MACHADO DE ASSIS E O TEATRO: O JOVEM CRÍTICO DE O ESPELHO

Adriana da Costa Teles
Unilago e Faimi, São José do Rio Preto – SP
 
 

Machado de Assis contava vinte e cinco anos quando publicou Crisálidas, seu primeiro livro, em 1864. A coletânea de poesias está longe, no entanto, de marcar o início de suas atividades como escritor. Em 1864, Machado já era conhecido como folhetinista, crítico literário, crítico teatral, poeta (a maioria das poesias de Crisálidas já havia sido publicada em jornais) e tradutor, em uma carreira iniciada aos dezesseis anos incompletos, quando começou a contribuir com jornais cariocas.

De janeiro de 1855, data da publicação de seu primeiro texto, a fins de setembro ou princípio de outubro de 1864, quando foi colocada à venda Crisálidas, Machado já havia colaborado com periódicos como A MarmotaMarmota FluminenseCorreio MercantilParaíba e O diário do Rio de Janeiro, onde ingressou em 1860 e que foi especialmente importante para a sua carreira como jornalista, como ele próprio iria assinalar, anos mais tarde.

Sua produção apontava, então, para um espírito inquieto e curioso, disposto a exercitar e experimentar os mais diversos tipos de escrita. Foram a inteligência e o brilho aliadas a um espírito desbravador que conferiram a esse jovem uma posição respeitável ainda na juventude. Segundo João Roberto Faria em Machado de Assis do teatro, Machado era, na casa dos vinte anos de idade, “uma peça-chave no debate cultural do seu tempo” (Faria 21), o principal crítico literário e teatral da década de 60 do século XIX.

O teatro esteve bastante presente nesses primeiros anos de atividade intelectual de Machado de Assis, que contou com a publicação de artigos de importância, como “O Presente, o Passado e o Futuro da Literatura”, em 23 de abril de 1858 nA Marmota, e um dos primeiros artigos críticos importantes que Machado escreveu e que contemplava questões sobre o teatro brasileiro. Além de crítico teatral, o jovem dedicou-se a traduzir e adaptar peças de teatro como fez com a comédia La chasse au lion, de  M. M.  Gustave Vattier e Émile de Najac, que adaptou para o português com o nome de Hoje avental, amanhã luva, em 1860. O envolvimento de Machado com o teatro o levou também a atuar como censor do Conservatório Dramático, para onde emitiu dezesseis pareceres entre 1862 e 1864. Tais atividades somadas conferiram respeito ao crítico no que diz respeito ao drama e evidenciam o seu envolvimento com esse gênero literário na época.

Dentro desses primeiros anos de atividade de Machado, há que se ressaltar a atuação no periódico O Espelho, que circulou no Rio de Janeiro de 04 de setembro de 1859 a 08 de janeiro de 1860, na qual o jovem escritor teve uma coluna semanal em que tecia comentários sobre as peças encenadas na época. Os artigos publicados sobre o referido tema no periódico em questão marcam uma produção regular de Machado que participava, pela primeira vez, de maneira mais efetiva de questões que envolviam o teatro de seu tempo. O presente artigo visa a discutir alguns aspectos desse conjunto de textos publicados em O Espelho. Objetiva-se com isso identificar de que maneira Machado concebia o teatro no início de sua trajetória como escritor e crítico.

 
INGRESSO EM O ESPELHO
 

A participação de Machado de Assis no periódico O Espelho foi importante para sua carreira. Segundo Jean-Michel Massa em A juventude de Machado de Assis, a entrada do escritor no referido periódico representou uma mudança radical em suas atividades. Até o último trimestre de 1859, Machado

 

(…) era ainda uma espécie de diletante da pena. Aqui e ali aceitavam, em seguida procuravam a sua colaboração, mas ela permanecia episódica. Ele já assinara algumas traduções e quebrara algumas lanças (…), mas a sua pena não havia ainda achado emprego. Com a fundação do Espelho, deu um passo à frente. Ele se tornou um dos redatores de uma revista ainda “confidencial”, mas ao menos para ele, era uma etapa decisiva, porque seus escritos foram tomados em consideração. (…). Era a sua primeira oportunidade verdadeira (Massa 325).

Machado contribuiu com o jornal desde o seu início, tendo publicado textos em todos os seus dezenove volumes, a cada semana publicava pelo menos um, chegando, às vezes, a dois ou três escritos. Além da crônica teatral, Machado publicou poesias e ensaios críticos e literários diversos. O que nos interessa, no entanto, é que em O Espelho, o escritor era responsável por uma coluna semanal intitulada “Revista de teatros”, que resultou em dezoito textos críticos, e foi autor de outros três artigos, “Idéias sobre o teatro I”, “Idéias sobre o teatro II” e “O Conservatório Dramático”, todos publicados durante os meses de funcionamento do periódico.

A atuação em O Espelho, apesar de curta, assim como a existência do periódico, que circulou por cerca de quatro meses, marca uma maior inserção do escritor no cenário sociocultural carioca e a participação no movimento artístico de seu tempo. A impetuosidade juvenil de Machado marca a sua produção intelectual desse período de sua carreira. Segundo Massa:

 

Estas páginas do Espelho são também o espelho de seus sonhos e de sua vida intelectual durante o último trimestre de 1859. Nelas, Machado de Assis se mostrou espontaneamente, sem as máscaras com que se cobriu mais tarde. Aos vinte anos é-se franco e sincero. E mais ainda quando se tem responsabilidade e se deseja mudar, como Machado de Assis, a face do teatro e do mundo (254).

 

De certa forma, a espontaneidade e o vigor de Machado pareciam se casar com o perfil do próprio periódico. O Espelho era constituído por colaboradores daMarmota de Paula Brito, que cedeu suas impressoras para produzir os quatro primeiros números do periódico que então estreava. Segundo Massa,

 

Com uma pequena diferença, O Espelho repetiu a fórmula da Marmota. Podia-se encontrar na nova revista tudo aquilo que a mais velha oferecia. Seguindo o exemplo, mas sem esclarecer, a nova publicação publicava romances originais ou traduzidos, artigos sobre literatura, indústria, artes, poesia, etc., em resumo, tudo que podia interessar o público já leitor da Marmota (239).

 

A diferença consistia, segundo Massa, no interesse de O Espelho em despertar a atenção do público feminino com uma seção de modas e na impetuosidade juvenil, ausente da Marmota.

No que diz respeito ao teatro, O Espelho teve uma postura inovadora. Ainda segundo Massa, uma das inovações do Espelho foi dar um lugar de destaque à crítica teatral, parente pobre em relação à imprensa da época. A Marmota não tinha uma coluna particular e muito menos um colaborador especializado.

O Espelho não marca a estréia de Machado como crítico teatral, mas, concordamos com João Roberto Faria, que afirma que os artigos publicados “dão um retrato acabado do crítico militante, que pôs sua pena a serviço da renovação do teatro brasileiro” (49) e certamente o levou a ganhar espaço no cenário carioca, uma vez que a sua participação antecede o convite de Quintino Bocaiúva para Machado trabalhar no Diário do Rio de Janeiro, no início de 1860.

 
PRIMEIROS TEXTOS CRÍTICOS

O primeiro artigo de Machado sobre o teatro foi um texto escrito no ano de 1856. No referido ano, Machado publicou uma série de três textos críticos intitulados “Idéias Vagas” na Marmota Fluminense, que continham uma especificação da matéria tratada no subtítulo. O artigo de 31 de julho trazia “A comédia moderna”.

Apesar de ser apenas um primeiro escrito e, como tal, conter algumas imprecisões, “Idéias vagas – A comédia moderna” delineia um pouco do crítico que Machado será em O Espelho e o insere no contexto teatral de seu tempo. Concordamos com Maria Augusta Ribeiro, quando afirma em sua tese de doutoramento Machado de Assis, um teatro de figuras controversas (1989) que o referido artigo “constitui-se, enquanto texto, em embrião da crítica teatral de Machado de Assis, uma vez que, apenas em 1858, irá o escritor dedicar-se, de fato, ao comentário e julgamentos de obras literárias e de teatro” (181). Mas, em “Idéias Vagas”, Machado demonstrava concepções que iriam acompanhá-lo nos anos subseqüentes, como as de que o teatro mostra o grau de civilização de um povo e constituí-se como um meio de civilizar e educar, como observamos nas seguintes passagens de “Idéia Vagas” 1 :

 

O teatro, assim como a imprensa é uma página brilhante pela qual se conhece o estudo e o grau de civilização de um povo;

No meio, pois, destes desvarios, de progressos e civilização, é o teatro olhado como o verdadeiro lugar de distração e ensino; o verdadeiro meio de civilizar a sociedade e os povos.

 

Neste primeiro escrito sobre a dramaturgia, o jovem crítico aderia ao teatro francês, que recebia elogios abertos: “(…) é inegável que a França, a sede das civilizações modernas, o foco luminoso da literatura e das ciências, mostra nas suas composições teatrais o esplêndido e alto grau de sua civilização – e progresso intelectual” (107).

É importante observar, no entanto, que Machado chama de teatro moderno a produção de escritores franceses como Adolphe Dennery e Anicet Bourgeois, representantes de um estilo melodramático e distante do que era então chamado de teatro moderno, ao invés de citar Vitor Hugo ou Alexandre Dumas Filho, como seria de se esperar. A esse respeito, João Roberto Faria afirma:

 

O que surpreende nessa primeira incursão crítica pelo teatro é o equívoco de convidar o leitor para ver as “comédias modernas”, mas atribuindo a sua autoria a escritores de melodramas como Adolphe Dennery (…) e Anicet Bourgeois, os únicos citados no texto, várias vezes representados no Rio de Janeiro pela companhia dramática de João Caetano, o maior ator brasileiro dos tempos do romantismo (Faria 25).

 

Se a primeira incursão de Machado como crítico teatral continha deslizes, apesar de já evidenciar idéias claras que o escritor tinha sobre o drama, no segundo texto em que aborda questões sobre o teatro, “O passado, o presente e o futuro da literatura”, publicado pelo jornal A Marmota em abril de 1858, mostra um crítico mais seguro e informado. No referido texto, Machado chama a atenção para a ausência de um teatro nacional. Segundo ele: “Dizer que temos teatro, é negar um fato; dizer que não temos, é publicar uma vergonha. O nosso teatro é um mito, uma quimera” (112). Mostrando-se irritado com a abundância de traduções nos palcos brasileiros, pergunta-se: “Para que estas traduções enervando a nossa cena dramática? Para que esta inundação de peças francesas, sem o mérito da localidade e cheias de equívocos, sensaborões às vezes, e galicismos, a fazer recuar o mais denodado francelho?” (112).

Concebendo o teatro brasileiro como uma fábula e a arte como tendo tornado-se uma indústria, o crítico propõe a criação de um imposto sobre traduções dramáticas, o que ele acreditava tornaria o teatro nacional uma realidade. É evidente que aflorava naquele momento uma impetuosidade juvenil de intenso sentimento nacionalista. Trazemos para as nossas reflexões o comentário de Faria que, a respeito das idéias de Machado citadas, afirma que naquele momento “nem havia peças brasileiras em número suficiente para suprir as necessidades das companhias dramáticas” (Faria 31).

É importante ressaltar a necessidade que o escritor aponta naquele momento para a criação de um teatro nacional de acordo com o modelo realista francês: “Se uma parte do povo ainda está aferrada às antigas idéias, cumpre ao talento educá-la, chamá-la à esfera das idéias novas, das reformas, dos princípios dominantes” (114).

Tais idéias seriam retomadas por Machado em O Espelho, cerca de três anos mais tarde. Sua experiência no periódico possibilitou ampliar tais reflexões sobre o drama e exercitar suas idéias sobre o teatro. Tal exercício crítico resultou na “Revista de teatros”, uma espécie de comentário semanal das peças então encenadas nos palcos cariocas; nos três artigos críticos, por sua vez, o escritor fazia comentários mais amplos e reflexivos sobre questões relativas ao teatro brasileiro. Percebe-se que as idéias contidas em tais textos críticos guiam os comentários do escritor sobre o que assistia nos palcos cariocas. Assim, principiaremos por nos deter nos textos críticos, para, em seguida, nos voltarmos para os artigos da “Revista”.

 
 “IDÉIAS SOBRE O TEATRO” E “O CONSERVATÓRIO DRAMÁTICO”

Nas edições de 25 de setembro, 02 de outubro de 1859 e 1º. de janeiro de 1860, Machado publicou textos críticos em O Espelho. Os dois primeiros levavam como título “Idéias sobre o teatro” e o terceiro, republicado em A Marmota semanas depois, “O Conservatório Dramático”. Nos artigos em questão, o escritor não se detinha nos espetáculos em cartaz, mas fazia reflexões sobre a situação e os problemas do teatro brasileiro.

Em “Idéias sobre o teatro I”, Machado faz uma avaliação do teatro nacional daquele momento. O crítico inicia seu artigo com a seguinte consideração:

 

A arte dramática não é ainda entre nós um culto; as vocações definem-se e educam-se como um resultado acidental. As perspectivas do belo não são ainda o ímã da cena: o fundo de uma posição importante ou de um emprego suave, é que para lá impele as tendências balbuciantes. As exceções neste caso são tão raras, tão isoladas que não constituem um protesto contra a verdade absoluta da asserção (130).

 

Para Machado, como ele tratará de evidenciar ao longo de suas reflexões, a situação do teatro brasileiro era crítica. O teatro nacional encontrava-se no que ele chama de infância moral: “(…) ainda tateamos para darmos com a porta da adolescência que parece escondida nas trevas do futuro” (131).

Como já vimos em “Idéias vagas – A comédia moderna”, Machado concebia o teatro como um elemento civilizador. Essa idéia encontra-se muito presente nas “Idéias sobre o teatro”. No artigo, Machado é enfático ao afirmar que o teatro é para o povo o que o Coro era para os gregos: “uma iniciativa de moral e civilização”. Machado ressalta que o drama teria uma espécie de dupla função:

 

Demonstrar aos iniciados as verdades e as concepções da arte; e conduzir os espíritos flutuantes e contraídos da platéia à esfera dessas concepções e dessas verdades. Desta harmonia recíproca de direções acontece que a platéia e o talento nunca se acham arredados no caminho da civilização (131).

 

Havia, para Machado, naquele momento, uma espécie de divórcio entre a arte e o público, espécie de vácuo da qual nenhuma das partes se apercebe. Isso se deve, segundo o crítico, ao fato de que a arte dramática teria se tornado uma espécie de carreira pública: “dirigiram mal as tendências e o povo. Diante das vocações colocaram os horizontes de um futuro inglório, e fizeram crer às turbas que o teatro foi feito para passatempo” (134).  Haveria, segundo Machado, necessidade de uma reforma precisa ao que nomeia “caos” no teatro brasileiro de então. A iniciativa deveria ser, segundo ele, do governo. A necessidade de reformas, afirma, “não entra nas vistas dos nossos governos. Limitam-se ao apoio material das subvenções e deixam entregue o teatro a mãos profanas ou maléficas” (134).

Há aí uma provável crítica a João Ceatano, empresário e artista dramático fiel ao estilo grandiloquente de interpretação e ao repertório de tragédias neoclássicas, dramas e melodramas e que era naquele momento o único a receber subvenção do governo. Nos artigos da “Revista de teatros” ficará claro que Machado não aprova o estilo e o repertório de João Caetano, que se encontrava à frente do teatro São Pedro de Alcântara, mas via no Ginásio Dramático o início da renovação que, acreditava, deveria passar o teatro brasileiro. Machado parece responsabilizar o descaso do governo com relação a companhias subvencionadas pela má formação cultural da platéia, que via o teatro como um passatempo. Haveria, assim, para Machado, a necessidade de educar a platéia e leva-la a ter contato com as novas tendências.

Dando seqüência às idéias desenvolvidas no artigo “Idéias sobre o teatro I” publicado em 25 de setembro, no artigo publicado em 02 de outubro, “Idéias sobre o teatro II”, Machado afirma que o teatro enquanto literatura é uma fantasia do espírito, no contexto nacional. Como ficará evidente em sua argumentação, Machado acredita e é enfático ao afirmar que o teatro praticado no Brasil não tem a cor local, pois, se não é uma tradução de peças estrangeiras, e, como conseqüência, apresenta realidades estranhas às nossas, é produzido por escritores brasileiros que raramente conseguem se descolar do exemplo estrangeiro. O escritor afirma:

 

O teatro tornou-se uma escola de aclimatação intelectual para que se transplantaram as concepções de estranhas atmosferas, de céus remotos. A missão nacional, renegou-a ele em seu caminhar na civilização; não tem cunho local; reflete as sociedades estranhas, vai ao impulso de revoluções alheias à sociedade que representa, presbita da arte que não enxerga o que se move  debaixo das mãos (134).

 

Reforçando a idéia desenvolvida no primeiro artigo, Machado afirma que o problema proviria da platéia, que não possuía uma “educação real e conseqüente”. O teatro que era oferecido a ela teria originado um determinado tipo de paladar: “(…) Fizeram desfilar em face das multidões uma procissão de manjares esquisitos de um sabor estranho; no festim da arte, os naturalizaram sem cuidar dos elementos que fermentavam em torno de nossa sociedade (…)” (135). Dentro desse contexto, assinala o crítico, surge o tradutor dramático, “espécie de criado de servir que passa de uma sala a outra os pratos de uma cozinha estranha” (136), e uma espécie de entrave ao aparecimento de novos talentos. Apesar de ser uma figura importante, o tradutor parece ser visto como uma espécie de elemento parte de um sistema, que emperra o desenvolvimento do teatro nacional.

Percebemos, dessa forma, que a função civilizadora do teatro tão abertamente defendida por Machado mostra-se ausente do teatro da época, segundo acredita ele. O público não estava, segundo Machado, em contato com questões que dizem respeito à sua realidade e às questões pertinentes a ela, mas habituado a uma realidade estranha a ele, e, habituado como está, espera do teatro que lhe ofereça exatamente aquilo o que ele assiste. Os empresários do teatro, por sua vez, alimentam esse círculo vicioso oferecendo ao público aquilo com a qual o acostumou, recusando a propor mudanças e a aderir a tendências mais atuais, como o teatro realista francês. Como conseqüência, afirma Machado, a sociedade perde: “A civilização perde assim a unidade. A arte destinada a caminhar na vanguarda do povo como uma preceptora – vai copiar as sociedades ultra-fronteiras” (136). Dessa forma, afirma o crítico, o teatro, que junto com a palavra escrita na imprensa e a palavra falada na tribuna, sempre produziu transformações, deixa de realizar a sua tarefa.

A conclusão de Machado é assertiva: “o teatro não existe entre nós: as exceções são esforços isolados que não atuam, como disse já, sobre a sociedade em geral. Não há teatro nem poeta dramático…” (137).

Em “O Conservatório Dramático”, terceiro texto crítico da série que estamos discutindo, Machado fala sobre o trabalho do Conservatório, órgão sensor da época e do qual faria parte a partir de 1862. O crítico confirma em seu texto a importância de tal órgão, afirmando que este tem um papel moral e intelectual, no entanto, pontua que o Conservatório não cumpre com o que dele se espera.

Para Machado, o Conservatório cumpria o seu papel apenas no aspecto moral, mas não no intelectual: “As atribuições do Conservatório limitam-se a apontar os pontos descarnados do corpo que a decência manda cobrir, risca as ofensas feitas às leis do país, e à religião… do Estado: mais nada” (217). Para exercer tal atividade não seria necessário um conjunto de intelectuais, afirma o escritor, mas apenas “meia dúzia de vestais ou três devotas”.

Machado deixa muito claro o que entende por julgar e não mede palavras para criticar o conceito praticado pelo Conservatório:

 

Julgar de uma composição pelo que toca às ofensas feitas à moral, às leis, e à religião, não é discutir-lhe o mérito puramente literário, no pensamento criador, na construção cênica, no desenho dos caracteres, na disposição das figuras, no jogo da língua (217).

 

Machado parece, no último texto, chamar a atenção para o papel do Conservatório Dramático enquanto órgão que deveria possibilitar um determinado padrão literário para as peças representadas naquele momento, o que justificaria inclusive a presença de uma magistratura intelectual. No entanto, o ponto que destaca é justamente a preocupação com o aspecto moral que nem de longe aborda questões pertinentes à qualidade literária dos textos. Parece estranho a Machado a preocupação em ter um corpo intelectual que julgue questões que não são referentes à qualidade intelectual das peças.

Haveria, para o crítico, um papel importante a ser desempenhado pelo Conservatório no que diz respeito a selecionar peças e dar tal liberdade de seleção e julgamento aos censores: “Julgar do valor literário de uma composição, ao mesmo tempo que praticar um direito do espírito: é tomar um caráter menos vassalo, e de mais iniciativa e deliberação” (217).

A leitura do conjunto dos três textos críticos permite ao leitor perceber que, para Machado, o teatro brasileiro tinha àquela altura uma existência de miséria. Os nossos palcos estavam inundados de peças estrangeiras, melodramas românticos em sua maioria, que não traduziam a cor local e não cumpriam a missão civilizadora que Machado acreditava que o teatro deveria ter. Pelo contrário, traduziam a realidade de lugares outros, dissociados da realidade brasileira. As platéias, por suas vez, acostumadas a tal tipo de teatro o aceitava de bom grado não ansiando por quaisquer tipos de mudanças, o que era cômodo, prático e alimentado por determinados empresários do drama. O Conservatório Dramático, por sua vez, ao exercer o papel de selecionar e aprovar as peças por meio de um corpo intelectual, não conseguia exercer e deixar que exercessem o seu papel de filtro intelectual para o que surgia no cenário brasileiro, limitando-se a censuras morais. É dentro desse contexto e a partir de tais concepções que Machado tece seus comentários na “Revista de teatros”.

 
O ESPELHO: “REVISTA DE TEATROS”

Pode-se dizer que as dezoito crônicas que compõem a “Revista de Teatros” são, até certo ponto, bastante parecidas, apresentando elementos que se repetem ao longo da série. Nelas, Machado apresenta o assunto que abordará (o que aparece primeiramente em um breve resumo que antecede tais textos), faz um sumário do enredo das peças de maneira a contextualizar os leitores que ainda não conhecem o drama, assim como anuncia o teatro em que foram e/ou estavam sendo encenadas. Machado registra, algumas vezes, impressões gerais que teve da platéia e da apresentação, tece comentários sobre o enredo das peças e sempre comenta a atuação dos atores, elogiando as que considera boas e criticando, às vezes enfaticamente, as más atuações, o que geralmente aparece acompanhado de sugestões, que visam a contribuir para o aprimoramento do ator:

 

(…) A Sra. Teresa Soares nem correspondeu ao menos pelo vestuário ao papel que lhe estava confiado. Esta moça, que pode adiantar-se, creio que não tem muito amor à arte. Nas emoções então parece que pede um copo d’agua; não se lhe contrai nem uma fibra. Se chegar aos seus olhos estas páginas peço-lhe que medite e estude seriamente para alcançar alguma coisa na carreia que tomou (02 de outubro de 1859).

 

O cenário também não passa despercebido ao cronista, que comenta acertos e condena supostas incongruências na escolha:

 

Os olhos da platéia já estão fatigados de oscilarem entre decorações gastas e importunas. É preciso notar, vêm muito ao caso esses acessórios de disposição para o bom êxito de uma peça; e não há quem não se ria de ver, por exemplo Luís XIV ou Molière, sentado em uma cadeira de Francisco I, e em um gabinete do tempo da revolução (18 de setembro de 1859).

 

Se a atuação e o cenário chamam a atenção do crítico, não foge de seus comentários a composição das peças. Incomoda muito ao jovem cronista aspectos concernentes a inverossimilhanças e incoerências em sua composição. Sobre a peça Asno é sempre asno, por exemplo, Machado questiona:

 

Ora, em que país e em que época, um pai usa um calção, cabeleira de rabicho, e chapéu a três pancadas, ao passo que o filho traja com um garbo de lion, fraque moderno, e botina francesa? Ao passo que um velho mestre de escola de óculos verdes apresenta o característico mais híbrido, mais bastardo, mais furta-cor deste mundo?

Desejara a solução deste enigma (23 de outubro de 1859).

 

No período em que Machado escreveu tais crônicas havia no Rio de Janeiro quatro teatros em atividade: o Teatro Lírico, o S. Pedro de Alcântara, o Teatro Ginásio Dramático e o São Januário. Nas dezoito crônicas da “Revista de teatros”, Machado de Assis preocupou-se em discutir quase sempre a produção dos dois maiores teatros da época, o S. Pedro de Alcântara e o Ginásio Dramático, deixando um tanto à margem dos comentários os espetáculos dados no Teatro S. Januário e no Teatro Lírico.

O S. Januário, que tinha como ator e empresário Germano Francisco de Oliveira, reproduzia em certa escala o repertório de João Caetano no S. Pedro de Alcântara, o que, segundo João Roberto Faria, talvez fosse uma boa desculpa para Machado não ver os seus trabalhos (37), uma vez que o cronista mostra não apreciar as produções de João Caetano, constante alvo de críticas de sua parte. Tal aspecto é visto por Jean-Michel Massa como um contraponto negativo de tais artigos. Para o crítico francês, Machado “mostrou-se negligente em relação ao São Januário e aos esforços desenvolvidos pelo seu diretor Germano” (Massa 262).

A leitura do conjunto dos textos da “Revista de Teatros” deixa ver que Machado mostra evidente simpatia pelo Teatro Ginásio Dramático em contraposição ao S. Pedro de Alcântara. Tal opção não se pauta, evidentemente, pura e simplesmente em questões de gosto pessoal, mas evidencia a adesão de Machado ao estilo praticado pelo Ginásio, que se liga aos preceitos críticos demonstrados por ele em suas “Idéias sobre o teatro” e em “O Conservatório Dramático”, que por sua vez dão continuidade às idéias apresentadas nos primeiros escritos, a saber, “Idéias Vagas – A comédia Moderna” e “O presente, o passado e o futuro da literatura”.

O teatro S. Pedro de Alcântara, que tinha à frente o ator e empresário João Caetano, possuía, como as próprias crônicas de Machado deixam ver, um repertório composto basicamente por melodramas e dramalhões ultra-românticos, que vinham sendo bastante reproduzidos ao longo dos anos. Tais dramas, que eram chamados “composições-múmias” por Machado, eram amplamente repudiados pelo autor, adepto declarado do teatro realista francês: “O asno morto pertence à escola romântica e foi ousado pisando a cena em que tem reinado a escola realista. Pertenço a esta última por mais sensata, mais natural, e de mais iniciativa moralizadora e civilizadora” (11 de setembro).

Segundo Faria, Machado “reconhecia o talento do famoso ator [João Caetano], mas não lhe perdoava o repertório anacrônico, a falta de iniciativa para se atualizar enquanto artista, o que significava manter o seu público distanciado das novas tendências teatrais” (Faria 38). Como vimos anteriormente, em “Idéias sobre o teatro I e II” Machado mostrou discordar desse tipo de comportamento artístico e empresarial, responsável, segundo ele, pela má educação da platéia e elemento estagnador do teatro nacional. Nas suas crônicas da “Revista”, Machado deixa tais questões declaradas. Vejamos a crônica de 09 de outubro:

 

Aprecio o Sr. João Caetano, conheço a sua posição brilhante na galeria dramática de nossa terra. Artista dotado de um raro talento escreveu muitas das mais belas páginas da arte. Havia nele vigorosa iniciativa a esperar. Desejo, como desejam os que protestaram contra a velha religião da arte, que debaixo de sua mão poderosa a platéia de seu teatro se eduque e tome uma outra face, uma nova direção; ela se converteria decerto às suas idéias e não oscilaria entre as composições-múmias que desfilam simultâneas pelo seu tablado (145).

 

O Ginásio Dramático surge, assim, como um espaço aberto às novas idéias teatrais. Manifestando-se abertamente simpático a tal casa teatral, Machado afirma na crônica de 25 de setembro: “Em sua vida laboriosa ele nos tem dado, horas aprazíveis, acontecimentos notáveis para a arte. Iniciou ao público da capital, então sufocado na poeira do romantismo, a nova transformação da arte – que invadia então a esfera social” (125). A escola realista de teatro é para Machado o veículo que propicia ao espectador ver de maneira direta os problemas de sua sociedade. Por volta de 1859, o sentido de teatro realista a que Machado se referia pode ser entendido a partir de uma citação que faz remetendo a Victor Hugo:

 

A leitora sabe que o clássico não é o meu forte; aplaudo-lhes os traços bons, mas não o aceito como forma útil do século. Digo forma útil, porque eu não tenho a arte pela arte, mas a arte como a toma Hugo, missão social, missão nacional e missão humana (15 de dezembro).

 

O Ginásio Dramático trazia em seu repertório peças que se adequavam a esse perfil a qual Machado era adepto. O referido teatro tinha à frente o português Furtado Coelho, que dava chance a jovens autores, como Ernesto Cibrão, José Romano e Macedo. Assim, segundo Massa, “o metteur en scène português introduziu na cena brasileira peças “realistas” que evocavam um problema social, um caso, exatamente como nas peças de Dumas (…)” (Massa 262), apesar de algumas vezes também ter em seu repertório melodramas. Na crônica de 16 de outubro, Machado comenta a peça Mulheres terríveis, tradução de Les Femmes terribles, de Dumanoir, representada no Ginásio e chama a atenção para o seu caráter de abordagem de problema social evidenciando sua aprovação ao estilo:

 

A mais notável é a comédia em três atos do teatro moderno francês, As mulheres terríveis. É uma das mais delicadas e espirituosas composições que conheço; chistosa sem ser burlesca, frisante sem ser imoral. Um desenho completo de caracteres, uma reprodução graciosa de fatos que se dão na vida social; mão de mestre no desenvolvimento do diálogo e da ação, sem cenas de luxo, sem lances supérfluos e truncados, eis o que se deu sexta-feira no Ginásio (16 de outubro).

 

Diretamente relacionado a esse ideal de “reprodução graciosa de fatos que se dão na vida social” está o estilo de atuação dos atores. Assim, se as peças representadas no S. Pedro de Alcântara não agradam ao jovem Machado, o estilo praticado pelos seus atores tampouco faz sucesso com o crítico. Quase sempre se dirigindo a uma virtual leitora, Machado mostra-se avesso ao estilo grandiloquente, espelho dos exageros românticos: “Há talvez ainda uns laivos de uma educação artística viciosa; a fala ressente-se de uma gravidade própria do romantismo” (25 de setembro de 1859). Tal estilo de atuação distanciaria a cena de uma situação de naturalidade valorizada pelo cronista, marcando, mais uma vez, o estilo emblemático e ultrapassado dos atores e peças melodramáticas.

Tal estilo de atuação leva o cronista não apenas a criticar os adeptos dos gestos e falas exageradas, como também a observar e comentar atuações que haviam superado tal estilo. Quando discute a atuação do ator Heller em A honra de uma família, por exemplo, elogia a sua atuação e aponta como aspecto positivo o ingresso no Ginásio: “O Sr. Heller, no papel de Chennevières revelou muito talento que andava encoberto quando errava lá pelas constelações do romântico. Este moço tem se desenvolvido muito depois que se uniu ao Ginásio; foi a pedra de toque de uma vocação larga” (25 de setembro).

O teatro enquanto reprodução da vida real deveria apresentar um estilo que aproximasse o espectador da situação representada. Os exageros grandiloquentes apenas ressaltariam um estilo antiquado que espelhava muito pouco as situações que o teatro moderno pretendia representar. Justificam-se, assim, críticas incisivas por parte do crítico ao estilo de determinados atores, como vemos a seguir: “O Sr. Florindo no desempenho do conde  Plonzastee, não me pareceu completo. Tinha uma voz modulada; nada de inflexão natural, nada da maneira própria de falar” (04 de dezembro); “O Sr. Barbosa  (…) não esteve na altura da peça e do papel; fez de uma criação grosseira uma entidade banal. Locução laboriosa, arrastada, com os rr de carrinho, e as frases pronunciadas gota a gota; gesto grotesco, contorções de corpo e de fisionomia (…)” (11 de dezembro).

Dessa forma, percebemos que a afirmação feita por Machado na crônica de 02 de outubro sobre o drama Luis, de Ernesto Cibrão, representado no Ginásio Dramático ilustra e resume o que o crítico esperava de uma peça e de sua representação naquele momento: “Todos os caracteres que movem a ação estão bem reproduzidos. Reproduzidos é a palavra: há no drama do Sr. Cibrão a verdade, a reprodução”. Tal reprodução se perfazia, para Machado, pelo estilo de criação dramática, que deveria espelhar uma situação vivenciada por aquela sociedade e também pelo estilo de representação ao público, que deveria trazer naturalidade e espontaneidade, à semelhança da vida real.

CONCLUSÃO

A leitura do conjunto de textos publicados em O espelho deixa o leitor perceber que o crítico Machado de Assis tinha, por volta dos vinte anos de idade, muito claro para si o que esperava da arte e, especificamente, do teatro. Tais questões, discutidas e exemplificadas ao longo de nosso artigo, dão conta dos aspectos relacionados ao teatro enquanto elemento civilizador, termômetro do desenvolvimento de uma sociedade e instrumento de educação. Tais preceitos não apenas estão presentes nos textos críticos publicados em O Espelho, a saber “Idéias sobre o teatro I e II” e “O Conservatório Dramático”, mas também nas crônicas semanais, que expressam na prática o pensamento do crítico.

O conjunto de textos sobre o teatro publicado em O Espelho evidencia traços importantes do jovem crítico. Machado de Assis, em pleno vigor de uma impetuosidade juvenil, expressa forte idealismo e desejo de mudança, o que nos leva a concordar com Jean Michel Massa, quando este afirma que tais crônicas denunciam um “projeto de reforma” (261) do jovem escritor. É claro que tal entusiasmo reformador sofreria alterações ao longo dos anos, mas, o que nos interessa apontar, aqui, são as primeiras idéias sobre o teatro de um escritor e crítico em formação.

É importante ressaltar que tal conjunto de textos demonstra não apenas as idéias de um crítico em formação, mas também uma maneira de fazer crítica, maneira esta que surgiria sistematizada em 1865, no conhecido artigo “Ideal do crítico”. Nele, Machado defende o que chama de crítica fecunda, como define na seguinte passagem do referido texto:

 

(…) Estabelecei a crítica, mas a crítica fecunda, e não a estéril, que nos aborrece e nos mata, que não reflete nem discute, que abate por capricho ou levanta por vaidade; estabelecei a crítica pensadora, sincera, perseverante, elevada, será esse o meio de reerguer os ânimos, promover os estímulos, guiar os estreantes, corrigir os talentos feitos; condenai o ódio, a camaradagem e a indiferença, – essas três chagas da crítica de hoje, – ponde no lugar deles, a sinceridade, a solicitude e a justiça, – é só assim que teremos uma grande literatura (148).

 

O que parece despontar no Machado de Assis de O Espelho são as idéias de um crítico teatral idealista que ansiava por reformas e acreditava na força do teatro. Mas, por outro lado, parece se delinear também o perfil de um crítico em formação, de posse de uma determinada maneira de fazer crítica, como sistematizaria o escritor poucos anos depois. E é aí que residem elementos importantes de serem investigados na trajetória machadiana: de que maneira esses ensaios pioneiros do escritor delineiam o crítico que Machado viria a ser? De que cor se tingiria a militância do jovem Machado em outros momentos de sua carreira? Cabe ressaltar que alguns dos preceitos demonstrados em O Espelho – e mais tarde em “Ideal do crítico” – parecem elementos embrionários e norteadores de um projeto que permanecerá, em certa medida, nos horizontes do escritor ao longo de sua carreira, não apenas de cronista e crítico literário, mas também de escritor de ficção. O veio crítico de Machado não o abandonará ao longo de sua trajetória, e o levará, inclusive, a exercer tal papel por meio de sua própria ficção, o que ocorrerá principalmente a partir de suas Memórias póstumas de Brás Cubas.

 
 
Nota
 
1 Todas as citações referentes aos textos de Machado de Assis foram extraídas da edição feita por João Roberto Faria em Machado de Assis do teatro, que reuniu na referida obra as crônicas teatrais publicadas pelo autor ao longo de sua carreira. A obra em questão está presente na bibliografia do presente artigo.

 
 
Bibliografía
 

Faria, João Roberto. Machado de Assis do teatro. São Paulo: Perspectiva, 2008.

Massa, Jean-Michel. A juventude de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1971.

Ribeiro, Maria Augusta. H. W. Machado de Assis, um teatro de figuras controversas. São Paulo: Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, 1989.
 
 

'MACHADO DE ASSIS E O TEATRO: O JOVEM CRÍTICO DE O ESPELHO' has no comments

Be the first to comment this post!

Would you like to share your thoughts?

Your email address will not be published.

Images are for demo purposes only and are properties of their respective owners.
Old Paper by ThunderThemes.net

Skip to toolbar