UM TÁXI PARA VIENA D’ ÁUSTRIA: UM ROMANCE POLIFÔNICO DE ANTÔNIO TORRES

Donizeth Aparecido dos Santos
Universidade de São Paulo
 
 

O romance Um táxi para Viena d’ Áustria (1991), do escritor brasileiro contemporâneo Antônio Torres, apresenta três narradores que, por vezes, dialogam entre si, alternam e fundem-se dentro da narrativa, o que nos permite considerá-la polifônica, no sentido definido por Mikhail Bakhtin, que conceitua a polifonia como um texto em que são percebidas as diversas vozes e consciências que o constituem. Segundo ele (4), “a multiplicidade de vozes e consciências independentes e imiscíveis e a autêntica polifonia de vozes plenivalentes”, ou seja, vozes¹ plenas de valor, que mantém com as outras vozes do discurso uma relação de absoluta igualdade como participantes do grande diálogo, constituem a peculiaridade fundamental do romance polifônico, cujo paradigma são os romances de Dostoievski. Nesse sentido, a partir dessa conceituação, podemos estender essa classificação bakthtiniana de romance polifônico a outros romances que possuem essas características.

Em Um táxi para Viena d’ Áustria, as várias vozes também não estão subordinadas umas às outras, são independentes entre si e transformam a obra num grande diálogo, fazendo existir, inclusive, não só o diálogo entre narradores, mas também entre diversos tipos de textos e linguagens: radiofônica, musical, jornalística, publicitária, televisiva e cinematográfica.

O romance, escrito no final dos anos 80 e publicado em 1991, conta a história de um publicitário que mata com dois tiros na barriga um amigo que não via há 25 anos, e depois entra em um táxi que não sai do lugar, em razão de um engarrafamento provocado por um caminhão da Coca-Cola. Dessa forma, a maior parte da narrativa decorre do fluxo de consciência da personagem principal.

Em relação ao período em que a obra foi escrita, é importante ressaltar que ela se enquadra nos modelos de narrativa vigentes na literatura contemporânea, comuns a partir da década de 70. De acordo com Luiz Carlos Simon (52), citando Eduardo Coutinho, na ficção dos anos 80, houve uma “presença mais intensa da mídia extraliterária, a acentuação da fragmentação do texto e da polifonia de vozes narrativas”. Características essas que encontramos, por sua vez, na obra de Torres, pois, além da narrativa polifônica, ela apresenta uma linguagem fragmentada, construída a partir de recortes de letras de músicas, linguagem jornalística, radiofônica, publicitária e cinematográfica, que juntas dão a tonalidade do romance, refletindo o caos em que as grandes cidades estão mergulhadas e consequentemente o drama existencial do homem contemporâneo, ou do “homem desabrigado”, segundo Theodor Rosenthal (155). Muniz Sodré, em uma crítica à obra afirma que:

 

Antônio Torres em Um táxi para Viena d’Áustria, mesclou estilos com bossa própria, adotando a poética da não ficção, à maneira de Truman Capote ou de Norman Mailer, e ao mesmo tempo, seguindo o gosto de Manoel Puig, construiu uma narração em que se percebe a fragmentação da existência nas grandes cidades, a partir de recortes jornalísticos e televisivos sobre o cotidiano da cidade. A atmosfera estilística é a do realismo, mas sem a descrição certinha de incidentes, sem a composição ordenada de situações humanas. Ao mesclar esses estilos, Torres encontra-se aí em pleno ato de literatura, isto é, de transformar fragmentos de frases, fórmulas, sintagmas de língua coloquial e cotidiana marcada pela mídia em enunciados de um língua própria que nele, ao contrário do táxi fabulado, é móvel e ágil. (Transversais da linguagem)

 

Em Um táxi para Viena d’Áustria temos, a princípio, dois narradores: um “heterodiegético”,  aquele que, conforme definição de Gérard Genette (244), observa e conta a história de outro sem ser personagem, e outro “autodiegético”, um narrador-personagem que conta a própria história. Esses dois narradores, em várias oportunidades, dialogam entre si, sendo que o segundo deles, ao relatar o assassinato de Cabralzinho dá voz a ele, fazendo surgir, assim, um terceiro narrador, também em primeira pessoa, a exemplo do segundo.

A narrativa começa com o narrador observador (heterodiegético) que, colocado estrategicamente num determinado ponto da cidade, mais parece um repórter de rádio ou televisão, que acompanha ao vivo os acontecimentos à sua volta, guiado exclusivamente pela visão, utilizando uma técnica de narrar próxima do showing(mostrar) de Norman Friedman (Carvalho, 8), devido à objetividade da narrativa e ao predomínio da imagem e do olhar. Através dessa técnica narrativa mostra ao leitor um homem desconhecido que desce apressadamente as escadas de um edifício:

 

1. Atenção
Nesse exato momento há um indivíduo descendo apressado pelas escadas do edifício nº 3 da rua Visconde de Pirajá, Ipanema, aqui no Rio de Janeiro. De que será que ele está fugindo? Ainda não sabemos. Nada de pânico. Por enquanto, tudo parece normal. Nenhum alarme. Nenhum grito. Ninguém soltando os cachorros. Pode ser apenas um desses paranóicos que têm medo de elevador. Ou um inofensivo quarentão enferrujado, na vã esperança de perder um centímetro de barriga. Pode ser tudo e pode não ser nada. Cada maluco com a sua maluquice. De certo mesmo só que ele vem do último andar correndo.
Corre campeão. (Torres 7)

 

Após observar o tal homem, o olhar do narrador volta-se para a esquina, onde há poucos instantes um caminhão da Coca-Cola capotou em uma das ruas mais movimentadas de Ipanema, causando um enorme engarrafamento. A imagem que o narrador passa é de uma desordem total: engradados, garrafas e cacos pelo asfalto, aglomeração de pessoas, longa fila de carros, polícia batendo na garotada do morro, e o barulho ensurdecedor das buzinas:

6. Pausa para uma Coca:

Como eu ia dizendo, não se avexe. Há preocupações maiores para esta tarde, aqui no pedaço. Você foi salvo da curiosidade pública e privada por um caminhão da Coca-Cola que capotou há instantes ali na esquina, justinho onde a rua Canning desemboca na Gomes Carneiro, bem no calcanhar dessa nossa Visconde de Pirajá. E aí, veio todo mundo ver – ora, direis, carioca não adora amenidades? Faz ajuntamento até pra ficar olhando conserto de buraco.
Imagine o caos: uma garganta por onde escoam três ruas, no sentido de Copacabana, completamente bloqueada por engradados, garrafas e cacos. E a (previsível) multidão atrapalhando mais ainda. E a polícia já descendo o cacete na pivetada que avança sobre as garrafas aproveitáveis. E toda aquela trilha sonora que a gente tanto aprecia. Fonfom. Pipiiiiiiiiiiiii.
Nas tardes de Ipanema há um céu azul demais. E arranha-céus que daqui a pouco podem ficar da cor dos engradados da Coca-Cola. Vermelhões. Vem fogo aí. (12)

 

Esse narrador heterodiegético que dialoga com as personagens – “Corre campeão”, “Você foi salvo da curiosidade pública”- e com o leitor – “Imagine o caos” – e que narra a partir daquilo que suas retinas captam, transmitindo ao leitor uma imagem pronta como se estivesse munido de uma câmera e através dela executasse a narrativa, pode ser enquadrado no que Silviano Santiago (19) define como o narrador pós-moderno, cabendo a ressalva de que esta definição foi elaborada com base na análise de um livro de contos de Edilberto Coutinho, o que torna um pouco arriscado generalizá-la. Mas, como vemos muitos pontos em comum entre essa conceituação e o narrador observador de Um táxi para Viena d’Áustria consideramos válido citá-la para compreendermos melhor esse tipo de narrador:

 

O narrador pós-moderno é aquele que quer extrair a si da ação narrada, em atitude semelhante à de um repórter ou de um expectador. Ele narra a ação enquanto espetáculo a que assiste (literalmente ou não) da platéia, da arquibancada ou de uma poltrona na sala de estar ou na biblioteca: ele não narra enquanto atuante.
/.. /
O espetáculo torna a ação representação. Dessa forma, ele retira do campo semântico de ação o que existe de experiência, de vivência, para emprestar-lhe o significado exclusivo de imagem, concedendo a essa ação liberta da experiência condição exemplar, de um agora tonificante, embora desprovido de palavra. Luz, calor, movimento-transmissão em massa. A experiência do ser. Do observar. Se falta à ação representada o respaldo da experiência, esta por sua vez passa a ser vinculada ao olhar. O narrador que olha é a contradição da palavra na época da imagem. Ele olha para que o seu olhar se recubra de palavra, constituindo uma narrativa. O espetáculo torna a ação, representação. Representação nas suas variantes lúdicas, como futebol, teatro, dança, música popular, etc; e também nas suas variantes técnicas, como cinema, televisão, palavra impressa, etc. Os personagens observados até então chamados de atuantes, passam a ser atores do grande drama da representação humana, exprimindo através de ações ensaiadas, produto de uma arte, a arte de representar. Para falar das várias facetas dessa arte é que o narrador pós-moderno-ele mesmo detendo a arte da palavra escrita-existe. Ele narra ações ensaiadas que existem no lugar (o palco) e no tempo (o da juventude) em que lhes é permitido existir. (Santiago, 19)

 

Aproximando a definição de narrador pós-moderno de Silviano Santiago aos trechos do livro de Torres extraídos para exemplificação não é difícil identificar os pontos em comum: a narrativa a partir da observação e do espetáculo, ancorada na experiência do ver em atitude idêntica a de um repórter ou de um expectador, a transformação da imagem em palavra, e a não atuação do narrador.

Também é possível aproximar o narrador-observador de Um táxi para Viena d’Áustria ao conceito de “vitrine”, que, segundo Flora Sussekind (240), é o lugar onde se move a prosa literária brasileira dos anos 80, um lugar especial entre segredo e exposição, no qual narradores (observadores) e personagens (observados) por vezes se tocam nesses vidros translúcidos. Citando como exemplo duas obras do período, a autora afirma que:

 

A figura mesma do narrador, a subjetividade, postos em questão seja, como em Stella Manhattan e O nome do bispo,numa ficção próxima ao ensaio, onde protagonistas e intriga, propositadamente hesitantes, dialogam críticos, com aquele que narra, dobradiça este também, sobre cujo ombro um outro que lhe rasura as certezas, num verdadeiro abismo narrativo-ensaístico; seja na teatralização da linguagem do espetáculo, convertendo-se a prosa em vitrine onde expõem e observam personagem sem fundo, sem privacidade, quase imagens de vidro num texto espelhado onde se cruzam, fragmentárias, velozes, outras imagens, outros pedaços de prosa igualmente anônimos, igualmente metade.
Ora trechos de filmes, outdoors, notícias de jornal, ora o rádio, a TV, a publicidade, figuras da mídia que se cruzam com os personagens anônimos de uma ficção. Seja no sentido de duplicar as instâncias, ora subjetivas, ora anônimas, seja na reavaliação tanto da idéia de privacidade do narrar como revelação da própria experiência vital, convertidas em impossibilidades; quanto das imagens urbanas correntes, que se exibem mas são vistas de fora sem endosso. (Sussekind 240)

 

Observando os trechos do romance, constatamos que o espaço entre o narrador e a personagem e entre o narrador e a cidade converte-se numa enorme vitrine, nos moldes definidos por Sussekind, através da qual nada escapa ao olhar atento do narrador, que devassa a privacidade da personagem ao acompanhar atentamente todos os seus passos nessa descida apressada e ao ter uma visão privilegiada do que acontece nas proximidades do edifício.

Esse narrador, que a princípio nada conhece além daquilo que seus olhos captam ou que a vitrine lhe permite ver e, portanto, narra somente a partir da experiência do olhar, aos poucos começa a dar sinais de onisciência, a exemplo do “foco narrativo mutante”, definido por Alfredo Carvalho (45) como um “narrador observador que passa em alguns momentos a autor onisciente, descrevendo fatos que normalmente não poderia ter presenciado” ou conhecer: “Ele (o Solitário Artista Amador da Escada) está desempregado. Mais suspeito impossível” (10). O narrador continua desconhecendo o que o indivíduo que desce as escadas fez no edifício, mas já sabe que ele está desempregado, o que é um sinal de onisciência. E a partir da página 25, surgem mais traços de onisciência, com o narrador adentrando a mente da personagem principal, desvendando-lhe seus segredos:

 

Volta-se a recostar no banco do táxi. Sente-se cansado e com sono. Hum, uma cama agora, hein amigão? Dormir, dormir, dormir e acordar a milhões de quilômetros daqui. Como era mesmo aquela música? “Minha mãe, eu vou pra lua/eu mais a minha mulher.” Começa a sentir um troço esquisito por dentro. Uma saudade, talvez. Da mulher. Dos filhos. Chega mesmo a ouvir uma voz de mulher, chamando-o. Ora do quarto. Ora da cozinha. Ora do escritório. Era uma voz longínqua, mas agradável. Isto é, porque não estava zangada. Ouve os meninos: “Oi pai. Oi paizão. Você chegou? Voltar ou não voltar. Eis a questão. Ele os deixou há poucas horas, mas já parecia tanto tempo. Agora não fazia a menor idéia de quando voltaria a vê-los e nem se algum dia iria ter coragem de procurá-los. Alguma coisa se rompeu. Houve um corte, uma ruptura. Alguma coisa drástica aconteceu. Mas o que foi que aconteceu? Saudade de um sofá maior e mais confortável do que o banco traseiro de um táxi, onde pudesse entrar todo o seu cansaço. E de uma ducha quente. E dos seus livros. E de cueca lavada. E dos seus discos. Ah, o velho e bom som do jazz negro americano, que nunca se cansava de ouvir, religiosamente, entre um cantante brasileiro e outro, em madrugadas insones e embriagadas. Aquilo sim é que era viagem e não uma corrida de táxi sem destino. (25)

 

Mas, ainda assim, a onisciência não chega a ser total. O narrador conhece alguns dados sobre a personagem e desconhece outros. Observe-se, por exemplo, esta pergunta não respondida: “Mas o que foi que aconteceu?” Há um diálogo entre narrador e personagem e através dele, dessa proximidade, é que o narrador observador começa adquirir onisciência, o que vai ocasionar a fusão entre eles nas páginas 35, 36 e 37, nas quais o narrador dá voz à personagem que assume a narrativa, mudando o foco narrativo de terceira para primeira pessoa:

 

II – PRECISO LIGAR PARA CASA, MAS PARA DIZER O QUÊ?
Marido exemplar, pai extremoso, caráter sem jaça, ex-empregado-padrão e etc. também costuma chegar tarde em casa. Mas avisa antes. Praxe é praxe.
Só que desta vez não ia poder apelar para a manjada desculpa de que havia sido convocado para uma reunião depois do expediente e estas coisas, você sabe, sempre se arrastam, varam o tempo. Ou aquela outra, às vezes à vera  (bom nem tudo é mentira) de que ia sair com a turma para festejar um colega aniversariante e/ou para comemorar uma grande conquista da firma, através de um trabalho em que esteve envolvido. “O quê? Tudo bem. A gente deixa o cinema para amanhã depois janta fora. Um beijo”.
Desempregados não têm desculpas. Pelo menos desse tipo.
Sempre reclamando dos empregos, a vida inteira – todos um saco! Meu Deus, como era bom estar empregado. Como é bom ter colegas de trabalho.
Ora nem tudo é futrica, jogo de empurra, ralação, disputa, babação de ovo, mal-educados que te interrompem o tempo todo, impacientes e angustiados, carreirismo, empregação, puxação de tapete, pressão, papo furado, chatura, tirarucus brasilienses, arrivismo, tensão, deduragem, carneirismo, cobrança, sacanagem, injustiça e medo de perder o emprego, as doenças mais comuns e contagiosas do vínculo empregatício.
No fim do dia sempre sobravam alguns parceiros de fé para uma relaxante análise de grupo numa mesa da pesada, onde o copo principal transbordava de veneno, um brinde especial para os ausentes mais notáveis. Falar mal dos outros não é profilático? Pau neles. E quando a terapia pós-expediente terminava com uma sessão completa de relaxamento, numa superbanheira de um motel?
Queridas colegas fodamos o primeiro mandamento da lei trabalhista que reza:
–                 Onde se trabalha não se caralha.
Parágrafo único:
–                 Onde se ganha o pão, não se come a carne.
Santa Madre Empresa!
Onde enfiar a neura de cada dia?
E a sedução do contrabando?
Durante o horário comercial você papa uma hóstia chamada lucro. À noite, se locupleta numa boceta apelidada overnight.
Relax and enjoy it.
E me deixe mamar um pouco em suas tetas.
Faça o favor de jogar um osso para minha xepa.
Alô, queridas ex-colegas.
Quando a gente vai se ver?
O quê? Muito ocupadas? Pena. (35-37)

Nesse trecho, a narração começa em terceira pessoa: “Marido exemplar, pai extremoso, caráter sem jaça, ex-empregado-padrão e etc. /…/ Só que desta vez não ia poder apelar para a manjada desculpa…”; depois via discurso direto dá voz à personagem Watson Rosavelti Campos: “Sempre reclamando dos empregos, a vida inteira – todos um saco! Meu Deus, como era bom estar empregado! Como é bom ter colegas de trabalho”; e a partir daí, narrador e personagem fundem-se, ficando muito difícil identificá-los, de separar um do outro, o que nos faz lembrar a observação feita por Linda Hutcheon (29) sobre os narradores da ficção pós-moderna: “os narradores passam a ser perturbadoramente múltiplos e difíceis de localizar”. E essa fusão, esse entrelaçamento de fios narrativos, esse diálogo entre narrador e personagem, culmina na passagem da narrativa para primeira pessoa, com o narrador-protagonista assumindo a narrativa: “E me deixe mamar um pouquinho em suas tetas. Faça o favor de jogar um osso para minha xepa”.

Com a mudança de narrador muda-se, preponderantemente,  o perfil da narrativa. O outro vai narrar a partir da sua própria experiência, ao estilo do narrador tradicional definido por Walter Benjamin (201) como alguém que “retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros”. Sobre o narrador em primeira pessoa, autodiegético ou narrador-protagonista, Alfredo Carvalho (11), baseando-se em Friedman, afirma que, “No caso do eu protagonista, a visão do narrador é periférica e central. Tem, entretanto, a desvantagem de ser fixa. O narrador-protagonista é um personagem que, por definição, é atuante, não podendo ser, ao mesmo tempo, espectador, crítico ou colecionador de opiniões alheias”. Mas essa narrativa em primeira pessoa não é nada tradicional devido ao modo com que é elaborada, de forma não linear e semelhante ao que afirmou Rosenthal (159), “interrompida por recordações do passado e antecipações do futuro”, pois o narrador de Um táxi para Viena d’Áustria vive num constante deslocamento entre recordações do passado e do presente dentro do táxi e antecipa, ou melhor, imagina situações futuras que não chegam a ocorrer. Segundo Maurício Silva,

 

há na narrativa de Torres um fluxo de consciência atípico, uma introspecção generalizada que a conduz /…/ a um resultado duplamente relevante: de um lado constrói-se a impressão de uma linguagem algo anárquica, na sua relativa falta de linearidade espaço-temporal; de outro, sua escrita passa a refletir um árduo combate travado entre a lembrança do passado e a realidade presente, oscilando continuamente entre estes dois estados temporais. (Silva 81)

 

Em determinados momentos da narrativa em primeira pessoa há a intromissão do narrador de terceira pessoa, o que ocasiona então “o entrelaçamento de diversos fios narrativos /…/ alteração de perspectivas e da figura do narrador” (Rosenthal 161), criando um diálogo entre narradores, como podemos observar no trecho abaixo:

 

Os boleros que tocam nos rádios da espanhola são os mesmos que a gente ouvia em todas as vitrolas de Natal, em todas as festinhas e bailes de Natal, no puteiro de Natal, corta (Epa, cortar isso. A carta é para a sua mãe, rapaz). Cuidado, Não contar nada sobre aquela vez que você ficou olhando pelo buraco da fechadura enquanto a espanhola tomava banho. Ela se ensaboando e cantando. E você chupando o dedo. Ela alisando os seios e cantando e você alucinado. /…/ – corta. Dizer apenas que ela está sendo uma mãe. Nos dias de chuva a espanhola me protege em seus braços e, generosamente, me leva para cama e me embala, lânguida, louca, salerosa e me cobre, me agasalha, com seu cobertor de cabelos, pele, labirintos, enquanto singro um corpo nunca dantes navegado, aguardando o apito da fábrica. Pois é, mamãe, já tenho trabalho à vista. Já fiz um teste numa fábrica de rolamentos, mas para serviços de escritório. Vou pegar leve. (78-79)

 

O narrador observador/onisciente insere-se na narrativa a partir de “(Epa, cortar isso. A carta é para sua mãe, rapaz)” e vai até “-corta. Dizer apenas que ela está sendo uma mãe”. E a partir desse instante o narrador-protagonista reassume a narrativa.

Ao narrar o assassinato de Cabralzinho, o narrador-protagonista, através do discurso indireto, dá voz a essa outra personagem, fazendo com que surja um outro narrador em primeira pessoa para que o próprio Cabralzinho possa descrever a dor que sente na barriga, dor que leva Veltinho a atirar nele. A propósito, sobre a utilização do foco narrativo em primeira pessoa para descrever situações dramáticas, Manoel Konroff (Carvalho 17), ao comentar as vantagens e defeitos dessa perspectiva, afirma que “as vantagens no caso seriam a maior facilidade para que o leitor aceite uma história estranha ou sobrenatural, uma vez que o narrador se apresenta como tendo vivido as aventuras narradas; a maior intensidade e intimidade de experiência narrada em primeira pessoa; e finalmente, a aptidão do eu para dar unidade à história”:

 

Levantou-se. Deve estar melhorando, pensei. Engano. Agora estava pior do que antes.
Levou a mão à barriga e disse que dor mais filha da puta.
E desatou a falar, falar, falar, como se delirasse.
Eu já conheci o sucesso e amarguei o fracasso, mas nada é pior do que isso, ele disse.
Queria morrer de repente, ou dormindo ou de uma bala à toa, porque nada é pior do que isso.
Tenho dez livros na gaveta, que ninguém publicou e agora não adianta mais publicá-los, porque aqui somos o tempo todo atropelados pela realidade, não dá para planejar nada, estamos em guerra, há uma guerra nos morros, há uma guerra no campo, há uma guerra nas ruas, mesmo que ninguém queira perceber, estamos em guerra, mas ela não é pior que isso.
Já mingüei de fome, já gemi no pingo da gonorréia, tremi na picada da penicilina, chafardei no relento, mas nada é pior do que isso.
Estou vendo homens armados descendo do céu de pára-quedas, eles estão vindo para guerra, vai ser uma carnificina, mas também não estou com medo. Nada é pior do que isso. Já caí bêbado pelas sarjetas, já pequei de pó, de pico e de eletrochoque, já corri da polícia, Já fui em cana, mas nada é pior do que isso.
Levantou a camiseta. Com força. Com fúria.
E disse olhe essa barriga, ela fala por mim.
Juro que vi e ouvi. A barriga inchadona dele falou. Começou baixinho e foi num crescendo dói, dói, dói,dói, DÓI.
Não agüentei. Apertei o gatilho. Pois não é que a Pistolet Central Brezilen tinha bala?
Pau. UM tiro bem no centro da barriga falante
E vi sua cara estatelar-se e eu disse agüente firme, daqui a pouco você não sentirá mais dor nem horror. Será o alívio eterno. (216-217)

A afirmação de Konroff encaixa-se na descrição da morte de Cabralzinho devido à narração híbrida em primeira pessoa retratá-la de modo dramático, com maior intensidade, dando maior veracidade à estranha história da barriga falante.

Pelo modo com que é conduzida a narrativa, com mudanças de foco narrativo, entrelaçamento desses focos num diálogo constante, fundindo-se, às vezes, em situações em que a voz narrativa tanto pode ser em primeira quanto em terceira pessoa, concessão de voz a outras personagens; uso contínuo da intertextualidade, com os narradores utilizando-se de diversos tipos de discursos e linguagens; diálogo entre narradores e personagens que desfilam pelo romance (a multidão, o rapaz louro, as mulheres no carro), podemos considerá-la realmente polifônica.

Por outro lado, essa narrativa fragmentada, entrecortada por vozes que se cruzam, vindas de todos os lados (das ruas, do rádio, do jornal, da música, da publicidade, da televisão e do cinema) reflete o caos das grandes cidades: o desemprego, a violência, as diferenças sociais, a falta de perspectiva do homem contemporâneo, revelando-lhe o seu vazio existencial, aquilo que Rosenthal (155) chama de “homem desabrigado”, devido à “representação do cotidiano banal que põe o seu abismo a descoberto”.

A narrativa polifônica da obra é que permite a representação dessa “realidade flutuante” (Rosenthal 153), que reflete a situação caótica do mundo real, através da vitrine que a cidade se converte aos olhos do narrador observador, e do deslocamento espaço-temporal, pelo fluxo de consciência do narrador protagonista.

 
 
Nota
 
1 Conforme nota do tradutor para a Língua Portuguesa Paulo Bezerra.

 
 
Bibliografía
 
Bakhtin, Mikhail. Problemas na poética de Dostoievski. Trad. Paulo Bezerra.  São Paulo: Forense Universitária, 1997.
Benjamin, Walter. Magia e técnica, arte e política. 7 ed. Trad. Sérgio Paulo Roaunet. São Paulo: Brasiliense, 1996.
Carvalho, Alfredo Leme Coelho de. Foco narrativo e fluxo da consciência: questões de teoria literária. São Paulo: Pioneira, 1981.
Genette, Gérard. Discurso da narrativa. Trad. Fernando Cabral Martins. Lisboa: Veja, 1972.
Hutcheon, Linda. Poética do pós-modernismo. Trad. Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago, 1991.
Rosenthal, Erwin Theodor. O universo fragmentário. São Paulo: Companhia da Ed. Nacional, 1975.
Santiago, Silviano. Nas malhas da letra. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
Silva, Maurício. “Antônio Torres e a saga do deslocamento”. Letras & Letras (julho-dezembro 93): 79-88.
Simon, Luiz Carlos dos Santos. Além do visível: contos brasileiros e imagens na era do pós-modernismo. Tese de doutorado. Rio de Janeiro: UFRJ, 1999.
Sodré, Muniz, “Transversais da linguagem”. 25 de maio 2003. <http://www.antoniotorres.com.br/vida&obra.htm>.
Sussekind, Flora. Papéis colados. Rio de Janeiro: UFRJ, 1993.
Torres, Antônio. Um táxi para Viena d’Áustria. 5 ed. Rio de Janeiro: Record, 1991.
 
 

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