e no espaço e, portanto, na experiência social e cultural? Elizabeth Edwards e Janice Hart utilizam argumentos de Geoffrey Batchen e Will Straw para afirmar que:

As fotografias têm “volume, opacidade, tatilidade e presença física no mundo e, portanto, incorporam interações subjetivas e sensuais. Essas características não podem ser reduzidas a um status abstrato como mercadoria, nem a um conjunto de sentidos ou ideologias que tomam a imagem como pretexto. Pelo contrário, elas ocupam espaços, movem-se entre eles seguindo linhas de passagem e uso que as projeta no mundo. (Edwards e Hart 1)

É claro que o conteúdo da imagem é importante. De uma forma simplista, segundo as autoras, é a razão pela qual as fotografias são compradas, trocadas, colecionadas ou dadas como presente. Seu apelo indicial é uma das qualidades que as definem. No entanto, o que elas procuram não é o divórcio impossível entre a materialidade da foto e sua própria imagem, mas, sim, quebrar conceitualmente a dominação dos conteúdos e olhar os atributos físicos da fotografia que os influenciam nos momentos dos arranjos e projeções da informação visual.
 
À GUISA DE CONCLUSÃO
 

A quais conclusões podemos chegar a partir desta “coletânea de argumentos”? À maneira de uma assemblage, reunimos materiais diversos que nos levam antes a aprofundar este debate do que a dar respostas às questões colocadas. Porém, cremos que os embates trazidos pela “nova sociologia da arte” e a possibilidade de uma reflexão compartilhada com outras disciplinas poderão minimizar as aporias características de cada campo.

Na realidade, o que se percebe é que a história da fotografia é uma história de tensões, assim como a aventura do olhar configura-se como um percurso cujos desdobramentos são dificilmente previsíveis. A revolução digital, com seu ritmo veloz e uma vasta expansão de opções de produção imagética, está levando a fotografia a abraçar questões cada vez mais complexas.

Neste sentido, podemos argumentar que as análises das fotografias no campo artístico, normalmente, seguem dois caminhos. Um deles é a preocupação com as estruturas internas do trabalho, a natureza dos seus elementos constituintes e suas inter-relações, a procura por padrões de harmonia, tensão, que são interessantes e emocionalmente envolventes. Outro caminho explora questões relacionadas à sua importância filosófica. Muitas vezes, ambos são utilizados. Isto é, a maneira pela qual os elementos formais de um trabalho levam o usuário, leitor, consumidor, a vivenciar importantes verdades filosóficas que são tão intelectuais quanto emocionais.

Como os cientistas sociais podem acrescentar algo a este tipo de análise feita por críticos de arte sobre a fotografia, o objeto fotográfico? Becker argumenta que para isso é necessário ter claro que a idéia do “trabalho em si” – isto é, o trabalho em conexão com o próprio trabalho – é empiricamente suspeito. Os artistas fazem várias versões que, muitas vezes, são tratadas como trabalhos diversos, mesmo que, algumas vezes, sejam percebidas como variantes das quais um trabalho autêntico deva ser extraído. É uma indicação de uma realidade empírica que se esconde por trás do que ele denomina de “Princípio da Indeterminação Fundamental do Trabalho Artístico”:

(…) a princípio, é impossível para os sociólogos ou qualquer um falar sobre o “trabalho em si”, pois não existe tal coisa. Existem, na realidade, diversas ocasiões nas quais o trabalho é apresentado, lido ou visto e cada uma delas pode ser diferente. (Becker 23)

No entanto, para ou autor, o reconhecimento da indeterminação é uma contribuição negativa e sugere uma “abordagem genética” que pode facilitar a compreensão de que o trabalho de arte é resultado de uma série de escolhas. Escolhas que são feitas não só pelos artistas, mas por todos que participam do processo. Compreendê-lo significa, portanto, perceber o tipo de escolha que foi feita e a partir de quais possibilidades. Coisas que são, normalmente, conhecidas pelos artistas. Uma análise sociológica desse contexto pode explicar a gama de possibilidades e as condições que o cercam e, dessa forma, explicar as escolhas feitas.

Nesse sentido, a via aberta pelo trabalho precursor de Pierre Bourdieu conduz a uma sociologia da arte que não se conforma mais em abordar o fenômeno fotográfico/artístico tão simplesmente a partir de seus aspectos contextuais, e menos ainda reduz-se à apreensão dos aspectos formais de tal produção. Cabe ao discurso sociológico considerar a realidade da obra vinculando-a a contextos estruturados de relações sociais de produção, circulação, apropriação/consumo cultural. Criam-se assim teias conceituais que tornam o fenômeno fotográfico/artístico sociologicamente inteligível, o que não anula nem traduz a experiência estética provocada pela obra, mas antes lhe confere outro status.

 
 
Notas
 

1Os churinga são objetos de pedra ou de madeira, de forma mais ou menos oval com as extremidades pontudas ou arredondadas, muitas vezes gravadas com sinais simbólicos; às vezes, também, simples pedaços de madeira ou seixos não-trabalhados. Qualquer que seja sua aparência, cada churinga representa o corpo físico de um ancestral determinado e é solenemente atribuído, geração após geração, ao vivo que se acredita ser esse ancestral reencarnado. Os churinga são empilhados e escondidos em abrigos naturais, longe dos caminhos freqüentados. Periodicamente são retirados para inspeção e manuseio e, em cada uma dessas ocasiões, eles são polidos, engraxados e coloridos, não sem que antes lhes sejam dirigidas preces e encantamentos. (LÉVI-STRAUSS, 1997, p. 264)

2Ver também, CORDOVIL, C. (2202).

3Para um aprofundamento sobre essa questão ver RORTY, Richard (1967).

4Ver KOTHE, Flávio R. (1985).

5A primeira câmera “Brownie”, lançada pela Kodak em 1990, custava um dólar e era tão simples que podia ser utilizada, inclusive, por crianças.

6Para uma visão mais ampla sobre o assunto, ver HIRSCH, Marianne (ed.) (1999).

7O Museum of Modern Arte – MOMA, de Nova York, dedicou uma grande exibição ao tema com trabalhos de Peter Galassi (1991) denominado Pleasures and Terrors of Domestic Comfort. O Barbican Art Gallery, de Londres, fez o mesmo com Val Williams em 1994 – Who’s Looking at the Family? Em 2008, o Prêmio Porto Seguro de Fotografia concedeu a Siegbert Franklin o troféu de “Pesquisa Contemporânea” pelo seu trabalho com retratos familiares. Ver também RICHTER, Gerhard. Atlas of Emotion: Journeys in Art, Architecture, and Film. London: Verso, 2002; Joachim Schmid, http://www.artic.edu/webspaces/fnews/2001; e trabalhos de Christian Boltanski, artista francês.

8Um olhar mais acurado sobre a longa história do instantâneo fotográfico e sobre os debates que têm acontecido, pode servir para ressaltar algumas das categorias que são necessárias para sua análise, pois alguns autores argumentam que, nesse início de era digital, a fotografia analógica assumiu um papel memorial, não só dos sujeitos e objetos que ela descreve, mas de sua própria operação como sistema de representação. Uma relação oposta ao long-playing de vinil – objeto de nostalgia fetichista de ouvintes que cresceram com CDs. O instantâneo analógico com suas imagens, algumas vezes meio veladas e “sujas” e com seu formato característico, está se tornando o símbolo mais potente da historicidade de um medium à beira da morte. Para um aprofundamento da questão, ver BATCHEN, Geoffrey (2001).

 
 
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