ENTRE AUTORIA E PLÁGIO: DA HETEROGENEIDADE DO DIZER NO ARQUIVO LITERÁRIO

Roselene de Fátima Coito

Universidade Estadual do Oeste do Paraná

 

 

As árvores me começam.
Manoel de Barros

INTRODUÇÃO

Pensando na literatura como objeto construído e constituído, que fala de um lugar diferente mesmo estando junto às práticas discursivas do momento, e que tem um discurso específico na sua própria construção e na construção dos sujeitos, ela [a literatura] se desvincula de uma visão puramente ideológica no sentido de engajamento explícito. No entanto, ela pode representar, na ordem do seu discurso, a instância negativa do poder, ou seja, a literatura pode desvelar, no fio do discurso, a coerção do sistema sobre os sujeitos e revelar que o texto literário pode provocar o efeito de sentido de cumplicidade do escritor com o leitor, mas não com as instâncias do poder social que interditam seres e dizeres.

Esse desvelamento, que acontece também no discurso literário, encontra-se nas heterogeneidades enunciativas. De acordo com Jacqueline Authier-Revuz, há a heterogeneidade constitutiva e a heterogeneidade mostrada marcada e não-marcada. A primeira é aquela que se encontra no fio do discurso, ou seja, no interdiscurso, enquanto que a segunda, que se divide em marcada e não-marcada – enquanto a primeira se constitui de citações, alusões, intertextos etc, a segunda se constitui de discurso indireto livre, ironia, metáfora, jogos de palavras as quais representam a incerteza que caracteriza a referência ao outro.

Jacqueline Authier-Revuz, no primeiro momento de sua pesquisa, parte do conceito de dialogismo bakhtiniano para discutir as heterogeneidades e diz que:

 

O ‘dialogismo’ do círculo de Bakhtin, como se sabe, não tem como preocupação central o diálogo face a face, mas constitui, através de uma reflexão multiforme, semiótica e literária, uma teoria da dialogização interna do discurso. As palavras são, sempre e inevitavelmente, ‘as palavras dos outros: […]  (Authier-REVUZ 26)

 

Com esse estudo, Authier-Revuz pretende mostrar que “a ilusão que se manifesta no discurso não apaga radicalmente o que ela tenta reprimir; […]” e, também, que “a atenção às formas concretas da representação da enunciação, que são, entre outras, as formas da heterogeneidade mostrada, pode contribuir, no âmbito do discurso, para manter a distinção entre o eu pleno e o sujeito que, ele, atropela […]” ( 36).

Por isso, por meio do estudo das heterogeneidades, podemos sentir a palavra do outro, a alteridade, no discurso do eu, cindido. A alteridade que tem o interdiscurso como condição de linguagem é, para Bakhtin, o princípio da interação, que implica na questão de autoria.

 

  1. DA AUTORIA AO ARQUIVO

 

Se na heterogeneidade mostrada, no âmbito do discurso, a distinção entre o eu pleno e o sujeito que ele [o eu pleno] atropela revela as formas concretas da representação da enunciação, conforme vimos em Authier-Revuz, para Michel Foucault, filósofo francês, essa forma concreta de representação se apresenta como uma função discursiva.

Foucault atribui ao conceito de autor uma função, isto é, o autor não é um indivíduo, mas “serve para caracterizar um certo modo de ser do discurso” (FOUCAULT 45). O autor é uma função discursiva, um princípio organizador dos discursos que pode se dar explicitamente por meio de uma assinatura ou pode se dar de maneira implícita, em uma autoria coletiva.

De acordo com Foucault, “[…] a função autor é, assim, característica do modo de existência, de circulação e de funcionamento de alguns discursos no interior de uma sociedade”, embora pode-se “encontrar através dos tempos uma certa invariável nas regras de construção do autor” (46 e 51). No entanto, historicamente, a questão da autoria passou por uma inversão nos campos literário e científico, pois somente no século XVII ou no XVIII “começou-se a receber os discursos científicos por si mesmos, no anonimato de uma verdade estabelecida ou constantemente demonstrável”, ao passo que, “os discursos literários já não podem ser recebidos se não forem dotados de uma função autor” (49-50).

O que se pode depreender desse conceito de função autor é que há uma série de operações específicas e complexas não de um indivíduo real, pois que esse indivíduo ocupa várias posições-sujeitos que dão lugar a vários “eus” que se manifestam de uma mesma maneira em todos os gêneros – rascunhos, cartas, fragmentos.

De acordo com José A Bragança de Miranda e Antonio Fernando Cascais², Derrida, em seu livro Otobiographies, diz que

 

A biografia não é um meio de unir a vida e a obra, mas ‘um discurso sobre a vida/a morte que ocupa um certo espaço entre o logos e o drama’; a biografia procura dominar esta relação, apresentando como sujeito absoluto o que é apenas um sujeito possível. … A singularidade tem a ver com esta indomesticabilidade da morte, que estabiliza a biografia ao mesmo tempo que faz dela uma dada forma de abertura das categorias abstratas do sujeito, do autor, etc. (apud Foucault 12)

 

Por isso, o sujeito do discurso – uma categoria abstrata do discurso -, inscreve-se na materialidade do texto que se configura em gêneros discursivos diferenciados. De acordo com Gregolin, temos que:

 

os gêneros, materialização textualizada dos discursos, estão, por isso, em constante redimensionamento e reconfiguração e a interpretação de um texto deve ser feita dentro do amplo domínio dos campos discursivos que o circundam pois nenhum texto esgota-se em si mesmo. (1998, 11-19)

Estando os gêneros em constante reconfiguração, a produção de sentidos acontece na negociação entre autor e leitor, autor tomado como uma instância discursiva que pode se revelar como assinatura explícita, tratando-se do texto literário nos dias atuais, pois “buscar a relação entre obra literária e sociedade significa desvendar o que ela propicia enquanto portadora de um conhecimento que vai ser interpretado pelos leitores e levá-los ao reconhecimento da identidade/alteridade” (17). Por isso, pensar a literatura enquanto portadora de um conhecimento, permite-nos dizer que a literatura é um dos arquivos que circulam na sociedade.

Sendo o arquivo, para Foucault, um sistema geral da formação e da transformação dos enunciados, podemos tomá-lo como algo que nos permite compreender os discursos como uma regularidade específica, ou seja, ao mesmo tempo em que o arquivo é “a lei do que pode ser dito”, é também o agrupamento de figuras distintas, é a possibilidade de relações múltiplas, é o sistema que rege o aparecimento dos enunciados como acontecimentos singulares.

No entanto, o arquivo, diferentemente das concepções do termo memória na tradição histórica e lingüístico-filológica, dá-se “por fragmentos”, não é totalizante e acabado e nem composto por uma massa amorfa do dizer, já que os discursos, a partir do desenvolvimento e do controle de suas possibilidades, deixam de ser nossos. Por isso, por meio das práticas discursivas, são instaurados enunciados como acontecimentos – condições e domínio de aparecimento – e como coisas – possibilidade e campo de utilização – que num sistema de enunciados são chamados por Foucault de arquivo.

Essa noção de arquivo faz com que tenhamos o discurso não como algo que apresente apenas um sentido e uma verdade, mas uma história e uma história específica, a história do devir do discurso como “pontos de junção, lugares de inserção, de irrupção ou de emergência […]” (FOUCAULT, Arqueologia do Saber 151), ou seja, como práticas discursivas que são descritas, na arqueologia foucaultiana, como elementos constituintes do arquivo.

Aproximando-se a noção do tempo agostiniano dessas práticas discursivas que irrompem dadas as possibilidades e as condições do discurso, podemos dizer que o arquivo para Foucault é esse presente eternizado do dizer, que na emergência do acontecimento vai construindo o discurso como história, uma história, que na sua regularidade do dizer forma um conjunto de escritos permeados de historicidade.

Se no conjunto de escritos pode-se encontrar o autor, também nele (no conjunto de escritos) pode-se encontrar o leitor que, ao interpretar o texto, institui-se como co-autor; também por tomar o autor como leitor de vários textos que o antecederam, temos um co-leitor. Portanto, ciclicamente há um deslocamento de posições.

Tomando a co-autoria como um deslocamento do autor, Gregolin propõe que:

 

a autoria é uma evidência a indicar o espaço ideológico que sustenta as falas que são ouvidas no texto. Dependendo desse espaço, o autor pode estar mais ou menos presente/ausente do texto. Continua a autora, […] ele [o autor] pode esconder-se para afirmar sua autoridade ou mostrar-se para dispersar sua autoridade. (17)

 

A participação do autor e do leitor instaura, assim, um jogo enunciativo, que pode provocar a rarefação da autoridade quando o texto produzido e que produz sentidos constrói, por meio das estratégias discursivas, uma interlocução indagatória e essa indagação faz com que novos dizeres irrompam no devir do dizer literário, fazendo com que os sujeitos do discurso assumam novas posições no texto.

 

  1. DO ARQUIVO À POSSIBILIDADE DO PLÁGIO

 

Ao discutirmos o deslocamento de posição-leitor quando este passa a assumir a função-autor, pautar-nos-emos no texto As frangas de Caio Fernando Abreu, escritor brasileiro, gaúcho, e Leitura do ovo de André Ricardo Aguiar, escritor brasileiro, paraibano.

Caio Fernando Abreu começa sua narrativa com o seguinte enunciado:

 

Acho que a melhor história de galinhas que eu conheço chama-se ‘A vida íntima de Laura’. Laura era uma galinha, claro. Lendo esse livro você vai descobrir que as galinhas também têm uma vida íntima. Quem contou a história de Laura foi uma grande escritora, a Clarice Lispector. Ela entendia muito de galinhas […]. (Abreu 4)

 

E André Ricardo:

 

Leitura do ovo (desentranhada de uma prosa de Clarice Lispector). (Aguiar 44)

 

Como vimos, os autores citam Clarice Lispector e nos dão a certeza de que são leitores da autora. No caso de Caio Fernando Abreu, As Frangas direciona-se ao público infantil e é uma narrativa; e, Leitura do ovo, de André Ricardo Aguiar, dirige-se ao público adulto e é um poema.

Mesmo tendo ciência das diferenças que constituem tais textos e do possível público alvo, nosso questionamento não se invalida, pois, nesse momento, nossa preocupação é refletir sobre o limite entre autoria e plágio quando o sujeito produz um deslocamento de posição discursiva e assume uma outra função com e diante da leitura. Para tanto, pautar-nos-emos em Michel Schneider (1990) e Harold Bloom (1973) para pensarmos o plágio e retomarmos à questão da autoria.

Michel Schneider assevera que seu livro Ladrões de palavras pretende discutir três pontos básicos: prioridade, autoridade e propriedade, sem, contudo, esquecer dos sofrimentos que eles podem causar. De acordo com este autor, “no domínio literário […] o autor é alguém que escreve primeiro um livro original do qual é proprietário”, ao passo que, na análise “não se procura senão aquilo que já se encontra, não se possui nada da descoberta pungente de que o que nos possui são justamente os objetos que procuramos” (SCHNEIDER 16).

Refletindo sobre essas palavras de Schneider, é possível deduzir que escrever e ler para este estudioso são atos diferenciados, sendo que os gestos de leitura é que determinarão a originalidade que confere o direito de autoridade e propriedade ao autor. Além disso, Schneider, como podemos ver no enunciado que foi destacado, toma o autor como uma instância discursiva plena, isto é, a autor é uma pessoa que produz um texto que nunca antes foi produzido e por isso tem autoridade naquilo que diz e consequentemente tem direito à propriedade daquilo que produziu. No entanto, quando trata do leitor – na análise – o texto vem com marcas de outros textos, fato este que o próprio Schneider reconhece como sofrimentos que os pontos básicos- prioridade, autoridade e propriedade- podem causar.

Já Arthur Nestrovski, na apresentação do livro A Angústia da Influência – Uma Teoria da Poesia (1973), sugere que Harold Bloom tem como objetivo meditar sobre a desapropriação entre poemas, ou seja, uma “desleitura” calcada em “seis estágios mais ou menos arbitrariamente definidos da relação entre um poeta e seu precursor”, descritos por Bloom em termos tomados de empréstimo a uma variedades de fontes clássicas definidas como:

 

clinamen é a desleitura propriamente dita, a descrição mais geral do desvio de um poeta em relação à obra de seu antecessor; tessera, palavra ancestral que Bloom encontra em Lacan, é a complementação do precursor na obra do poeta novo; Kenosis é o esvaziamento do poeta, um mecanismo de ruptura semelhante às defesas contra as compulsões de repetição; demonização é um deslocamento na direção do contra-sublime, isto é, de um sublime contrário ao do seu precursor; askesis é um truncamento de certas qualidades do poeta mais novo, uma ascese que permite ao poeta, afinal, interpretar seu precursor; e, por último, apophrades é o retorno dos mortos, a apropriação do poeta mais velho, o retorno do precursor como se fosse, ele mesmo, obra do poeta mais novo.  (Bloom 19).

 

Muito embora Nestrovski traduza cada definição acima em termos lingüísticos, consideramos necessário mantermos os conceitos arrolados por Bloom, pois para cada linha específica da ciência da linguagem e até para a época dessas definições essa nomenclatura pode variar. No entanto, pensamos ser adequado pontuar algumas diferenças entre cada abordagem dos autores aqui citados. Schneider e Bloom não percorrem o mesmo percurso quando tratam da questão sobre o plágio. Aliás, fazem o percurso contrário: enquanto Schneider discute a apropriação, Bloom focaliza a desapropriação; o primeiro volta-se mais para a escritura enquanto que o segundo toma a leitura propriamente dita. Além disso, Schneider tem como base teórica Freud, principalmente na segunda parte de seu livro – comunismo das idéias – ao passo que Bloom – chamado de humanista que perdeu a inocência por estar em guerra com o niilismo sereno da desconstrução – tem uma relação complexa com a psicanálise freudiana especialmente quando reflete sobre a influência, pois segundo Nestrovski (23),

 

a importância de Freud para o pensamento de Bloom é imensa, mas qualificada por uma leitura vigorosa e resistente a ponto mesmo de desviar, ou inverter, em muitos pontos, a direção da influência.

 

Refletiremos sobre o plágio ora partindo de Schneider ora de Bloom, procurando resguardar as diferenças entre ambos e nos utilizando do que for pertinente ao literário. No trabalho de ambos permanece a questão: existe um limite entre autoria e plágio?

Num primeiro momento, poderíamos partir do óbvio, como bem arrolou Schneider: “Não haveria plágio se não houvesse autores”. Note-se que ele diz “autores” (42) e não autor, o que implica dizer que o plágio não acontece de um texto para outro texto e sim de vários textos para um texto. Isso pode nos levar a pensar que o leitor beira todas as margens para que seu discurso seja constituído de vários discursos, inclusive do seu autor preferido, mesmo quando “escrever é tornar sua a linguagem” (45) e mesmo que seja “difícil decidir o que é e o que não é plágio” (66). Nesse caso pergunta-se: se não há o limite, autor e plagiário são uma mesma figura? Por que, então, o plágio passou a ser uma causa jurídica?

Consegue-se detectar o limite entre o autor e o plagiário, na perspectiva dos discursos produzidos, num gesto de leitura, isto é, saber o lugar de onde cada qual parte, se seguirmos a linha de Schneider. Se se partir do livro interior – termo utilizado por Schneider – para o exterior, o escritor se configura como autor; se for o contrário, como copista ou plagiário, pois, mesmo sendo “a prática do plágio permitida e lícita e até recomendada por respeito à tradição, passa a ser ilegal, nas Letras, por volta de 1810 – 1830 – século XIX – por ser considerado um ato de roubo de texto” (42). Nos dias atuais, juridicamente, os limites são bastante tênues e talvez somente a data cronológica poderá dizer quem plagiou e quem foi plagiado. Mesmo assim, não podemos descartar o fato de que livros tecem livros, autores tecem autores, que o livro é um feixe de relações, no entender de Foucault (1986).

 

  1. DA ANÁLISE DA HETEROGÊNEIDADE DO DIZER

 

Pensando no livro como feixe de relações, nos autores como reinaguradores de discursividade, na reutilização e reatualização do discurso, tomaremos A vida íntima de Laura – de Clarice Lispector para refletir sobre a função e sobre os enunciados-réplicas desse leitor que se enreda – ou se perde – às margens do fio de um enunciado povoado de outros enunciados e que provoca o misterioso nascimento de outro enunciado e de outro autor enquanto aquele que ao mesmo tempo em que se constitui de discursos por discursos é constituído.

Para exemplificarmos tais reflexões usaremos citações que são pertinentes pelas suas muitas possibilidades de análise. Trabalharemos, primeiramente, com os enunciados de A vida íntima de Laura, escrito por Clarice Lispector, e As Frangas, escrito por Caio Fernando Abreu, procurando discutir o limite em que essas margens enunciativas se anunciam. A seguir, discutiremos as relações entre Leitura do ovo de André Ricardo Aguiar e a temática do “ovo” na obra de Clarice Lispector.

Apenas para localizar o porquê desta reflexão, faremos uma síntese de A vida íntima de Laura e de As frangas.

A vida íntima de Laura, escrito por Clarice Lispector em 1974, conta a história de uma galinha que se chama Laura e que vive o drama de ser ou não comida, ao molho pardo, pelos seus donos. Esse drama de Laura é entremeado por muitas situações indagatórias de se saber na vida e de saber a vida como uma aventura repleta de contradições. Essas situações se revelam nas estratégias discursivas também pela interferência do autor, enquanto instância discursiva, quando faz perguntas ao seu leitor e confessa não ter todas as respostas, como no exemplo abaixo:

 

Você sabe que Deus gosta de galinha? E sabe como é que eu sei que Ele gosta? É o seguinte: se Ele não gostasse de galinha Ele simplesmente não fazia galinha no mundo. Deus gosta de você também senão Ele não fazia você. Mas por que faz ratos? Não sei.  (Lispector  s/p)³

Esse texto todo de Clarice é construído com estratégias discursivas que permitem uma interlocução direta com seu leitor imaginário e nessa interlocução muitas perguntas ficam sem respostas. Também o que se percebe é que, neste texto, Clarice instiga seu leitor a ocupar a posição de autor, como podemos notar no último enunciado de A vida íntima de Laura:

 

Se você conhece alguma história de galinha, quero saber. Ou invente uma bem boazinha e me conte […].   (Lispector  s/p)

 

 

Este pedido de Clarice é atendido pelo seu leitor Caio Fernando Abreu. Este autor produz um texto em que as figuras principais são galinhas, as quais ele denomina de frangas. Contrariamente à galinha Laura, que é um animal que vive no quintal da casa da Dona Luísa, as frangas de Caio são enfeites que ficam sobre a geladeira de sua casa. Contudo, tanto em A vida íntima de Laura  quanto em As Frangas, o núcleo da história é a vida dessas galinhas.

Em As Frangas de Caio Fernando Abreu, no primeiro enunciado após a laudatória, temos:

 

Pois como eu sei umas histórias de galinhas bem engraçadas, vou tentar contar elas pra Clarice e pra vocês, certo?       (Abreu s/d)

 

 

Nessa apresentação, Caio Fernando Abreu deixa explícito que seu livro será uma resposta ao livro de Clarice, convidando o leitor criança a ler também aquele que precede esse. Em Caio Fernando Abreu, temos:

 

Acho que a melhor história sobre galinhas que eu conheço chama-se A vida íntima de Laura. Laura era uma galinha, claro. Lendo esse livro você vai descobrir que as galinhas também têm uma vida íntima. Quem contou a história de Laura foi uma grande escritora, a Clarice Lispector. Ela entendia muito de galinhas. De gente também. Bem no finzinho lá do livro dela, a Clarice diz assim: “Se você conhece alguma história de galinha, quero saber. Ou invente uma bem boazinha e me conte”. Foi por isso que eu resolvi escrever esta história. (s/d)

 

Esse escritor, após a confissão da resposta, reinaugura o enunciado anterior propondo que se mude a maneira de falar em galinhas, mesmo utilizando-se de estratégias semelhantes às de Clarice Lispector na construção do seu texto, ou seja, a estratégia de dialogar, por meio do texto e no texto, com seu leitor imaginário, como podemos observar também no enunciado abaixo:

 

Mas antes de começar tenho que explicar que gosto muito mais de chamar galinha de franga do que de galinha. Por quê? Olha, pra dizer a verdade nem sei direito. … Mas se você quiser dizer que é uma história de galinhas, tudo bem. Pode dizer, eu não me importo. (s/d)

 

Caio começa sua narrativa com uma explicação, tal qual Clarice, e como a autora começa a travar um elo de cumplicidade entre autor/leitor, só que Caio com um efeito de uma atitude responsiva tanto ao texto de Clarice quanto à provocação desta mesma atitude aos seus “novos leitores”, enquanto que Clarice se utiliza de uma estratégia em que a atitude responsiva é, em primeiro lugar, uma indagação consigo mesma, mesmo estendida ao seu enunciatário – leitor imaginário -, como podemos ver nos enunciados de Caio e de Clarice, respectivamente:

 

A Gabi é boa gente, não fica chateada. O divertimento principal dela é ensinar coisas para a Maria Rosa, a Maria Rita e a Maria Ruth.
Que coisas ela ensina? Ah, são coisas bem de franga. Pra gente pode parecer até meio besta, mas pra uma franga é interessantíssimo, quer ver?
Grão de milho, por exemplo, tem um jeito certo de bicar. […] Só que, como a Maria Rosa, a Maria Rita e a Maria Ruth só pensam em comer, acham da maior importância. E deve ser mesmo. (Abreu 32)

 

Vou logo explicando o que quer dizer “vida íntima”. É assim: vida íntima quer dizer que a gente não deve contar a todo mundo o que se passa na casa da gente. São Coisas que não se dizem a qualquer pessoa. Pois vou contar a vida íntima de Laura. Agora Adivinhe quem é Laura. Dou-lhe um beijo na testa se você adivinhar. E duvido que você acerte! Dê três palpites. Viu como é difícil? (Lispector s /p)

 

Por que será que Laura fica o dia inteiro bicando a terra e procurando comida? Não pode ser por tanta fome, pois a cozinheira de Dona Luísa lhe dá muito milho. Vou contar um segredo de Laura: ela come por pura mania. Come cada porcaria! Mas não é tão burra assim. Por exemplo: não come pedaço de vidro. Sabida, hein? (Lispector s/p)

 

Conforme pode-se perceber através dos trechos selecionados, para esta breve reflexão sobre autoria e plágio, Caio vai sempre reatualizando o discurso de Clarice, numa tentativa de lhe responder, por meio da história com estratégias semelhantes de construção, mas com enunciados diferenciados, as indagações que lhe foram feitas. Clarice Lispector abriu, com seus enunciados, possibilidades de enunciadores ulteriores escreverem uma nova história; Caio, como Clarice, propõe ao seu enunciatário que também escreva uma história, mas, ao mesmo tempo, lhe sugere que escrever é uma forma de se sentir amado quando re-conhecido por meio do texto que produziu, como podemos ver:

 

Se você quiser, invente uma história e mande para mim. Se for história de franga, melhor ainda. Prometo ler pra elas ouvirem…
[…] Aí, pra ser gostado, a gente escreve histórias. Você gostou desta? Daí está tudo certo, porque então você gostou de mim e eu gostei de você também.
Qualquer dia conto outra, combinado? (Abreu  46)

Para concluir essa primeira reflexão, podemos dizer que Caio Fernando Abreu, mesmo sob forte influência de enunciados antecessores, inaugura a discursividade ao mesmo tempo em que remete seu leitor a leituras passadas, construindo uma memória discursiva que interroga o já-dito, como uma desleitura que se dá como clinagem– desvio de um poeta em relação à obra (texto) de seu antecessor – e, simultaneamente, como tessera – complementação do precursor na obra (texto) do poeta novo, pois as galinhas da história de Caio Fernando Abreu não são seres vivos, o que poderia ser considerado um desvio e, também, a história As Frangas ser uma espécie de réplica aA vida íntima de Laura.

Já André Ricardo Aguiar, em um texto que segue outro percurso de enunciação e atinge outro tipo de público leitor pela elaboração dos enunciados, provoca uma indagação teórica sobre a questão da influência da sua antecessora. Seu poema é uma síntese da reflexão teórica de tudo o que aqui veio sendo discutido. Primeiro transcreveremos a poesia e depois a analisaremos:

 

Leitura do ovo
(desentranhada de uma prosa de Clarice Lispector)

 

Quem vê o ovo,
perde-se

 

verdade redonda
só que inversa
de clara
alusão e dor

 

o ovo
suspende-se
– terraço sóbrio
– de ser assunto
de sustos

 

sua grandeza:
não pode ser
o que é,
violento algo

 

pois que é um susto,
tão ávido.

(Aguiar 44)
Lendo o título do poema, o próprio autor tem como sua fonte de reflexão a escritura de Clarice Lispector. Pode-se afirmar isso tanto pela explicitação de que a poesia é fruto da leitura de textos claricianos – desentranhada de uma prosa de Clarice Lispector – como do próprio título do poema: leitura do ovo.

A figura do ovo e da galinha são constantes nas produções claricianas, tanto nas suas produções direcionadas ao público adulto quanto infantil. O grande mistério da vida é a própria vida, tanto que quando indagada em uma entrevista sobre o conto que escreveu “O ovo e a galinha”, a autora disse não saber o porquê desse conto, como não saber se quem nasceu primeiro foi o ovo ou a galinha. Além disso, permitindo-nos um devaneio metafórico na figura do ovo composta de gema e de clara, podemos inferir que, tal qual esse composto, o escritor e o leitor ao mesmo tempo em que estão juntos, estão separados. Ao mesmo tempo em que são feitos no mesmo lugar e da mesma matéria, não são os mesmos. Ler o ovo é ler o outro e ler a si mesmo e ler o outro em si mesmo e se ler no outro. É o sofrimento e a causa de danos; é ser alguém que escreveu um texto original e que por isso tornou-se seu proprietário, mas que ao mesmo tempo esse texto original já está em outro texto original; é um perder-se no ovo.

Por isso, podemos dizer que na primeira estrofe, o perder-se no ovo, tão presente quanto a galinha em Clarice Lispector, dá as primeiras pistas do tipo de leitura que o leitor pode fazer dos/nos textos dessa autora. Ver usado como metáfora do ler, como se esse ver/ler fosse a palavra suscitando imagens que, na segunda estrofe, são de inversa clara alusão e dor. No entanto, essa clara alusão e dor vêm de uma verdade redonda. Verdade redonda, aqui, representando o próprio ser da poesia: a circularidade e a síntese, o próprio ovo.

Inversa, podendo ser lida como um jogo ambíguo: inversão como desleitura e como Clarice em poesia, em verso – tal como o ovo e seu mistério, a escritura circular – as inúmeras tentativas de retomada do já-dito reatualizado na palavra poética. Nesse sintetismo poético, as palavras alusão dor remetem à influência de outros autores e à angústia do escritor no ato da escrita. O ovo – Clarice escritora e André Ricardo leitor-escritor e o ovo poesia – terraço sóbrio de ser assunto de sustos.

Assunto de sustos no momento em que o ovo suspende-se, ou seja, quando o ato de escrever começa a instigar o leitor no seu ato de ler. O ato instigante do autor revela sua grandeza: não poder ser a palavra violento algo – para quem escreve – e nem ser sentimento de alusão e dor para quem lê, pois que é susto e sede de leitura.

Portanto, nessa poesia rica em polissemia, vemos o leitor poeta em sua função efeito-leitor questionando o fazer poético ao reatualizar no acontecimento de sua volta o discurso clariciano, em uma perspectiva que permite que a comunicação verbal se revele como, de fato, uma interação, no sentido bakhtinano.

Considerando-se os dois textos e resguardando as respectivas diferenças entre ambos, parece-nos apropriado dizer que a reatualização do poético de Clarice na poesia de André Ricardo Aguiar, não demonstra apenas a origem de sua fonte de reflexão, mas uma reflexão que inaugura uma “nova origem”: a imagem da poesia que é a busca da palavra própria na própria palavra, no seu enunciado, nas margens povoadas de enunciados claricianos, que de tão provocativos permitem que enunciados ulteriores sejam originados e reatualizados num jogo responsivo.

 

  1. DE UMA POSSÍVEL CONCLUSÃO

 

Caio Fernando Abreu ainda se deixa prender, em As Frangas, por efeitos reitores – termo utilizado por Foucault como “enunciados bússolas” – de Clarice, quando tem uma estratégia semelhante de construção textual e quando traz, na história, memórias tópicas – bem localizadas no texto anterior-interior, revelando que seu dizer se constitui de uma heterogeneidade que se dá no fio do discurso e, ao mesmo tempo, na interioridade desta exterioridade discursiva, conforme preconizou Jacqueline Authier-Revuz.

Já André Ricardo Aguiar eleva esses enunciados a dimensões de interpretação imprevisíveis em um dizer heterogêneo não-marcado, quando produz em seu dizer alusões a todas as histórias de Clarice Lispector as quais trazem a inquietação da origem da vida estendida a escrita como aquilo que dá vida e traz a vida ao se materializar no texto literário.

Finalmente podemos dizer que, os autores Caio Fernando Abreu e André Ricardo Aguiar, cada qual em seu gênero discursivo, trazem para o leitor as margens de um fio que tece o ovo e que se torna memória de memórias passadas – na angústia da influência, presentes – a agoridade do discurso clariciano – e futuras – fontes de leitura que darão origem a outras fontes -, demonstrando que a historicidade do discurso, no seu efeito-leitor, transforma-se em efeito-autor e monumentaliza o texto, fazendo da memória um acontecimento. E por fazerem desta memória tecida de dizeres heterogêneos reatualizados um acontecimento, podemos dizer que os textos de Clarice Lispector aqui pontuados instituem-se como um arquivo – formação de dizeres novos e transformação de dizeres – que constrói leitores e os constituem em autores, quando esses dizeres não são a mera repetição do dizer anterior e sim a ressignificação do já-dito.

 

NOTAS

1 – Prefácio “a lição de Foucault” In: de O que é um autor.  Trad. Antonio Fernando Cascais et al.  4.ed.  Porto: Vega, 2000.
2 – Os livros infantis de Clarice Lispector não apresentam numeração de páginas.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

ABREU, Caio Fernando. As Frangas. Rio de Janeiro: Globo, 1989.

AGUIAR, Ricardo André. “Leitura do ovo”. In: Alvenaria. João Pessoa: editora Universitária – UFPB, 1994, p. 44 (prêmio novos autores paraibanos)

AUTHIER, REVUZ, Jacqueline. Heterogeneidade(s) enunciativa(s). Cadernos Linguisticos. Campinas, São Paulo: Editora da Unicamp, 1990.

BLOOM, Harold. A angústia da influência: uma teoria da poesia. Trad. e apresentação Athur Netrovski. Rio de Janeiro: Imago, 1973.

FOUCAULT, Michel. O que é um autor? Lisboa: Veja, 1982.

____. A Arqueologia do Saber. Trad. Luiz Felipe Baeta Neves. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1986.

GREGOLIN, Maria do Rosário. “O autor, o texto, o leitor: em torno de o lobo e o cordeiro”. Revista JELL, Marechal Cândido Rondon, 1998, p. 11-19.

LISPECTOR, Clarice. A vida íntima de Laura. 12 ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1991.

SCHNEIDER, Michel. Ladrões de palavras– ensaio sobre o plágio, a psicanálise e o pensamento. Trad. Luiz Fernando P. N. Franco. Campinas: Editora da Unicamp, 1990. (Coleção Repertórios)
 

 

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