Tradução como Aufgabe

Débora Racy Soares
Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP/FAPESP
 
 
1. Walter Benjamin: um filósofo da linguagem

O objetivo deste artigo é refletir sobre a concepção de tradução que norteia os escritos do filósofo alemão Walter Benjamin. Ao pensarmos em tradução em Benjamin, outro conceito importante vem à tona: o de leitura. Como será visto, ambos os conceitos, o de tradução e o de leitura, caminham juntos e perpassam quase todos os escritos do filósofo, alinhavados por uma determinada concepção de linguagem que guarda semelhança com aquela dos primeiros românticos de Iena (os irmãos Schlegel e Novalis) e também com a doutrina da ciência de Fichte.1 Portanto, antes de nos atermos à questão inicial, é preciso entender como Benjamin, que se considerava, antes de tudo, um “filósofo da linguagem”, sobre ela discorreu em seus primeiros escritos (Benjamin, Écrits 41). Para isso, como constata Winfried Menninghaus, há um texto cuja leitura é imprescindível. Trata-se de “Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem humana” (“Über die Sprache überhaupt und über die Sprache des Menschen”), também conhecido por “Sprachaufsatz”, denominação que adotaremos a partir de agora. Redigido na primeira metade de novembro de 1916, o “Sprachaufsatz”, ao lado de “Sobre o programa de filosofia vindoura”, de 1917, definiriam conceitos importantes que seriam determinantes em futuros escritos do autor. Embora de compreensão difícil, estes ensaios fundamentais nos ocupam nesse primeiro momento, ainda que nossa intenção não seja submetê-los a uma leitura exaustiva.

Para Benjamin, a linguagem não é uma particularidade dos homens, pelo contrário, tudo estaria atravessado por uma “linguagem geral”, na qual a humana seria apenas uma  forma privilegiada ou particular de linguagem (Benjamin, Sobre a linguagem 01). Nesse sentido, podemos compreender que Benjamin concebe a linguagem comophysei, em detrimento da tései. Em outras palavras: ele acredita na origem natural, não motivada da linguagem, contrariando a lingüística moderna que aposta na arbitrariedade dos signos lingüísticos. À mesma época em que surge o Curso de Lingüística Geral (1916) de Saussure, fundando as bases da ciência lingüística, Benjamin resgata uma concepção pré-moderna, metafísica e mística da linguagem. Posto de outra forma: ao retomar a “língua pura”, contra Babel, o filósofo recupera também a idéia de Livro do Mundo, a partir do qual tudo (nos) fala. “Toda linguagem comunica-se por si mesma”, antes de ser instrumento de comunicação, daí Benjamin excluir de sua filosofia da linguagem toda concepção instrumental de língua (Benjamin, Sobre a linguagem 07).

No “Sprachaufsatz”, movido pelo impulso redentor, o filósofo pretende recuperar a linguagem primordial, salvando-a do que ele acredita ser sua “função burguesa”, pragmática, comunicativa, decaída. Ao tentar recuperar a linguagem em sua origem – recordamos que o debate em torno dessa questão intensificou-se no final do século XVIII e no início do XIX com o avanço dos estudos filológicos e com o nascimento da gramática comparada das línguas indo-européias – Benjamin convoca Deus como testemunha da faculdade humana de nomear. Ancorado em uma concepção natural de língua, isto é, sem mediações, Benjamin resgata a idéia da língua adâmica ou fundadora, espécie de “língua pura” ou “protolinguagem”, perdida para sempre com a confusão babélica das línguas (Benjamin, Sobre a linguagem 03). Para o filósofo, seria possível “tocar apenas de leve” a língua original, seja através da tradução, da poesia ou da filosofia (Benjamin, A tarefa 42). Em uma das passagens mais interessantes do “Sprachaufsatz”, Benjamin sugere que o homem moderno se aproxima de Deus quando escolhe o nome próprio de seu filho. Ao exercer sua capacidade de nomear – ao “tocar” a língua do Criador, língua que é Verbo – o homem convoca, traz as coisas in praesentia, como no Gênesis, ao dizer “faça-se”. O homem que nomeia “conhece na linguagem mesma na qual Deus é o Criador” (Benjamin, Sobre a linguagem 13).

A partir do “Sprachaufsatz”, compreendemos que, quando Benjamin fala sobre a linguagem humana, três gradações de língua estão pressupostas: (i) a língua criadora de Deus que é Verbo; (ii) a língua nomeadora, paradisíaca, adâmica que se aproximaria da língua divina e (iii) a língua decaída, “burguesa”, na qual os nomes e as coisas não mais coincidiriam (arbitrariedade dos signos). Ainda no “Sprachaufsatz”, Benjamin introduz a questão do caráter mimético da linguagem que seria desenvolvida em ensaios posteriores. Em “A doutrina das semelhanças” (1933), afirma que o aspecto mimético da linguagem teria sido mantido nas onomatopéias como uma espécie de vestígio da língua primordial. Em épocas remotas, o “dom mimético” era o “fundamento da clarividência” e a linguagem “seria a mais alta aplicação da faculdade mimética” (Benjamin,Magia e técnica 112).

Escrito em 1917, um ano após o “Sprachaufsatz”, o ensaio “Sobre o programa de filosofia vindoura” partiria da mesma concepção de linguagem como expressão absoluta que, capaz de nomear, comunica-se não com os homens, mas com Deus. Os comentadores de Benjamin consideram seus escritos iniciais predominantemente teológicos. Segundo eles, o filósofo teria declarado seguir a Bíblia em seu princípio, “pressupondo, com ela, a linguagem como uma realidade inexplicável, mística” (quoted in    Rochlitz 28). A própria tradição alemã de linguagem, alimentada por textos místicos e cabalísticos (Jakob Böhme, Hamann, Schlegel, Novalis, Humboldt), ao lado da influência bíblica, teria contribuído para a concepção de linguagem de Benjamin. Sua formação filosófica, em Berlim e em Friburgo, aconteceu em um momento de forte influência neokantiana, o que teria ressonância no ensaio de 1917. A proposta central da “filosofia vindoura” passaria pelo reexame do “sistema de Kant” (Benjamin, Sobre a linguagem 17). Benjamin procurou, nesse ensaio, preservar certas intuições básicas de Kant, porém destacando-as do contexto iluminista. Em sua opinião, a época das Luzes pode ter proporcionado certa cegueira em relação à religião, desconsiderando a onipotência divina. Se no “Sprachaufsatz” Deus garantia a não instrumentalidade da linguagem, no texto de 1917 Benjamin propõe que a “filosofia vindoura” absorva os princípios teológicos. Em linhas gerais, seu esforço poderia ser resumido como tentativa de integrar à filosofia o conhecimento relativo à religião, mantendo a tripartição kantiana em lógica, ética e hermenêutica. Essa espécie de síntese foi vislumbrada por Benjamin em “Sobre o programa de filosofia vindoura”, mas revelando-se impossível, logo seria abandonada.

O que interessa reter nesse primeiro momento é que a concepção de linguagem que funda o pensamento de Benjamin está ancorada na idéia de uma “língua pura” primordial. Esta língua primeira ou “protolíngua” – totalmente transparente, portanto    compreensível por todos – teria sido perdida depois que o homem foi expulso do paraíso, ou seja, depois da queda. A “tarefa” do homem decaído seria recuperar essa língua original, para sempre perdida, mas que pode ser vislumbrada, por exemplo, através do trabalho de tradução, o que nos conduz ao segundo momento da reflexão.
 
2. Em busca da língua perdida: leituras de “A Tarefa/Renúncia do Tradutor”

Na tradição ocidental, a origem das diferentes línguas é tema do relato bíblico sobre a construção da Torre de Babel. Segundo a interpretação corrente, os homens, desejando alcançar a onipotência divina através da construção da Torre, teriam posto em xeque a autoridade do Pai que, tomado de fúria, os castigaria, condenando-os ao eterno desentendimento com a criação da diversidade lingüística. Do ponto de vista da teoria da tradução, no princípio era Babel: confusão. Expulso da linguagem paradisíaca, ao homem, agora dotado de “senha”, restaria perseguir “resquícios”, restos da língua única que permaneceram depois da queda (Benjamin, Sobre a linguagem 16-18). A verdadeira missão do tradutor seria, para Benjamin, a busca da língua perdida.

“A Tarefa/Renúncia do Tradutor” ou “O Problema do Tradutor” (“Die Aufgabe des Übersetzers”) foi escrito em 1921 e publicado em 1923. Esse ensaio é o prefácio que Benjamin escreveu para acompanhar as traduções de alguns poemas dos Tableaux Parisiens de Baudelaire. Retomando a idéia do caráter não comunicativo da linguagem, desenvolvida no “Sprachaufsatz”, Benjamin a estende para o campo artístico. Nesse sentido, desconsidera a importância do receptor para o entendimento das obras de arte. “Nenhum poema dirige-se ao leitor, nenhuma imagem ao contemplador, nenhuma sinfonia aos ouvintes”. Benjamin parte desse pressuposto que retoma a idéia da arte pela arte e valoriza a autonomia artística para problematizar se a tradução seria “feita para os leitores que não compreendem o original” (Benjamin, A tarefa 38). Em sua opinião, a tradução não teria como alvo o leitor, muito menos a transposição de sentidos de uma língua para outra. Sua concepção de tradução opera contra Babel, isto é, contra a diversidade lingüística, numa tentativa de recuperação da “língua pura” primordial. A língua original que permitia a comunicação com Deus será buscada no esforço tradutório como uma espécie de síntese da dispersão. É certo que essa concepção de tradução inviabiliza qualquer tentativa de tradução, concebida em sentido lato, como transposição. Entretanto, a originalidade das idéias de Benjamin sobre a tradução tem levado muitos especialistas a refletir sobre o assunto, como veremos mais adiante. Por ora, diremos apenas que Antoine Berman, um dos comentadores de Benjamin, teria afirmado que, apesar de ser um grande pensador da tradução, ele nunca teria sido um verdadeiro tradutor, pois suas idéias sobre tradução não são, em absoluto, fundadas sobre uma prática tradutória.

A tradução, para Benjamin, recuperaria aquela “legibilidade absoluta” que caracterizaria a linguagem em geral e a obra de arte em particular. A novidade, em relação ao “Sprachaufsatz” é que agora o filósofo resgata justamente o aspecto da linguagem que escapa à comunicação, conservado no “núcleo central em si próprio intraduzível” (Benjamin, A tarefa 40). A partir de uma visada metafísica, o ensaio de 1923 inaugura um novo conceito de tradução. Em “A Tarefa/Renúncia do Tradutor”, Benjamin faz o caminho contrário ao percorrido no “Sprachaufsatz”, pois parte da diversidade lingüística em busca da unidade, do “núcleo central” análogo a todas as línguas. Portanto, a “tarefa” do tradutor, configurada platonicamente, seria procurar ecos ou “resquícios” da “língua pura”, entrevista na junção “harmônica” de “todos os modos de visar” (Benjamin, A tarefa 39-40). Nesse ensaio de 1923, Benjamin arremata as reflexões finais do “Sprachaufsatz”, onde acenara com a possibilidade de reconstituir a língua primeira a partir das “infinitas” traduções. O desejo do tradutor, do ponto de vista da teoria benjaminiana, seria recuperar o paraíso perdido da linguagem transparente, o que, no limite, conduziria à impossibilidade, ou antes, à não-necessidade de tradução. Ou seja, Benjamin almeja, via tradução, recuperar aquele mundo adâmico figurado no “Sprachaufsatz”. Para isso faz-se necessário um “bom tradutor”, capaz de vislumbrar o “misterioso”, a “magia”, isto é, aquele “caráter imediato” (não-mediado) da linguagem:

Uma tradução que quer comunicar só poderia transmitir a comunicação – logo, qualquer coisa não essencial. E reside aí, também, um dos signos pelos quais se reconhece a má tradução. Mas, o que contém um poema fora da comunicação – e mesmo o mau tradutor convirá que é essencial – não é universalmente entendido como o inconcebível, o misterioso, o “poético”? Aquilo que o tradutor não pode transmitir senão fazendo, ele mesmo, a obra do poeta? Toca-se, aqui, num segundo signo característico da má tradução, que é, conseqüentemente, definida como a transmissão inexata de um conteúdo não essencial. É sempre o caso quando a tradução obriga-se a servir o leitor (Benjamin, A tarefa 38-40).

A partir da citação, entendemos que Benjamin define a “boa tradução” pelo  negativo: ela não deve levar em conta o leitor/receptor, pois sua intenção não é comunicar um sentido, isto é, “qualquer coisa não essencial”. Pelo contrário, a “boa tradução” deve transmitir de forma exata um conteúdo essencial, conteúdo que está muito aquém da compreensão comunicativa. Portanto, a “boa tradução” reverteria o “puro signo”, convertido em “meio” (“Mittel”), em direção à “protolíngua”. Ao questionar se o tradutor de poesia também deveria ser poeta, Benjamin retoma um dos fragmentos de Schlegel: “poesia só pode ser criticada por poesia” (O dialeto 38). E de Novalis: “quem não é capaz de fazer um poema, também só o julgará negativamente. A genuína crítica requer a aptidão de produzir por si mesmo o produto a ser criticado” (Pólen 122). Essas idéias de Schlegel e de Novalis serão refutadas no final do ensaio “A Tarefa/Renúncia do Tradutor”, pois Benjamin reconhecerá que nem sempre “o tradutor de importância é por necessidade um grande poeta” e vice-versa (Benjamin, A tarefa 40). Acrescenta ainda que, embora as “tarefas” do tradutor e do poeta se aproximem, elas são distintas, diríamos até invertidas. Posto de outra forma: enquanto o poeta “nomeador” dá sentido às palavras, trabalhando com a linguagem em estado muito próximo ao da “língua pura”, o tradutor percorreria o caminho inverso. Da confusão à harmonia, isto é, de Babel ao paraíso da linguagem transparente, o tradutor trabalharia com a soma das diversas “intenções” das línguas ou com seus “modos-de-querer-dizer”, visando alcançar a Idéia de língua, a língua absoluta (Benjamin, A tarefa 40). Portanto, do ponto de vista benjaminiano, a “tarefa” do tradutor esbarraria no double bind, fazendo-se necessária, porém impossível.

Seguindo o raciocínio de Benjamin, nos deparamos com a metáfora dos “cacos de um vaso”, que remete à impossibilidade de recuperação do original. Para o filósofo, a tradução não deve pretender imitar ou se “aparentar” ao original. “Nenhuma tradução será viável se aspirar essencialmente a ser uma reprodução parecida ou semelhante ao original”. Pelo contrário, os “cacos” (ou as diferentes línguas) devem “insinuar-se com amor” ao original, sendo “amorosamente” conduzidas para ele (Benjamin, A tarefa 39-41). O original e a tradução são vistos como duas metades de um vaso quebrado, cujo encaixe perfeito não é mais possível. A tradução seria uma tentativa de colar os “cacos” do vaso, mesmo tendo-se consciência de que o ajuste será imperfeito, daí o “problema ou tarefa” do tradutor: aceitar a multiplicidade de línguas. O trabalho tradutório traria a possibilidade de se vislumbrar o vaso em sua perfeita inteireza, antes da queda.

Certa atmosfera melancólica perpassa os primeiros escritos de Benjamin, principalmente os que tratam da filosofia da linguagem e da tradução, pois são elaborados a partir da perspectiva de uma perda original. 2 Logo, em todas as “passagens” tradutórias haveria uma espécie de perda que poderia ser compensada com a conjunção dos diferentes “modos de visar” das línguas – as distintas “traduções” – que, como cacos reunidos, remeteriam à possibilidade de avistar o vaso perfeito. Cada esforço tradutório funcionaria, portanto, como um degrau de acesso ao paraíso da “língua pura”, uma forma de aproximação ao Éden. Como diz Benjamin, isoladas, as línguas não conseguem atingir a totalidade, porém ao “reconciliarem-se quanto à totalidade de suas intenções”, atingiriam a “língua pura” ou a “plenitude”. Nesse sentido, haveria uma “relação íntima e oculta” entre as línguas, certos “resquícios” da língua fundante, orientando o processo tradutório. Mas, como diria Novalis, traduzir/ler já é alterar, o que convoca outras leituras do ensaio “A Tarefa/Renúncia do Tradutor”.

A essa altura, percorreremos, iluminados por Lages (2002), quatro interpretações  distintas do texto de Benjamin. A primeira delas será a de Paul de Man, que parte de Hans Georg Gadamer para estabelecer seus pressupostos de leitura. Para ele, o ensaio de Benjamin é um texto moderno que supera o que denomina “três tipos de ingenuidade”, a saber: (1) “a ingenuidade da proposição”, em que o sujeito não controla seu próprio discurso; (2) “a ingenuidade da reflexão”, que aposta na historicidade da compreensão, não acessível à auto-reflexão individual e (3) “a ingenuidade do conceito”, que conjuga a linguagem filosófica e a linguagem comum. De Man acredita que o ensaio de Benjamin fornece caminhos para se pensar em um resgate da dimensão “esquecida” do sagrado na modernidade. Antes de ser visto como um texto religioso ou messiânico, De Man quer ver na “Tarefa/Renúncia do Tradutor” um “malogro exemplar”. Em sua opinião, “o tradutor nunca pode fazer o que o texto original fez” e “qualquer tradução é sempre inferior em relação ao original”. É por isso que a verdadeira missão do tradutor é “desistir da tarefa de redescobrir o que estava no original”. Assim, para De Man, na “língua pura” (“reine Sprache”) benjaminiana já estaria inscrito o “malogro” da tradução, do qual só nos damos conta quando traduzimos (105-109). A infelicidade tradutória decorreria da inconsciente alienação em relação à nossa própria língua, pois ela seria percebida somente diante da necessidade de (ultra)passagem por outra língua. Em De Man, a passagem por outra língua, ou seja, a tradução implica sempre a destruição do original, o que tornaria, por princípio, a recuperação da “língua pura” impossível. Como intérprete de Benjamin, o autor quer ver traçado um horizonte mortífero na experiência da tradução. Em outras palavras, para ele a tradução não “pertence à vida do original, o original já está morto”, mas “pertence à vida póstuma do original, assumindo e confirmando assim a morte do original” (114). Esclarece também que a imagem do vaso quebrado retoma uma idéia da cabala luriânica, porém sinaliza a dificuldade ou impossibilidade de recuperação da totalidade originária. Contrária à tradução, a imagem cabalística prometeria alguma forma de reparação, de harmonia final. Para De Man, a “língua pura” de Benjamin só poderia existir como “disjunção permanente que habita as línguas”, incluindo a nossa (122).

O próximo comentário é sobre a leitura de Jacques Derrida, que retoma o mito de Babel e um tema clássico na exegese do Antigo Testamento: a questão do nome de Deus e de sua tradução. A partir de uma inflexão psicanalítica, Derrida concebe Babel como “arquimito”, isto é, mito da origem do próprio mito sobre a origem das línguas e da tradução. A questão da tradução do nome de Deus é central em sua reflexão e remete justamente à passagem do Antigo Testamento em que Deus comunica seu nome secreto – JHWH – a Moisés. A tradução do nome secreto de Deus, “sou aquele que sou” ou “serei aquele que será” constitui um dos problemas mais antigos da tradução. A tradução, para Derrida, figuraria entre o nome de Deus, impronunciável, e Babel, seu nome pronunciável, constituindo uma “luta de apropriação do nome, necessária e interdita no intervalo entre os dois nomes próprios” (65). Para Derrida, as teorias que concebem a tradução como passagem de uma língua para outra geralmente tendem a desconsiderar os “resquícios” ou traços comuns inerentes a todas as línguas. A intraduzibilidade do nome Babel que provém de uma língua bíblica desaparecida, mas que está presente em todas as línguas da tradição ocidental, leva Derrida a entender a tradução em seu duplo vínculo (ou double bind) como lei e interdição. Portanto, o tradutor teria uma dívida com o original e sua “tarefa” (“Aufgabe”) seria devolver, reconstituir algo que teria sido doado, isto é, um dom (“Gabe”) dado (“geben”: verbo dar).3 Derrida fala ainda em “contrato de tradução”, comparando-o ao “hímen ou contrato de casamento”, em que a dimensão do intocável, do inatingível orientaria o trabalho do tradutor. Em sua opinião, a “tarefa” do tradutor seria intervir “falicamente” no texto “virgem” para produzir “sementes”. O tradutor seria um semeador do texto original que, após sua passagem, se tornaria “ainda mais virgem” (72-77). Para Derrida, a tradução não seria apenas responsável pelo crescimento do original, mas também por sua purificação. O original ou o texto “virgem” passaria por um processo de transformação, metamorfose necessária para sobreviver (“Überleben”) e para continuar vivendo (“Fortleben”) sob a forma de tradução. Nesse sentido, retomamos uma passagem do ensaio “A Tarefa/Renúncia do Tradutor”, em que Benjamin afirma: o “original se modifica necessariamente na sua “sobrevivência”, nome que seria impróprio se não indicasse a metamorfose e renovação de algo com vida” (39).

Já a metáfora do vaso quebrado é entendida como símbolo, do grego symbolon: partes fragmentadas de um todo a ser recomposto em benefício do reconhecimento mútuo. A “língua pura”, que deve aparecer na tradução, não seria nem universal nem natural, mas o ser-língua da língua, isto é, a língua enquanto tal, “unidade sem qualquer identidade consigo mesma que faz com que haja línguas e que elas sejam línguas” (Derrida 78-79). A opinião de Derrida, no que concerne à relação entre o original e a tradução, diverge da de Paul de Man. Para Derrida, a tradução não deve ser encarada como texto inferior ou secundário, pois a dívida, isto é, a necessidade de devolução de algo constitui o texto original, inscreve-se nele como “tarefa”.

Haroldo de Campos, ancorado na corrente crítica do pós-estruturalismo, parte das reflexões do lingüista Roman Jakobson e da poética de Ezra Pound para demonstrar que Benjamin inverte a relação hierárquica tradicional entre o texto original e o traduzido. Nas trilhas de Derrida, também acredita que o texto traduzido não é inferior ao original. Pelo contrário, o que Benjamin estabelece com seu novo conceito de tradução, diz Campos, é a inversão da “relação de servitude” entre os textos. Nesse sentido, Haroldo de Campos alinha-se a Benjamin como crítico mordaz das traduções na linha da tradição das “belles infidèles”. Essa tradição valoriza a função semântica dos textos, pois acredita na idéia da tradução servil ou da tradução literal dos sentidos e desvaloriza o texto traduzido por considerá-lo infiel ao original. Para Campos, essa tradição “ingênua” ignora que os textos semanticamente menos densos servem melhor à tradução. Em sua opinião, a “tarefa” do tradutor deve ser encarada como uma missão “luciferina”, capaz de transformar o original na tradução de sua tradução (179). Ao retomar a definição de Benjamin de tradução pelo negativo ou “transmissão inexata de um conteúdo inessencial” e a de Pannwitz que aposta na literalidade extrema da tradução, Haroldo de Campos entende que a comunicação de conteúdos informativos escaparia ao texto poético. Segundo ele, esse tipo de texto se construiria pela recusa ao “logos tirânico da razão normativa” e pela “dissolução da função comunicativa numa bruma de significantes”. Para o crítico brasileiro, a teoria da tradução de Benjamin é “radical”, porém “semioticamente pouco elaborada” (88). Campos vê a “língua pura” benjaminiana como um gesto logocêntrico, empenhado em presentificar um objeto originário ausente, alheio ao fluxo da história. Nesse sentido, se fosse possível recuperar a “língua pura”, o objeto originário ausente, o tradutor correria o risco de cair no abismo do silêncio, onde todas as línguas babélicas se calariam para contemplar a língua absoluta. Lages, outra comentadora do texto benjaminiano, entende que a “tarefa do tradutor” pode ser concebida como um empreendimento angélico que articula todas as línguas em direção à “língua pura”, lugar de síntese, de reconciliação das diferenças. Haroldo de Campos, por outro lado, entende a intervenção do tradutor como um gesto “luciferino”, “satânico” ou “mefistofáustico” que só faria dessacralizar o texto original (179-209). A passagem do tradutor pelo texto já significaria a impossibilidade de recuperação da pureza ou de sua aura original. Se, para Derrida, o tradutor é capaz de tornar o texto original ainda mais puro, para Campos sua passagem tão-somente o tornaria mais maculado, mais corrompido.

Jeanne Marie Gagnebin lê o ensaio de Benjamin a partir de dois conceitos-chave: a origem e a história. O primeiro deles (“Ursprung”) deve ser entendido como um conceito histórico que remeteria “a uma promessa de totalização e à sua própria impossibilidade de realizar-se como totalidade acabada” (Gagnebin 11). Nesse sentido, a “tarefa do tradutor” estaria marcada pela precariedade do regresso ao momento original ou impossibilidade de recuperação da “língua pura”. A “verdade das línguas” estaria, para Gagnebin, não no retorno à língua ideal, mas no “intervalo doloroso” das “diferenças entre as línguas” que o tradutor “pretende, à primeira vista, preencher” (35). Em outras palavras, “para que o original possa perdurar ele tem de sofrer transformações, passar de uma forma a outra”. A passagem de uma “forma a outra”, ou as várias traduções, funcionariam como promessas de preenchimento do vazio da língua primeira. Se, para Campos, a “língua pura” plasmava-se na não-temporalidade, para Gagnebin, a origem é um “instante historicamente situado” que só pode ser resgatado a partir do presente (30-35). Para a autora, o entendimento de Babel demanda uma perspectiva histórica que contribui para iluminar e transformar o presente.
 
3. Tradução como Aufgabe

Benjamin concebe o mundo como linguagem, como uma espécie de escritura que precisa ser lida, portanto traduzida. Para ele seria impossível imaginar um mundo onde houvesse “total ausência de linguagem” (Sobre a linguagem 02). Sua concepção semiotizada do mundo demanda a procura pelos sentidos, opacos e perdidos na confusão entre as línguas, depois de Babel. Portanto, leitura ou tradução seria essa eterna busca pelos sentidos que não são mais transparentes. Aquele sentido absoluto, transcendental, capaz de fixar um significado foi perdido para sempre, o que conduz a linguagem a uma espécie de “tagarelice” essencialmente comunicativa, onde tudo é significante, mas os sentidos sempre escapam. “Não estamos mais no tempo no qual o espírito de Deus era compreensível. O sentido do mundo foi perdido. Nós paramos na letra”, diz Benjamin (quoted in Seligmann-Silva 30). A leitura ou tradução do mundo revela o esforço de recuperação, não do sentido original, perdido, mas de outros sentidos possíveis. Isso significa que, em Benjamin, o trabalho de tradução e de leitura é, a priori, encarado como perda do sentido original. É como se Babel representasse uma espécie de punição lingüística que instauraria a multiplicidade de línguas, condenando o homem, como um Sísifo moderno, à eterna tradução. Mallarmé, assim como Benjamin, também desejava uma língua suprema, considerada a verdadeira. Ambos, poeta e filósofo se aproximam quando a “tarefa” parece impossível. Benjamin sabia que sua “língua pura” estava “muito perto e mesmo assim infinitamente distante” (A tarefa 39-41). “Muito perto” como imprint nas diversas línguas, “infinitamente distante” como possibilidade de re-união de todas as línguas pós-babélicas. Portanto, a “tarefa” do tradutor/leitor convoca o perto e o distante como esforço infinito e conjunto. Nesse sentido, a leitura ou tradução do ensaio “A Tarefa/Renúncia do Tradutor” funciona como ponto de partida para outras leituras, convergentes ou divergentes. A atuação em conjunto amplia o sentido do texto de partida, seja através da perspectiva infeliz da “falência” tradutória em De Man ou da tradução dádiva-dívida a ser purificada em Derrida, seja através da investida “luciferina” de Haroldo de Campos – e “angélica” de Lages – ou ainda da proposta histórica transform-ativa de Gagnebin. Como diz Derrida, a perspectiva benjaminiana de tradução “promete um reino de conciliação às línguas”, como se fosse possível anular Babel ou a multiplicidade lingüística (64). Apoiado na metáfora romântica do mundo como livro, o que exige, a todo tempo, o esforço de leitura/tradução, Benjamin ensina que não há uma chave que dê acesso à escritura cifrada. Pelo contrário, o sentido foi perdido e caberia aos tradutores, filósofos e artistas (re)significar o mundo. Enfim, a “tarefa”/ “Aufgabe” está lançada e, ainda que se configure também como renúncia, é preciso aprender a aceitar esse dom (“Gabe”) e a conviver com o double bind.
 
 
Notas

1Para um estudo aprofundado dessas relações, consultem Seligmann-Silva (1999).

2 Nesse sentido, confiram o trabalho de Lages (2002).3A dificuldade da tarefa do tradutor inscreve-se na própria palavra Aufgabe, que aponta, ao mesmo tempo, para a tarefa (Aufgabe) e para a renúncia ou abandono (Aufgeben) da tradução. Portanto, a tarefa do tradutor equilibra-se na corda bamba do double bind: entre a necessidade e a impossibilidade de sua concretização.
 
 
Bibliografía

Benjamin, W. (1916) “Sobre a linguagem em geral e a linguagem do homem”. Tradução de Susana Kampff Lages, p. 01-18. No prelo.

______________. (1923) “A tarefa do tradutor”. Tradução de Fernando Camacho. In: Humboldt, São Paulo: Goethe-Institut, vol.40, 1979, p.38-45.

______________. “Meu lugar muito particular de filósofo da linguagem”. In: ________. Écrits autobiographiques. Tradução de C. Jouanlanne e J.F. Poirier. Paris: Christian Bourgois, 1990, p.40-43.

______________. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. (Obras escolhidas, vol.1). Tradução de Sergio Paulo Rouanet. Prefácio de Jeanne Marie Gagnebin. São Paulo: Brasiliense, 1994.

Campos, H. “A Poética da Tradução”. In: ________. A Arte no Horizonte do Provável. São Paulo: Perspectiva, 1977.

___________. “Post-scriptum: transluciferação mefistofáustica”. Deus e o Diabo no Fausto de Goethe. São Paulo: Perspectiva, 1981.

De Man, P. “Conclusões ‘A Tarefa do Tradutor’ de Walter Benjamin”. In: ________. A Resistência à Teoria. Tradução de Teresa Louro Pérez. Lisboa e Rio de Janeiro: Edições 70, 1989.

Derrida, J. Torres de Babel. Tradução de Junia Barreto. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.

Gagnebin, J. M. “Origem, Original, Tradução”. In: __________. História e Narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva, FAPESP, Editora da UNICAMP, 1994.

Lages, S. K. Walter Benjamin: Tradução e Melancolia. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2002.

Novalis (Friedrich von Hardenberg). Pólen. Fragmentos, diálogos, monólogo. Tradução, apresentação e notas de Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Iluminuras, 1988.

Rochlitz, R. O Desencantamento da Arte. Tradução de Maria Elena Ortiz Assumpção. Bauru, SP: Editora da Universidade do Sagrado Coração, 2003.

Schlegel, F. O dialeto dos fragmentos. Tradução, apresentação e notas de Márcio Suzuki. São Paulo: Iluminuras, 1997.

Seligmann-Silva, M. Ler o livro do mundo. Walter Benjamin: romantismo e crítica poética. São Paulo: Iluminuras, 1999.

 
 

'Tradução como Aufgabe' has no comments

Be the first to comment this post!

Would you like to share your thoughts?

Your email address will not be published.

Images are for demo purposes only and are properties of their respective owners.
Old Paper by ThunderThemes.net

Skip to toolbar