Carvalho, Bernardo. O filho da mãe. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. 201 páginas.

Débora Racy Soares
Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP/FAPESP
 
 

O filho da mãe, romance mais recente do escritor e jornalista brasileiro Bernardo Carvalho, é um dos livros que fazem parte da coleção Amores Expressos, idealizada pela editora Companhia das Letras, em 2007. O objetivo desta coleção é produzir textos que versem sobre a temática amorosa, tendo como pano de fundo diversos locais do planeta. Assim, os dezessete escritores de diferentes gerações que foram convidados a integrar este projeto, partiram em viagem mundo afora para refletir sobre a temperatura do amor na contemporaneidade. Um dos desafios que têm enfrentado é discorrer, com originalidade, sobre um tema reprisado à exaustão pela literatura ocidental. Outros acidentes de percurso fazem parte do processo produtivo dos livros e até servem de inspiração para as estórias.

Bernardo Carvalho relata em seu blog que precisou aprender a brincar de mímica para poder se comunicar em russo.¹ O autor foi incumbido de ir à Rússia para arquitetar seu romance, sem dominar o idioma deste país. Como se não bastasse, sofreu uma tentativa de assalto em São Petersburgo, acontecimento que aparece re-figurado em O filho da mãe. Este, que é o segundo título da coleção Amores Expressos, foi precedido por Cordilheira (2008), de Daniel Galera, cuja estória se passa em Buenos Aires. O projeto – ainda em curso – prevê que cada um dos dezessete escritores permaneça por  um mês em um determinado país, que deve emoldurar suas estórias. Espera-se, dessa forma, que o deslocamento espacial dos autores seja suficiente para concretizar a proposta inicial da coleção. Ademais, o resultado final deverá ser semelhante a um mosaico literário, composto por visões múltiplas sobre o fenômeno amoroso. Se os dezessete livros forem realmente publicados – a editora não garantiu que publicaria todos os trabalhos – os textos devem registrar impressões de viagem, cujas imagens estrangeiras seriam captadas e expressas por palavras em português. Aliás, os livros estão sendo concebidos visando à adaptação cinematográfica. Não por acaso, Bernardo Carvalho elege, em O filho da mãe, um narrador onisciente, não-identificado que, transposto para a linguagem do cinema, deve operar como o ponto de vista da câmera. O narrador funciona como uma espécie de gancho, pois articula todas as micro-estórias paralelas que constituem o romance, jogando com a expectativa do leitor. O que facilita a articulação é o fato de as estórias apresentarem personagens em comum. Embora o leitor aposte no reencontro, qualquer possibilidade de re-união parece corrompida a priori em uma situação de guerra. Pois a guerra afasta as pessoas, como as “trezentas pontes” de São Petersburgo que não “leva(m) a lugar nenhum” (22)

Bernardo Carvalho é autor de Nove noites (2002), romance ganhador do prêmio Portugal Telecom,Mongólia (2003), livro que conquistou o prêmio Jabuti e O sol se põe em São Paulo (2007), entre outros. Nove noites, assim como O filho da mãe, que em breve será publicado pela editora francesa Metailié, introduzem,mutatis mutandis, personagens ávidas por acertar as contas com suas próprias histórias. De certa forma, o olhar estrangeiro em relação a um país desconhecido, que também aparece em Mongólia, repercute, em O filho da mãe, nas paisagens arruinadas pela guerra que impede o re-conhecimento do que antes era familiar. Sentir-se estrangeira em seu próprio país é a sensação vivida por Iúlia Stepánova, uma das personagens deste romance de 2009. O “mundo em volta está mudado”, observa Iúlia, para depois perceber que já não é capaz de “reconhec(er) quase nada” de um determinada “parte da cidade” de São Petersburgo (11). O estranhamento oriundo da destruição massiva acaba abalando o próprio sentimento de identidade das personagens. Identidades fragilizadas, estremecidas pela violência da segunda guerra da Tchetchênia, que ambienta O filho da mãe. Em outros momentos, a dificuldade de reconhecimento pode ser atribuída aos recalques da memória, decorrentes do choque ocasionado por vivências traumáticas. Assim acontece com Anna Vassílievna que, diante da iminência de receber notícias do filho que havia abandonado, “não se lembrar(a) de nada, como se estivesse em transe ou sob efeito de hipnose” (53).

Zainap, Ruslan, Anna, Andrei, Olga, Alexandre são algumas, entre tantas outras personagens deste O filho da mãe que, embora apartadas pelas vicissitudes da existência, almejam o encontro. Se a guerra ignora as fronteiras, Bernardo Carvalho joga com a diversidade espacial e temporal, sugerindo que os conflitos expostos neste romance transcendem as fronteiras russas. Dessa forma, não importa muito se a estória acontece em São Petersburgo, Grózni, Moscou, Vladivostok, Belém do Pará ou em locais como um campo de refugiados na Inguchétia e o mar do Japão. Filhos abandonados, mães desesperadas, pais ausentes, irmãos uterinos, famílias desestruturadas são apenas alguns dos temas que dão consistência à trama de O filho da mãe. Motivos que, pondo o dedo em feridas contemporâneas, acabam por evocar a ancestralidade da barbárie. Veja-se o caso exemplar de Maksim que age possuído pelo ciúme e com o consentimento de seu pai, Dmítri, de quem toma as dores advindas da incapacidade de “superar a raiva e o sentimento de traição” (87). Diante de situações-limite como os períodos de guerra, a precariedade da existência é potencializada e vem à tona, ameaçando nossa fragilizada humanidade. Dizer que há uma ética de guerra pode soar contraditório. No entanto, a luta pela sobrevivência e a “sede de justiça” transbordam pelos poros de personagens que vivem em situações extremas (194). As diferenças entre civis e terroristas são ignoradas, o que transparece através do “lema” do “tenente-coronel Iakovenko” que “ia atrás de bodes expiatórios” e “não se importava de cometer injustiças, nem de matar inocentes durante as buscas por terroristas que matavam russos” (194). Pois “reproduzir e matar” faz “parte da natureza humana, tanto quanto a guerra” e, afinal, “todo ser humano é inimigo” em potencial (156, 193).

Bernardo Carvalho constrói um enredo que, em sua opinião, se assemelha a uma “trama operística”, pois é pontuado por vozes múltiplas, orquestradas em torno de um motivo predominante: o amor materno. “Como o romance tinha que ser uma história de amor, pensei no amor incondicional, absoluto, que é o amor de mãe” – explica o autor – acrescentando que o conflito da “guerra” e da “violência” é o “centro do romance”.  Portanto, amor e guerra estão imbricados neste O filho da mãe que foi inspirado no romance Life and Fate (1959) do escritor Vasily Semyonovich Grossman (1905-1964). Aliás, este livro é tido como a obra-prima do escritor nascido em Berdychiv, além de ter sido considerado o melhor romance russo do século XX, pelo jornal Le Monde.

Na primeira parte de O filho da mãe – “Trezentas pontes” – assistimos ao desenrolar da estória de Rulsan, um rapaz tchetcheno, filho de Anna e Chakhban. A mãe o abandonara ainda bebê, com dois meses, pois “não são todas as mães que amam desde o início” (44). Se “ninguém ama por obrigação”, “nem toda mulher quer ser mãe. Ainda mais quando a criança se interpõe entre ela e o mundo de onde ela veio, e a impede de voltar a ser quem ela era” (92,42). Chakhban é morto durante um atentado ao prédio em que trabalhava como engenheiro químico. Órfão de pai e abandonado pela mãe, Ruslan é criado pela avó materna Zainap, cuja estória também é narrada neste primeiro capítulo. Aos “setenta e oito anos, doente e sem remédios, coagida pela guerra”, Zainap – que “esquecia quem tinha morrido” e precisou fazer “uma lista para não confund(ir)” os mortos “com os vivos” – já “não se preocupa em ser repatriada”: “prefere morrer em casa, no meio da guerra, a extinguir-se aos poucos num campo de refugiados” (30, 23-24). Essa figura trágica está acostumada a “passar a vida à espera dos desaparecidos”, pois “pior do que saber da morte de alguém é não saber” (43,45). Todos são vítimas da segunda guerra da Tchetchênia.

No decorrer das várias estórias que se entrecruzam são expostos, como feridas abertas, os dramas das personagens. As reflexões sobre o amor são quase sempre associadas ao “risco e à guerra” (38). Assim, é como se o amor fosse revelado em negativo pela sucessão de carências e ausências que afetam as personagens, através do sentimento de orfandade ou de desamparo. Nesse sentido, a visão de Ruslan sobre o amor é contundente, pois pode sintetizar o sentimento compartilhado com as outras personagens: “só consegui(a) amar entre ruínas”,  pois o amor era indissociável da “iminência da perda” (38). A guerra, única realidade que parecia conhecer, ceifara a juventude de Ruslan. O final da primeira parte faz o leitor questionar se as pontes sobreviveriam à destruição e se poderiam restabelecer o vínculo perdido entre as personagens.

A segunda parte do romance intitula-se “As quimeras”. No contexto do livro, a quimera remete ao “animal” que é “dois sem ser nenhum” e à mistura de “dois embriões” (160). A quimera também se parece com o amor, quando encarada como ilusão: “dois fundidos num só, indistintos” (161). Porém, as quimeras, como a guerra, “põem a reprodução num impasse”, além de serem “portadoras de mau agouro” (161).

Neste segundo momento, a estória de Ruslan entrelaça-se com a de Andrei, um rapaz que é filho da russa Olga e do brasileiro Alexandre. Olga conhecera Alexandre em Sótchi, quando trabalhava como garçonete em um hotel. Sente-se fracassada como mãe, pois fora incapaz de contrariar o padrasto de Alexandre, Nikolai, que o expulsou de casa, obrigando-o a prestar o serviço militar. Alexandre, dez anos mais velho do que Olga, vivia em Moscou, era exilado político e resolveu voltar ao Brasil quando Andrei completou nove anos. A certa altura da estória, Olga solicita a ajuda de  Alexandre para salvar Andrei, pois “sozinha já não pode(ria) salvar a vida dele” (167). Nikolai “nunca se entendeu com o enteado” e “desde o início, rivalizara com o amor” que Olga “nutria pelo filho” (151).

Andrei “não conversa com ninguém” e fala sozinho para “não perder a prática” (97). A serviço do regimento, sem escolhas, precisa suportar o “peso” “insustentável” de sua “consciência” (100). Está tomado por “ódio” e “revolta”, mas também sente “medo” e “impotência” já que, como um “mero recruta”,  precisa “fazer o que não quer” (102,100). Quando pensa na humilhação a que precisa se submeter para “arrecadar verbas para completar o salário dos superiores e sustentar o quartel falido”, deseja poder “sair do seu corpo e ser outra pessoa” (98,102). Ao sentir-se abandonado pela mãe, pois “já não podia contar com ela”, gostaria que ela, pelo menos, soubesse “o que (sua) vida se torn(ara)” (152, 98).

Em um determinado momento, Olga é procurada pelo Comitê das Mães dos Soldados de São Petersburgo e recebe notícias de seu filho Andrei, através de Marina Bóndareva. Este Comitê, que realmente existiu, era formado por “associações criadas por mães que queriam salvar os filhos, não só da guerra da Tchetchênia, (…) mas da violência inerente ao próprio serviço militar”, explica Bernardo Carvalho. Marina é uma das personagens que participam do Comitê, auxiliando outras mães. Quando Pável, seu filho caçula, foi convocado para a guerra da Tchetchênia, Marina resolveu que deveria começar “a lutar pelos filhos dos outros” também. Assim, descobriu que “as mães têm mais a ver com as guerras do que imaginam” (186). “Não pode haver guerras sem mães”, pois “as mães têm horror a perder” (186). Além do mais, são capazes “de tudo para evitar a morte de um filho” (186).

Na breve terceira e conclusiva parte – “Epílogo” – Bernardo Carvalho retoma a metáfora da quimera, cujo alcance semântico é produtivo no contexto deste O filho da mãe. Tal como a guerra, a quimera pode ser absurda, uma verdadeira aberração da natureza. Tal como a quimera, o amor em tempos de guerra alude às esperanças ceifadas e aos projetos irrealizados. Se o título do livro reafirma a descendência, valorizando a maternidade, também remete ao sujeito traiçoeiro, desonesto, não-confiável, um autêntico “filho-da-mãe” (199).
 
 
NOTA
 

1 Cf. o blog de Bernardo Carvalho: http://blogdobernardocarvalho.blogspot.com/
A ausência de referência ao(s) número(s) de página(s) de algumas citações significa que elas foram extraídas do blog do autor.
 
 

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