Universidade Federal de Minas Gerais
Não.
Então para que fazer isso?
(…)
Eu só não quero ficar sentada, calada. (J. M. Coetzee, A vida dos animais)
Permitamo-nos uma longa citação de Italo Calvino, que funcionará como um fio a nos guiar num labirinto de ideias, uma vez que seus rastros deixarão marcas indeléveis ao longo de todo esse texto:
Repetidas invasões afligiram a cidade de Teodora ao longo dos séculos de sua história; para cada inimigo desbaratado, surgia um novo que ameaçava a sobrevivência dos habitantes. Depois de expulsar os condores do céu, foi necessário enfrentar a proliferação das serpentes; o extermínio das aranhas permitiu que as moscas se multiplicassem e negrejasse; a vitória sobre os cupins deixou a cidade à mercê das traças. Uma a uma, as espécies incompatíveis com a cidade sucumbiram e foram extintas. Graças à fúria de dilacerar escamas e cascos, de arrancar élitros e penas, os homens deram a Teodora a imagem exclusiva de cidade humana que ainda a caracteriza. (…)
Ao menos era nisso que os habitantes de Teodora acreditavam, longe de supor que a fauna esquecida estava se despertando do letargo. Relegada por longas eras a esconderijos apartados, desde que fora despojada do sistema das espécies agora extintas, a outra fauna retornava à luz dos porões da biblioteca onde se conservavam os incunábulos, saltava dos capitéis e dos canais, empoleirava-se no travesseiro dos dormentes. As esfinges, os grifos, as quimeras, os dragões, os hircocervos, as harpias, as hidras, os unicórnios, os basiliscos retomavam a posse de sua cidade. (Calvino 144-145.)
Que a ficção coloca-se como espaço de ricas possibilidades para a reflexão acerca da produção de saberes não é reivindicação nova, e podemos remontar sua explicitação em termos de um saber narrativo a Jean François Lyotard em A Condição pós-moderna, quando o filósofo francês caracterizava este, principalmente, por retirar de cena exigências típicas do saber científico e por insistir na irredutibilidade do que há de plural no mundo, incorporando, em si mesmo, a multiplicidade dos jogos de linguagem.
Mas a utilização poética para tratar da questão animal e para abordar o universo e o pensamento zoo aparece contemporaneamente tanto como recurso estético quanto reflexivo, seja na literatura ou na filosofia, e com um vigor capaz de ultrapassar e embaralhar as fronteiras que, em Lyotard, ainda parecem muito nítidas, entre os diferentes campos do saber. Procurando nos guiar pela narrativa de Calvino – de uma Teodora constantemente invadida por animais, que são também seguidamente exterminados pelo homem como forma de garantir a esta uma imagem exclusiva de “cidade humana”, por fim invadida pelos animais dos sonhos (para retomar a expressão de Jorge Luis Borges), estes sim aparentemente impossíveis de serem exterminados, marcados que são por seu caráter poético e narrativo –, procuraremos esboçar no espaço deste artigo uma breve reflexão a respeito da ênfase dada por autores como Jacques Derrida e J. M. Coetzee à poética e à ficção como espaços privilegiados para a reflexão sobre o animal, sobre a relação entre homem e animal e sobre os limites que, simultaneamente, aproximam e afastam homem e animal, literatura e filosofia, ciência e poesia.
Chama-nos a atenção, em A vida dos animais, o efeito que provoca a opção de Coetzee pela utilização da narrativa como forma para conduzir suas conferências na Universidade de Princeton – em lugar do tradicional ensaio filosófico que é, normalmente, a forma que domina as Tanner Lectures. Num duplo jogo referencial, o escritor vai tratar o tema da relação entre homens e animais por meio de uma ficção que apresenta uma escritora convidada a proferir duas palestras em uma universidade, nas quais opta por abordar a temática zoo. Suas duas palestras, assim, enfocam não apenas as questões éticas que envolvem a relação entre homens e animais e as diversas implicações daí advindas, mas todo o potencial da ficção para tratar essa questão: Coetzee narra o processo da participação acadêmica de Elizabeth Costello, a personagem-palestrante-escritora no evento de Appleton College, suas apresentações, suas posições e as reações às mesmas. Narra, assim, ao mesmo tempo, o lugar da ficção no espaço da produção de saber, a universidade.
Esse movimento complexo embaralha as fronteiras e as complexifica, multiplicando-as a ponto de não ser possível pensar nas mesmas em termos de oposições simplistas e binárias como as comumente traçadas, seja em termos das relações homem/animal ou ciência/poesia, aspecto que parece ser também um dos pontos chave para o pensamento derridiano em relação à questão:
(…) a limitrofia, eis aí pois nosso tema. Não apenas porque se tratará do que nasce e cresce no limite, ao redor do limite, mantendo-se pelo limite, mas do que alimenta o limite, gera-o, cria-o e o complica. Tudo o que direi consistirá sobretudo em não apagar o limite, mas em multiplicar suas figuras, em complicar, em espessar, em desfazer a linearidade, dobrar, dividir a linha justamente fazendo-acrescer e multiplicar-se. (Derrida, O animal 58)
Nesse movimento, é interessante observarmos o efeito provocado pelas conferências de Coetzee, em especial por sua opção pela ficção. Como de costume no caso das publicações referentes aos ciclos de conferências em questão, solicita-se que quatro estudiosos de diferentes áreas do conhecimento – “de diversas perspectivas que raramente se integram”, “que pertencem a disciplinas acadêmicas inteiramente distintas, que não são nem ao menos disciplinas afins” (Gutmann 13) – comentassem as palestras de Coetzee. E uma questão que foi marcante nesses comentários, além das discussões relativas às abordagens apresentadas pelo escritor a respeito da relação entre homem e animal, foi a questão de sua opção pela narrativa.
Qual o motivo dessa persistência, dessa reverberação, desse incômodo provocado pela narrativa? Porque os animais dos sonhos são aqueles que voltam para povoar a “imagem exclusiva da cidade humana”, de onde esse vigor da poesia que a leva a ser considerada a única voz possível para o animal? Qual a relação das fronteiras homem/animal, ciência/poesia e pensamento/conhecimento?
Derrida afirma que “(…) o pensamento do animal, se pensamento houver, cabe à poesia, eis aí uma tese, e é disso que a filosofia, por essência, teve de se privar. É a diferença entre um saber filosófico e um pensamento poético”. (Derrida, O animal 22). O pensamento do animal não seria também o único pensamento possível sobre o animal? Pensar poeticamente o animal não seria multiplicar as fronteiras entre homem e animal, e assim espessar também as fronteiras entre a poesia e a ciência, entre o pensamento e o conhecimento?
Se dentre todos os animais, o animal que logo sou é “o único sem voz no coro infinito das vozes animais” (Agamben), e se em lugar dessa voz, “provamos do falar, do pensar” (Agamben), ao pensarmos a poesia como uma prevenção do conhecimento, como uma “benção antes do saber” (Derrida, Che cos’è 7), parece-me que aí sim poderíamos pensar o poético como esse lugar que adentraria as fronteiras e irromperia os limites dos confins homem/animal, pois o poético viria assim antes da distinção, antes da perda da voz provocada pelo pensar.
Que o pensamento do animal caiba à poesia é uma tese, conforme afirma Derrida, fundada no redobramento dos limites entre um pensamento poético e um saber filosófico, entre poesia e ciência, entre homem e animal. Derrida inicia Che cos’è la poesia? 1 afirmando que “para responder a uma tal pergunta (…) pedem-te que saibas renunciar ao saber” (5), pois a poesia não se sabe a partir do conhecimento e do pensamento, mas apenas aprende-se del cuore, de cor, de coração:
Ela vê-se ditada, a resposta, sendo poética. E, por isso, tendo de se dirigir a alguém, singularmente a ti, mas como se se dirigisse ao ser perdido no anonimato, entre cidade e natureza, um segredo partilhado, a um tempo público e privado, absolutamente um e outro, absolvido de fora e de dentro, nem um nem outro, o animal lançado na estrada, absoluto, solitário, enrolado em bola junto de si. (5)
A poesia já funciona, assim, nessa zona de espessamento de limites, de passagem de fronteiras, de forma a justificar a potência do poético e da narrativa para a discussão de uma questão também ela fronteiriça e fugidia, movida por embaralhamentos e deslocamentos contínuos. A ficção estaria, assim, sempre no espaço desse “a seguir” derridiano, mobilizadora de possibilidades para o pensamento zoo, ética e esteticamente:
Se eu sigo esta sequência, e tudo no que me preparo a dizer deveria reconduzir à questão de que o ‘seguir’ ou ‘prosseguir’ quer dizer, e ‘ser depois’, e à questão do que faço quando ‘eu sigo’, e digo ‘eu sou’, se eu sigo esta sequência, aí então me transporto dos ‘fins do homem’, portanto dos confins do homem, à ‘passagem das fronteiras’ entre o homem e o animal. Ao passar as fronteiras ou os fins do homem, chego ao animal: ao animal em si, ao animal em mim e ao animal em falta de si-mesmo, a esse homem de que Nietzsche dizia, aproximadamente, não sei mais exatamente onde, ser um animal ainda indeterminado, um animal em falta de si-mesmo. (Derrida, O animal 14-15)
É esse o movimento que com tanta força faz reverberar as conferências de Coetzee, dupla sinalização da questão, simultaneamente saber filosófico e pensamento poético, absolutamente um e outro, e por isso nem um nem outro. Como reagir a esse texto, a benção que antecede e simultaneamente corporifica o saber? O filósofo não sabe como reagir ao deslocamento das fronteiras – “prefiro deixar a verdade e a ficção bem separadas” (Singer 103) – nem à possibilidade do artifício trazida pela ficção – “Mas será que são argumentos de Coetzee? Esse é o problema. Por isso é que eu não sei como fazer a réplica dessa pretensa palestra. São os argumentos de Costello. O recurso ficcional de Coetzee permite que mantenha distância desses argumentos. E tem essa personagem, Norma, nora de Costello, que faz todas as objeções óbvias aos que Costello diz. É um recurso maravilhoso, na verdade” (Singer 109). Como responder ao que parece artifício, ao que se coloca como poesia e pensamento, ao que invade as fronteiras do espaço do pensamento científico e o contamina com a falta, com a inconclusão? Ele opta, como única alternativa possível, por responder com outra narrativa.
Por isso cabe à poética o pensamento do animal, por ela possibilitar que se produzam essas “palestras enganosamente transparentes” (Garber 89) proferidas por Coetzee em Princeton, nas quais um escritor nos apresenta a narrativa de uma escritora que fala sobre os animais e a relação dos homens com os animais e que afirma que “os escritores nos ensinam mais do que sabem” (Coetzee 63). Porque “o poema chega-me, benção, vinda do outro. Ritmo mas dissimetria”, “apenas uma contaminação, tal e tal cruzamento, este acidente. Esta volta, a reviravolta desta catástrofe” (Derrida, Che cos’è 9), porque a ficção embaralha assim o um e o outro, o homem e o animal, a poesia e a filosofia, é que é possível a seguinte afirmação: “Nessas duas elegantes palestras, pensamos que John Coetzee estivesse falando de animais. Seria possível, porém, que o tempo todo ele estivesse perguntando: ‘Qual o valor da literatura’?” (Garber 101).
Retomemos nosso fio nesse labirinto de fronteiras multiplicadas em que não há limites a serem ultrapassados. A imagem exclusiva da cidade humana não é a cidade da qual foram expulsos sistematicamente todos os animais. Eles nos acompanham desde a origem. A imagem exclusiva da cidade humana é a cidade da qual retomam a posse os animais da zoologia dos sonhos borgiana, é a cidade que sempre pertenceu a eles, é a última Teodora apresentada por Calvino. O “próprio” do homem, assim, evoca o animal, a ficção e o pensamento, num movimento complexo que os coloque sempre num espaço de passagem, espaço este potencializado pela poética, capaz de lhes possibilitar o solo comum e o cuore de onde possam ser ditos, repetidos e recriados constantemente.
Notas
1Em O animal que logo sou? Derrida vai retomar esse texto, publicado originalmente em 1988, no qual ao discutir a questão da poesia já se vale da figura animal do ouriço como elemento chave para sua argumentação.
REFERÊNCIAS
Agamben, Giorgio. “O fim do pensamento”. Terceira Margem. 2004. Centro de Letras e Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro. 7 de novembro de 2008.
Berger, John. “Por que olhar os animais?” Sobre o olhar. Barcelona: Gustavo Gilli, 2003: 11-32.
Calvino, Italo. As cidades invisíveis. São Paulo: Cia. das Letras, 2004.
Coetzee, J. M. A vida dos animais. São Paulo: Cia. das Letras, 2003.
Derrida, Jacques. Che cos’è la poesia? Coimbra: Ângelus Novus, 1992.
____________. O animal que logo sou. (A seguir). São Paulo: Ed. UNESP, 2002.
Garber, Marjorie. “Reflexões”. A vida dos animais. J. M. Coetzee. São Paulo: Cia. das Letras, 2003: 86-101.
Gutmann, Amy. “Introdução”. A vida dos animais. J. M. Coetzee. São Paulo: Cia. das Letras, 2003: 7-16.
Lyotard, Jean-François. A condição pós-moderna. Rio de Janeiro: José Olympio, 2002.
Maciel, Maria Esther. O animal escrito: um olhar sobre a zooliteratura contemporânea. São Paulo: Lumme Editor, 2008.
Singer, Peter. “Reflexões”. A vida dos animais. J. M. Coetzee. São Paulo: Cia. das Letras, 2003: 102-110.
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