Universidade Federal de Sergipe
Em uma crônica escrita nos anos 30, Graciliano Ramos (1892-1953) avaliava as possíveis relações entre as secas no Nordeste e o parco desenvolvimento da economia regional. Segundo ele, o cidadão estrangeiro que não tivesse informações sobre o Brasil, que desconhecesse o país e lesse “um dos livros que a nossa literatura referente à seca tem produzido, literatura já bem vasta, graças a Deus, imaginaria que aquela parte da terra que vai da serra Ibiapaba a Sergipe, é deserta, uma espécie de Saara”. Como outros literatos e jornalistas, o autor não disfarçava o descontentamento com as impressões negativas transmitidas pela região. Atribuía isto ao trabalho dos ficcionistas do século XIX e criticava o enfoque demasiadamente romântico conferido à seca, em detrimento de outros fatores de penúria local: “certamente há demasiada miséria no sertão, como em toda a parte, mas não é indispensável que a chuva falte para que o camponês se desfaça dos filhos inúteis”. A seca, continuava Ramos, “é apenas uma das causas da fome” (Ramos, Linhas Tortas 132).
Esta mesma sensação de desconforto demonstrada por Graciliano diante da idéia do sertão como um espaço de miséria e atraso econômico provocou defesas de inúmeros letrados. Através de crônicas, contos e romances que produziram alguns símbolos e heróis destinados a responder afirmativamente ao chamado dos “tempos modernos”, apareceram leituras “positivas” para o Nordeste e seus habitantes. Em meio a estas interpretações, este artigo propõe a observação da montagem e da circulação de representações sobre Delmiro Gouveia em alguns textos produzidos no século XX. Crônicas, memórias, ensaios, romances, todos referências influentes na elaboração da memória do industrial e no combate ao “profundo esquecimento” que teria se abatido sobre Delmiro, conforme diagnóstico do próprio Graciliano), feito na crônica “Recordações de uma indústria morta” (Viventes das Alagoas 116). Acompanhando a idéia de um eclipse na memória de Gouveia, lançada não apenas por Graciliano, diversos intelectuais se empenharam em transformá-lo num “mártir”. Mas, afinal de contas, quem foi Delmiro Gouveia?
Delmiro Augusto da Cruz Gouveia, também chamado Coronel Delmiro Gouveia, nasceu em Ipu (CE) e, como narrou Mário de Andrade, “chegou em Pernambuco ainda curumirim” (O Turista Aprendiz 39). Viveu no Recife até 1902. Na capital pernambucana, foi funcionário da Brazilian Street Railways, onde trabalhou como faroleiro, e chegou a gerente da Keen Sutterly Company, responsável pela exportação de couro. Perspicaz, enriqueceu neste ramo. Tornou-se o “Rei das Peles” e, conforme Graciliano Ramos “adquiriu tanta habilidade que poderia, segundo afirmam os tabaréus, esfolar uma cabra viva sem que ela percebesse que estava sendo esfolada”. O mesmo autor afirmou que, enriquecendo como exportador de couros, “Gouveia fez diversas viagens à Europa, hospedou-se em hotéis de luxo, fingiu extasiar-se na ópera e conseguiu arranhar duas ou três línguas necessárias ao débito e ao crédito” (Viventes 113-114). A riqueza propiciou empreendimentos ambiciosos, como o Mercado do Derby, idealizado para funcionar dia e noite, oferecendo baixos preços e proporcionando diversas opções de lazer. Contudo, a mesma riqueza promoveu intrigas com políticos importantes, aguçou as pretensões de Delmiro e contribuiu para um policiamento constante em seus negócios, que não tardariam a dar sinais de irregularidades – sobretudo no que concerne ao pagamento dos impostos.
Imerso nas lutas políticas das oligarquias pernambucanas, Delmiro teve o Mercado do Derby incendiado, foi preso e, pouco tempo depois, declarou falência. Casado, mas envolvido amorosamente com a filha de um inimigo político, o cearense deixou Recife e instalou-se no sertão alagoano. Ali, na vila da Pedra, retomou a exportação de couros, criou a usina hidrelétrica de Angiquinho – a primeira experiência a aproveitar o potencial das águas do rio São Francisco -, inaugurou a Companhia Agro-Fabril Mercantil, mais conhecida como “Fábrica da Pedra”, especializada em linhas de costura. Juntamente a estes empreendimentos, veio o crescimento da vila. Além da circulação de comboios de animais fartos em peles, chegando de estados como Ceará, Piauí, Alagoas e Pernambuco, Delmiro também levou escola, cinema, rink de patinação, água encanada, farmácia e luz elétrica para o vilarejo. Pelos sertões alagoanos, seus automóveis foram os primeiros a espantar os matutos. Vivendo nas casinhas brancas da Pedra, os operários eram obrigados a mandar os filhos para a escola e, eles mesmos, se analfabetos, tinham que estudar. Conhecido por seu zelo pela higiene, o coronel exigia limpeza máxima dos trabalhadores, estabelecendo multas para quem jogasse papel ou cuspisse no chão. Homens, mulheres e crianças deviam manter os cabelos penteados. Também havia horários para que os operários fossem dormir e para o funcionamento da feira semanal. Proibindo bebidas alcoólicas e o uso de armas na Pedra, Delmiro impressionou personalidades como Assis Chateaubriand (1892-1960) e Oliveira Lima (1867-1928), alguns dos convidados que hospedou em seu chalé. Morreu assassinado em 1917. Depois disto, alguns textos apareceram e contribuíram para estabelecer uma aura civilizadora sobre o coronel.
Nos anos de 1960, por exemplo, na esteira das comemorações pelo seu centenário de nascimento, apareceu uma série de estudos biográficos. Por meio destas obras Delmiro foi tomado para contradizer a idéia do Nordeste antiquado e de insignificância na economia nacional. Ao mesmo tempo, o cearense era citado como exemplo nos debates sobre a industrialização no sertão. É possível dizer que a emergência de Gouveia como um “disciplinador de homens” rompeu as fronteiras regionais graças, entre outras coisas, a uma vigorosa contribuição de intelectuais. Na verdade, ao contrário do que escreveu Graciliano, não parece ter havido um esquecimento tão agudo em torno de Delmiro Gouveia. Vejamos.
O assassinato do homem admirado por ter introduzido a luz elétrica e o automóvel nos sertões brasileiros foi noticiado na Revista da Semana (Rio de Janeiro, 20 out. 1917, p.18). O crime também motivou palestra do médico Plínio Cavalcanti na Sociedade Nacional de Agricultura (SNA), no Rio de Janeiro, ainda em outubro de 1917. Na ocasião, o orador ofereceu memórias da visita feita à Pedra: “Nunca mais se apagará dos meus olhos de excursionista deslumbrado, a risonha miragem d’aquella cidadesinha (sic) de Pedra em 1914, tão branca e limpa, que à primeira vista julguei-a um grande algodoal de capulhos alvejantes” (Cavalcanti, A Chanaan sertaneja 3)¹. Plínio Cavalcanti descreveu a Pedra como uma “estranha flor de civilização” e Delmiro como “caboclo genial”.
A palestra de Cavalcanti, na ocasião intitulada “Delmiro Gouveia e sua obra”, ocorreu em 19 de outubro, poucos dias, portanto, após o assassinato do industrial (10/10). Assim sendo, foi sob o impacto do crime que o orador escolheu as suas palavras e talhou a memória de seu homenageado, alguém que ele conhecera pessoalmente em 1914. Naquele ano, viajando pelo “Norte” do país, o jovem Cavalcanti percorreu aproximadamente 85 cidades, com o objetivo de escrever um livro sobre a região. Ali, nas redondezas do rio São Francisco, chegou à Vila da Pedra e tornou-se hóspede de Delmiro. O médico, então com apenas 23 anos, se encantou ao presenciar “verdadeira civilização encravada na barbaria do sertão alagoano” (Cavalcanti, A Chanaan sertaneja 5).
A vila surgiu ao moço como algo único e, anos depois, ao proferir a palestra, ele reafirma esta singularidade, concebendo a Pedra como um oxímoro: tratava-se de um empreendimento tipicamente brasileiro e, ao mesmo tempo, “parece ter sido concebida à feição das peças de invento, cujos moldes são quebrados pelos inventores para que ninguém mais consiga completar o seu acabamento” (Cavalcanti, A Chanaan sertaneja 5).
Retomando imagens do passado, Cavalcanti atribuiu a Gouveia a transformação experimentada na pequena vila. Conforme as palavras do médico viajante, o cearense arrancou “do sertão alagoano esta Pedra bruta para lapidá-la ao crysol (sic) de sua energia e da sua astúcia maravilhosa”. Deste processo, o que surge é um conjunto de práticas que reabilitam a visão do próprio palestrante sobre o povo brasileiro. A leitura positiva sobre o caráter nacional se ampara no próprio Gouveia. Conforme seu ex-hóspede, o cearense “poderia servir a um esculptor (sic) como modelo clássico da genuína raça nacional” (Cavalcanti, A Chanaan sertaneja 6, 9). Pode-se dizer que não um artista, mas sim o próprio Cavalcanti buscava um tipo ideal de brasileiro.
Pouco tempo depois da palestra sobre o negociante, o mesmo autor participou de outro evento celebrativo. Em fevereiro de 1918, o médico foi um dos que falaram na sessão inaugural da Liga Pro-Saneamento do Brasil na qual se realizou uma homenagem ao sanitarista Osvaldo Cruz (1872-1917). Em sua intervenção, Cavalcanti falou sobre a importância de iniciativas para sanear os sertões dos “papudos e dos idiotas”. Disse o Dr.Cavalcanti: “E’ uma campanha sociologica. E’ uma campanha patriótica (sic) em que todos os brasileiros sem distincção de capacidades devem collaborar”. A própria viagem do médico pelo interior do Brasil, há pouco mencionada, possivelmente, estava ligada a uma ambição, então patrocinada pela SNA, em contribuir para sanear os “vastos e enfermiços” sertões e tratar as “populações do interior dizimados por toda a casta de molestias infecciosas (sic)”². Para homens como Cavalcanti, portanto, nada mais adequado que tomar homens como Delmiro (que até nos trajes brancos inspirava higiene) para ilustrar suas idéias.
Era este, portanto, o sertanejo a ser estabelecido como um padrão. Os problemas existentes naquelas paisagens, anos antes, devido aos conflitos no arraial de Canudos e nas proximidades de Juazeiro, deveriam ser superados. Era preciso então falar da missão cumprida por Delmiro ao erguer uma “florida chanaan de paz e trabalho para aquella gente exaltada, que como mestre-escolas só tivera Padre Cícero e Antônio Conselheiro”. Aqui aparece um traço comum nas diferentes reflexões produzidas sobre a vida do “rei das peles”. Para muitos, ele funcionará como uma antítese a tudo que representavam o clérigo de Juazeiro e o beato. Ao contrário destes dois personagens, Gouveia esgrimava os problemas do sertão através dos ícones modernizadores. Eletricidade e higiene, principalmente, impressionaram Plínio Cavalcanti. Ao mesmo tempo, o médico se esforça em isolar o coronel frente a qualquer outro nome conhecido da região. O fato de ter agido sozinho e em lugar inóspito tornava Delmiro singular. O mesmo autor lamenta que intelectuais como Alberto Torres e Euclides da Cunha não tenham alcançado Gouveia, pois, segundo Cavalcanti, “se houvessem conhecido sua obra teriam motivos picturaes (sic) para um livro empolgante” (Cavalcanti, A Chanaan sertaneja 6).
A devoção de Plínio Cavalcanti à causa de “sanear os sertões” caminhou junto com a noção de que se falava de uma região estereotipada. Pedra quebrava este estigma e Delmiro, coronel moderno, se posicionava como uma personagem-chave para as narrativas sobre as modificações possíveis de serem empreendidas naqueles locais. Gouveia era a resposta do mundo moderno ao atraso e o fanatismo, ambos simbolizados por Padre Cícero (1844-1934) e principalmente pela figura de Antônio Conselheiro (1830-1897).
Acompanhando a perspectiva de Cavalcanti e de intelectuais tributários da interpretação euclidiana para o sertão, Graciliano Ramos apresentou Delmiro Gouveia como um mártir modernizador. Em sua crônica “Recordações de uma indústria morta”, originalmente publicada na revista Cultura Política em agosto de 1942 e presente na obra póstuma Viventes das Alagoas (1961), Graciliano narrou que, na cidade da Pedra, Delmiro “estirava uma autoridade sem limites”. A cidade, que em 1952 ganhou o nome do comerciante cearense, foi descrita da seguinte maneira:
arame farpado cercava a fábrica e a vila operária. E os agentes do Governo, funcionários da prefeitura, soldados de polícia, detinham-se nas cancelas, porque lá dentro não eram precisos. Estava tudo em ordem, ordem até excessiva, as casas abrindo-se e fechando no horário, os deveres conjugais observados com rigor, o cinema exibindo fitas piedosas, as escolas arrumando nas crianças noções convenientes.Apito de manhã, apito ao cair da noite, instrumentos e pessoas em roda viva, tudo melhorando, a procura superior à oferta (Ramos, Viventes 115).
Na descrição de Ramos, a cidade da Pedra aparecia como espaço comprovador da viabilidade do sertão, a necessidade de explorar as águas do rio São Francisco. Delmiro era um anunciador desta viabilidade, pois foi “numa cachoeira notável, mencionada sempre com respeito, admiração e inércia” que o barulho das turbinas foi “acordar alguns cavalos da manada que lá dormia o sono dos séculos”. Cabe lembrar: o texto de Graciliano destinava-se à revista Cultura Política, uma publicação oficial do Estado Novo (Ramos, Cultura Política 166). O periódico deveria reunir intelectuais das mais diferentes tendências para a produção de ensaios interpretativos sobre a Nação. No que diz respeito à linha editorial de Cultura Política, sabe-se que a ênfase nestes tempos recaía sobre escritos referentes à “realidade nacional”; abordagens que mostrassem a falência do liberalismo; as mazelas da Primeira República, contrapondo-as aos avanços do regime oficialmente implantado em 1937.
Esta busca pela “realidade nacional” na literatura alimentava a preocupação em estabelecer o olhar sociológico em diversas publicações, não somente para a Cultura Política, é bom lembrar. Os novos tempos pediam que o intelectual saísse da sua “torre de marfim” e contribuísse na tessitura de um novo ambiente, que reunisse o mundo da cultura (espaço dos homens de pensamento, os intelectuais) ao mundo da política (espaço dos homens de ação, os políticos). É emblemática desta estratégia incorporadora de intelectuais ao projeto estadonovista a eleição de Getúlio Vargas para a Academia Brasileira de Letras, em 1943 (Velloso, Os intelectuais e a política cultural do Estado Novo 11)
Neste plano interpretativo, os ideólogos do Estado Novo elegeram Euclides da Cunha como uma espécie de patrono das letras. A sua interpretação cientificista foi tomada como exemplar. As discussões sobre as interferências no interior do Brasil e sobre a arte de narrar a trajetória da história brasileira se viam envoltas na perspectiva euclidiana. Mas, ao mesmo tempo, era importante rechaçar a pátina do atraso brasileiro. Neste contexto, era indispensável mostrar que os focos da mudança estavam por toda parte. Narrando as diferenças regionais, os intelectuais se esmeraram em apontar ícones de um desenvolvimento que, se não era ainda efetivo, existia potencialmente(Velloso 10). Na verdade, isto não se afasta do ideal euclidiano pautado nos conceitos de industrialismo, da ciência e do direito que, “mixados” pela evolução possibilitariam o florescimento de uma civilização soberana (Sevcenko Literatura como missão 182).
Apontando os sertões do Norte como palco privilegiado onde se encontraria o cerne da nossa nacionalidade, a chave para livrar a nação do “estigma cosmopolita” acentuado pelos processos migratórios, Euclides aparece como referência habitual em diferentes escritos sobre os sertanejos e o espaço por eles habitado. Uma tradição interpretativa na qual a civilização é a meta a ser atingida.
Anos após ter sido denunciado pelo “patriotismo alagoano”, estando finalmente fora da prisão e com algumas bocas para alimentar, Graciliano se engajou como colaborador de Cultura Política e apresentou um “quadro de costumes” sobre a sua região de origem – lugar pelo qual nutria grande mágoa e para onde decidiu jamais retornar³. Delmiro emergiu entre as recordações do escritor. Uma personagem que, sob a ótica de Ramos, é circundado pelo halo civilizatório. E, deste modo, a memória tecida sobre Gouveia é a de um arauto da mudança, herói-síntese da modernização redentora. Graciliano parece comprometido com uma perspectiva euclidiana ao observar um processo de ascensão e queda de um sertão industrial. Os feitos de Delmiro representavam uma experiência efêmera apagada da memória local, esquecimento que “amortalhou a indústria aparecida com audácia no sertão, entre imburanas, catingueiras, rabos-de-raposa e coroas-de-frade”. Porém, se o texto de Ramos pode ser visto como um elogio a Gouveia, ele também sugere contradições ao descrever um tempo e um lugar no qual “estava tudo em ordem, ordem até excessiva”. Em dias de Estado Novo, o sutil comentário que escapa no texto sobre a “ordem excessiva” sugere uma visão menos idealizada de Gouveia e, talvez, dos próprios tempos em que vivia o Graciliano Ramos (Velloso A literatura como espelho da Nação. Estudos Históricos 239-263). Deste modo, embora apareça de forma quase ocasional, Delmiro é chamado para exemplar quando as descrições se referem ao potencial do Nordeste. Daí a afirmação sobre a “malícia cabola” feitas por Graciliano. Graças a esta habilidade, o sertanejo chamado Gouveia “saiu da capoeira, estabeleceu-se na cidade, passou a infligir a criadores e intermediários as regras a que se havia sujeitado em tempos duros” (Ramos 113).
Graciliano conviveu diversas vezes com o nome de Delmiro Gouveia. Durante anos, o escritor morou em Palmeira dos Índios, no agreste alagoano, a 190 km da Pedra. Chegou a ser prefeito da cidade (1928-1930). Palmeira era a “porta” para ligar o litoral ao sertão alagoano. Ali, nos tempos em que tentava equilibrar as finanças da Loja Sincera, herdada do pai, provavelmente ouviu diversas narrativas de caixeiros-viajantes e almocreves sobre Delmiro. Talvez ele até estivesse na multidão de curiosos que assistiu aos carros comprados por Gouveia desfilarem por Palmeira dos Índios. Depois da morte do industrial, quando assumiu como prefeito da “Princesa do Sertão” – cidade que ele preferia chamar de “princesa escavacada”-, Graciliano mencionou Delmiro no relatório enviado ao governador de Alagoas em 1930, referente ao segundo ano de sua gestão. Ao informar a intenção de construir uma estrada ligando Palmeira a Santana do Ipanema, Ramos escreveu:
Os peritos responderam que ela custaria aí uns seiscentos mil-réis ou sessenta contos. Decidi optar pela despesa avultada. Os seiscentos mil-réis ficariam perdidos entre os barrancos que enfeitam um caminho atribuído ao defunto Delmiro Gouveia e que o Estado pagou com liberalidade: os sessenta contos, caso eu os pudesse arrancar do povo, não serviriam talvez ao contribuinte que, apertado pelos cobradores, diz sempre não ter encomendado obras públicas, mas a alguém haveria de servir (Ramos, Viventes das Alagoas 180).
A passagem acima evidencia um novo tratamento conferido a Gouveia por Graciliano. O “defunto Delmiro Gouveia” não é o homem que abriu estradas perfeitas como querem os seus biógrafos. Há, no máximo, um “caminho” defeituoso e oneroso aos cofres públicos. Ainda assim, é interessante observar que Ramos marca a sua ação aproximando-se de Delmiro, ao sugerir identificação entre os dois projetos. O de Delmiro, levado adiante por recursos próprios e o dele, limitado pela pobreza de financiamentos estatais. Nos dois casos circula a preocupação em abrir estradas, em modernizar e, desta forma, civilizar. A barbárie, pintada em cores vivas por Euclides n’Os Sertões, encontra eco nos escritos de Graciliano. Um olhar sobre Vidas Secas indicia isto.
Fabiano é o vaqueiro com um corpo derreado, cujas “pernas faziam dois arcos, os braços moviam-se desengonçados. Parecia um macaco” (Ramos Vidas Secas 20). Em Euclides, encontramos a descrição do sertanejo como “desgracioso, desengonçado, torto”. Alguém que anda “sem firmeza, sem aprumo, quase gigante e sinuoso, aparenta a translação de membros desarticulados” (Cunha Os Sertões 166). Incapaz até mesmo de estabelecer uma trajetória linear, caminha bamboleando (131). O vaqueiro de Graciliano Ramos de pé “não se agüentava” bem e tinha como “posição natural” o andar cambaio e a cabeça inclinada (Ramos, Vidas Secas 76). Este homem sempre cansado, expressa uma “preguiça invencível em tudo”, até mesmo no falar. Em Vidas Secas, Fabiano e família pouco falam. O mais comum é ler passagens como esta: “-Está certo, grunhiu Fabiano” ou “Hum! Hum!”. Na verdade, Fabiano não sabia falar, explica o seu criador, em certas ocasiões “largava nomes arrevesados, por embromação” (21,42, 39).
A transformação deste “Hércules-Quasímodo” em um “cavaleiro robusto” também ocorre no romance. Ali, Fabiano reflete sobre a função de vaqueiro e a vida que levava. Enquanto Euclides escreveu que “colado ao dorso deste [o cavalo], confundindo-se com ele, graças à pressão dos jarretes firmes, realiza a criação bizarra de um centauro bronco” (Cunha, Os Sertões 131), Ramos descreveu sua personagem como um ser que “montado, confundia-se com o cavalo, grudava-se a ele. E falava uma linguagem cantada, monossilábica e gutural, que o companheiro entendia” (Ramos, Vidas Secas 21). Estas semelhanças entre os dois escritores sugerem a forte influência, bem como a perenidade, da interpretação de Os Sertões.
Graciliano Ramos se aproxima de Euclides também no olhar atento ao seu “objeto”. Daí a sua resposta a certos críticos que teimavam em enquadrar alguns escritores do Nordeste como “regionalistas”: “Realmente a geografia a não tem nada com isso. (…) O que há é que algumas pessoas gostam de escrever sobre coisas que existem na realidade, outras preferem tratar de fatos existentes na imaginação”. O autor alagoano volta a sua pena contra aqueles ansiosos por transformar a literatura nacional em dois blocos coesos “como as pastorinhas do Natal, que dançam e cantam filiadas ao cordão azul ou ao cordão vermelho”. O problema com estes críticos, explica, é que os tais escritores nordestinos passaram a expor em suas obras “facas de ponta, chapéus de couro, cenas espalhafatosas, religião negra, o cangaço e o eito, coisas que existem realmente e são concebidas com satisfação pelas criaturas vivas”. E amplia a ironia ao dizer: “Pois não é que o sr. Armando Fontes foi dizer que as filhas dos operários se prostituem?” (Ramos, Linhas Tortas 135-136).
E tratando da “realidade”, como Euclides, Graciliano enxerga um sertão distante dos benefícios da civilização. Não à toa, Fabiano enxerga o Governo como “coisa distante e perfeita”, instituição que “não podia errar” (Ramos Vidas Secas 35). Comentando um discurso de Getúlio Vargas, escreveu: “enquanto a capital se desenvolve enormemente para cima e para os lados, importando por avião e transatlântico os bens e malefícios da civilização, o campo definha, pacatamente rotineiro, longe da metrópole no espaço e no tempo” (Ramos Linhas Tortas 128). A admiração do autor alagoano por Delmiro, expressa na crônica de 1942, se ampara em fatos como o mergulho do cearense no sertão. Ao contrário da metade nórdica da empresa, composta por “um carcamano e um gringo”, explica Graciliano, que “permaneceu longe, na civilização, embolsando os lucros, áspera, fechada, invisível” (Ramos, Viventes das Alagoas 115).
Explicando, como fizera Euclides em sua obra mais conhecida, que a migração é a última opção do sertanejo, Ramos afirmou que o surgimento de ofícios parasitários resulta da queda da produção no campo. A juventude de Gouveia talvez aparecesse ao escritor como um exemplo disto. Afinal de contas, a opção de tornar-se “negociante, ambulante, trocador de animais, atravessador, salteador” foi o caminho seguido por Delmiro. Utilizando-se de uma série de artifícios ele “cresceu rapidamente, engrossou demais”, sendo esta mesma habilidade fundamental para sua vitória sobre o produto made in England (RAMOS, Viventes das Alagoas 114,115,116).
A transformação de que nos fala Graciliano, descrevendo o carrascal vertido em jardim, reforça o poder que a região tinha, em seus rios, na cachoeira de Paulo Afonso, “sinal da nossa grandeza”, algo despertado por Delmiro graças a este traço da cultura sertaneja. Para Graciliano, Gouveia foi um sertanejo que soube usar as brechas deixadas pelos poderosos, pelo capital estrangeiro e, demonstrando “conhecimento de línguas” e “domínio sobre as vontades alheias”, entrou violentamente num mercado costumeiramente cruel (RAMOS, Viventes das Alagoas 116 e 114). O atraso em que vivia o Nordeste era resultado de “processos rotineiros na agricultura, indústria precária, exploração horrível do trabalhador rural, carência de administração” (RAMOS, Linhas Tortas 134), não apenas da seca, diagnosticou Graciliano. Ora, ao ler e ouvir falar das experiências de Gouveia, o escritor deve ter visto nelas algumas possibilidades perdidas. Talvez por isto, tenha talhado em suas recordações Delmiro como um civilizador dos sertões. Um caboclo genial a anunciar tempos melhores.
Notas
1 O mesmo trabalho aparece antes nas seguintes publicações: Saúde. Rio de Janeiro, dez.1918; Revista Nacional. Rio de Janeiro, I (I) jun. 1919 e Correio da Pedra. 15 jun.1919.
2 “Liga Pro-Saneamento do Brasil. A sua installação hontem. A glorificação da obra de Oswaldo Cruz”. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, (12 fev. 1918). Portal do Programa de Informação para Gestão de Ciência, Tecnologia e Inovação do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia. 16 de fevereiro de 2007.
<http://www2.prossiga.br/Ocruz/textocompleto/imprensa_sobre/ligapro.html>
3 Segundo explica Carlos Alberto dos Santos Abel, o desapontamento de Graciliano com Alagoas começou ainda nos anos 30, após a sua prisão em 1936. Após a sua liberdade, o escritor não quis mais retornar para a terra natal. Em carta à esposa, datada de 11 de abril de 1937, afirmou que só retornaria a Alagoas “se pudesse oferecer a isto um terremoto que acabasse tudo”. Cf. Abel, Carlos Alberto dos Santos. Graciliano Ramos: cidadão e artista. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1999.
Referências bibliográficas
“Delmiro Gouveia”. Revista da Semana.Rio de Janeiro, 20 out. 1917, p.18.
Abel, Carlos Alberto dos Santos. Graciliano Ramos: cidadão e artista. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1999.
Cavalcanti, Plínio. A Chanaan sertaneja da Pedra: escriptos sobre a obra realisada por Delmiro Gouveia no Nordeste do Brasil. Rio de Janeiro, 1927.
Cunha, Euclides. Os Sertões: campanha de Canudos. 39 ed. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1997.
“Liga Pro-Saneamento do Brasil. A sua installação hontem. A glorificação da obra de Oswaldo Cruz”. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 12 fev. 1918. Portal do Programa de Informação para Gestão de Ciência, Tecnologia e Inovação do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia. 16 de fevereiro de 2007.
<http://www2.prossiga.br/Ocruz/textocompleto/imprensa_sobre/ligapro.html>
Ramos, Graciliano. Viventes das Alagoas: quadros e costumes do Nordeste. 7 ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Record/Martins, 1977.
-. Linhas Tortas. 5 ed. Rio de janeiro:Record, 1977.
-. Vidas Secas. 37 ed. Posf. Álvaro Lins. Rio de Janeiro: Record, 1977.
Sevcenko, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. 2 ed. São Paulo Companhia das Letras, 2003.
Velloso, Mônica. “A literatura como espelho da Nação”. Estudos Históricos 1. 2 (1988): 239-263.
-. Os intelectuais e a política cultural do Estado Novo. Rio de Janeiro: FGV/CPDOC, 1987.
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