O gesto narrativo: interações polifônicas

Gabriela Reinaldo
Universidade de Fortaleza
 
 

… questo sogno di raccontare era certamente parallelo al sogno di Tantalo, che era quello di ‘mangiare. . . quasi’, di arrivare a portare il cibo alla bocca ma di non riuscire a morderlo. E’ il sogno di un bisogno primario, il bisogno di mangiare e bere. Cosi era il bisogno di raccontare. Era, gia li, un bisogno fondamentale. (Primo Levi, entrevistado por Ferdinando Camon sobre sua compulsão de narrar os horrores vividos em Auschwitz).

 

Quem quer que me escute, perde a razão, fica embriagado, não importa o domínio que guarde de si mesmo. (Farid Ud-din Attar, A linguagem dos pássaros).

 
 
Interessado pela capacidade narrativa do escritor russo Nikolai Lesskov (1831-1895), Walter Benjamin diz no primeiro parágrafo de seu “O Narrador”: “Descrever Lesskov como narrador não significa aproximá-lo de nós, mas, pelo contrário, aumentar a distância que nos separa dele” (1992:27). Esse tom desesperançoso já aparecia em “Experiência e Pobreza”, escrito três anos antes: “Quem encontra ainda pessoas que saibam contar histórias como elas devem ser contadas?” (1994:114). N´”O Narrador”, Benjamin segue confirmando este distanciamento, esta perda da capacidade narrativa, que tem seu momento ápice não no nascimento do romance, mas no surgimento de uma nova forma de comunicação também nascida no domínio da burguesia e ascensão do capitalismo, mas que surge como uma ameaça ao próprio romance: a informação. “Se a arte de narrar tem vindo tem vindo a rarear, a divulgação da informação tem contribuído decisivamente para isso”. E continua: “Cada manhã somos informados do que acontece em todo o mundo. E, no entanto, somos tão pobres em histórias maravilhosas!” (1992:34). Escritos na década de 1930 – “Experiência e pobreza” é de 1933 e “O Narrador” escrito entre 1928 e 1935 e publicado em 1936 – estes ensaios refletem o clima de mudez e angústia dos sobreviventes da Primeira Grande Guerra e são basilares para os estudos sobre o tema da narração.

Existem muitas razões para que narremos. Narramos para organizar os fatos. Narramos para dar sentido ao tempo (o que importa, para a performance narrativa, é o caráter temporal da experiência humana, no dizer de Ricoeur, como veremos a seguir). Como Sherazade – nome que significa nascida na cidade – narramos para civilizar. Com suas histórias, a filha do vizir esvai a pungência matadora de Shahryar. Também como ela, narramos para seduzir; ou para persuadir, como quer a Oratória. Narrar é estetizar, de algum modo, o vivido. Narramos para determinar, narramos para dar coerência ao mundo, para justificar a existência humana tão carente de justificativa. É por trabalhar com a fabricação de sentido que as histórias infantis, assim como os mitos, criam estruturas modelares a serem seguidas. Nelas, o bem não se confunde com o mal e a vitória das forças da luz está determinada já na partida. Deste modo, os contos maravilhosos são como amuletos que orientam a passagem, dando segurança à travessia. Ninando, como Sherazade o fazia com o seu bicho-papão, as histórias infantis facilitam a entrada da criança no reino de Thanatos, deus do sono e da morte.

As de trancoso, ao contrário, não se propõem a exorcizar nossos medos, mas a canalizá-los. Narrativas assim são como fechos de luz que projetam para uma tela externa uma película que acontece dentro das nossas cabeças, compartilhando com nossos pares uma série de figuras arquetípicas, trazendo à luz personagens e histórias que costumam aparecer apenas em sonhos, nos colocando em contato com um universo onírico, com estruturas profundas da psique. Cenas que, uma vez justapostas, como demonstrou Eisenstein com suas experiências com a montagem fílmica, manipulam tempo e espaço criando novos significados. Para o pensamento mágico, as fórmulas oralmente recitadas ou cantadas afastam os maus espíritos, trazem a bonança, equilibram energias, promovendo a cura. O Xamã evoca o momento que inaugurou o mal, a chaga, o cancro, o seu nascedouro, para que dele se possa extrair o remédio. Cura pela narrativa que também, embora de outro modo, é prevista pela Psicanálise. A elaboração de um discurso narrativo passa pelo re-encontro (e, por sua vez, re-modelagem) com o registro original. Vivência que está em permanente movência, que se desloca, por que se estrutura como narração. Para a Psicanálise, o que chamamos de realidade é resultado da nossa construção narrativa.

A narrativa, com seu processo terapêutico de reconstituição das experiências vividas, também pode funcionar como uma forma de redenção. Graças a ela, o presente re-inventa o passado garantindo a construção de um futuro possível. Narrando, podemos operar a criação de novos liames de causa e efeito, remodelá -los e mesmo invertê-los. É este o propósito de Desenredo, como o título sugere: um enredo que se tece destecendo, desenredando-se, que tem como princípio a desconstrução a partir da distorção da lógica ordinária. Conto de Tutaméia, nele, Jó Joaquim é o herói “amatemático, contrário ao público pensamento e à lógica, desde que Aristóteles a fundou” (40). De paciência bíblica, o Jó dessa história reconta sua vivência amorosa de modo a perdoar a amada, inventando um outro vivido: “Entregou-se a remir, redimir a mulher, à conta inteira”. Em outro momento: “Nunca tivera ela amantes! Não um. Não dois. Disse-se e dizia isso Jó Joaquim. Reportava a lenda a embustes, falsas lérias escabrosas” (39). Aqui, Guimarães Rosa inverte o sentido de história e estória. A que se deu de fato, a história, vira lenda, léria. A que seu personagem compõe para si e a amada, a realidade mais alta: “criava nova, transformada realidade, mais alta”. Tutaméia, que tem como subtítulo Terceiras estórias (sem que na obra de Rosa apareçam as segundas histórias, sendo Primeiras estórias publicado em 1962 e as Terceiras em 1967), como o autor explica, é nonada, é ossos-de-borboleta. É chorumela (G. Rosa também usa esse termo como sinônimo de Tutaméia) que permite Rosa dizer que “Jó Joaquim, genial, operava o passado – plástico e contraditório rascunho”. É quando o narrador – e não é sem razão que Rosa inicia Desenredo com “Do narrador a seus ouvintes” – encerra com “Pois, produziu efeito. Surtiu bem. Sumiram-se os pontos das reticências, o tempo secou o assunto” (40). Já não interessa o vivido, mas o contado.

Segundo Michael Hanke, a narrativa se dá em dois níveis, o ato de fala, que na língua inglesa é chamado de story, e o que faz referência aos acontecimentos, objetos e circunstâncias, a history. “Através do ‘story’, que conta e seleciona os detalhes relevantes, a ‘history’ se torna acessível” (118). Para Guimarães Rosa, “a estória não quer ser história. A estória, em rigor, deve ser contra a História”, afinal “a vida também é para ser lida. Não literalmente, mas em seu supra-senso” (Tutaméia 3-4). É este supra-sentido – a “realidade mais alta” de que fala a história (ou estória) de Jó Joaquim – a matéria-prima de uma das mais primitivas formas de narração: os mitos. De acordo com Mircea Eliade, mitos são histórias sagradas e verdadeiras que narram como determinado cosmos surgiu, no tempo fabuloso das origens, graças à ação de seres sobrenaturais. Segundo ele, o homem religioso distingue com clareza os mitos dos outros tipos de narrativa. Os primeiros ocupam-se de temas relevantes, como os pares vida e morte, o renascimento, a reprodução, a alimentação, as fases da vida, a mudança de status social dos indivíduos, o plantio e a colheita, enquanto que os contos e lendas servem como forma de entretenimento por relatar situações ditas profanas, uma vez que não contribuem significativamente com as atividades vitais da comunidade.

O mito é um tipo de narrativa que, segundo Eliade, discorre sobre uma história verdadeira pois “só fala daquilo que realmente aconteceu, daquilo que se manifestou plenamente” (1989:13). Ou seja, o mito cosmogônico é verdadeiro por que o cosmos está aí para o comprovar. Assim como mortalidade do homem prova que é verdadeiro o mito da origem da morte. Marcel Detienne, discorrendo sobre o par mythos e logos, afirma que é possível falar de verdade no mito por que este sempre relata uma situação que aconteceu in illo tempore. Este tempo fabuloso das origens de que trata Eliade, é, segundo Detienne, o que garante o distanciamento entre o narrado e o narrador, excluindo deste a responsabilidade sobre o enunciado. O estatuto de verdade é garantido, por assim dizer, graças à separação e independência entre a criação mítica e o ato de sua exposição. Por lidar com uma verdade transcendente, não se pode, no mito, falar de uma realidade empírica, mas de uma verdade prescritiva.

Vale lembrar aqui o conceito de homo narrans de Walter Fisher, que inverte os paradigmas tradicionais assentados na razão. Para ele, o ser humano antes de se constituir como animal racional deve ser compreendido como um storyteller. Segundo Fisher, a racionalidade estaria, então, condicionada pela coerência e fidelidade das histórias que contamos. Primeiro examinamos a coerência narrativa para determinar se as histórias fazem sentido dentro do nosso universo cultural, de acordo com nossos valores. Então, checamos sua fidelidade. É quando verificamos a relação dessas narrativas com nossas crenças e experiências para saber se serviriam como “portraits” do mundo em que vivemos. O que chamamos de realidade seria uma coleção, uma seqüência das histórias que escolhemos.

Assim, o mito não oferece um saber concreto, mas um código que permite produzir saber a partir da observação e interpretação do real (Detienne 96). As narrativas míticas possibilitam mecanismos de leitura simbólica do real. Ao contrário dos progressos da ciência que operam levando em conta o que escapa aos paradigmas estabelecidos, que os desafia, uma vez que o logos para chegar ao conhecimento lida com contradições e acontecimentos aberrantes, os acontecimentos narrados pelos mitos inserem-se numa estrutura pré-existente, que obedece à sua ordem constitutiva desde sempre, desde o tempo ab initio. Ou seja, o homem não é sujeito do conhecimento. A verdade, no mito, é produzida de forma transcendente e divina. Ao homem não cabe gerá-la, mas reproduzi-la ritualisticamente. Vale ressaltar que o homem religioso não pode ser entendido, deste modo, como anterior e inferior ao homem (dito) não religioso. Ele não é um mero reprodutor de dogmas, um sujeito passivo em relação aos fatos e à produção do conhecimento. Ao contrário, ele se crê portador de um poder ativo por interferir positivamente no real por meio de seus ritos. É certo que, num determinado momento, mito e logos se equivalem pois produzem não as mesmas afirmações sobre os fenômenos do mundo, mas, ainda que de forma antitética, sistemas de compreensão ou modelização do real.

No filme The Passenger (1975), de Antonioni, há um momento revelador do descompasso entre o pensamento mítico e a racionalidade ocidental, da dificuldade de trânsito, de tradução, de um para o outro quando se leva em conta os moldes da narrativa midiática. No filme, Jack Nicholson é David Locke, um repórter que se ocupa dos conflitos que ocorrem na África, num país indeterminado, na região do Saara. Debaixo de uma tenda, sob um sol escaldante, o herói tenta, sem êxito, entrevistar um curandeiro para compor seu documentário. Ele questiona por que alguém que foi criado para exercer a função de curandeiro dentro de sua tribo teria ido viver durante tantos anos em países como a França e a Iugoslávia. O entrevistado, sentado no chão, pára de se abanar e abaixa a cabeça enquanto o repórter continua “Isso mudou sua forma de ver alguns costumes tribais?” Ele levanta os olhos sem que em momento algum dirija seu olhar para a lente da câmera, como se a evitasse, e então se fixa no ponto onde supostamente está o seu entrevistador (que não aparece nesta hora) enquanto o outro continua: “Eles (os costumes) agora não lhe parecem falsos e talvez errados para a sua tribo?”. É quando o curandeiro finalmente, responde: “Sr. Locke, há respostas perfeitamente satisfatórias para todas as suas perguntas”. Faz-se uma pausa, a câmera avança lentamente aproximando-se do enquadramento do seu rosto. E continua: “mas não creio que possa compreender o quão pouco você pode aprender com elas”. Outra pausa: “Sua pergunta revela muito mais sobre você mesmo do que minha resposta poderia dizer de mim”. O repórter insiste dizendo que suas perguntas são sinceras. O entrevistado diz que só poderão ter uma conversa se levarem em conta não apenas o que o repórter acha sincero, mas também o que ele mesmo considera honesto. Enquanto o personagem de Nicholson argumenta em concordância, o curandeiro se levanta abandonando o foco da cena e como se ele tirasse a câmera do domínio do seu entrevistador aponta-a de assalto para ele. Visivelmente incomodado e surpreso por estar, agora, de frente para a lente da câmera, a personagem de Nicholson tenta se equilibrar de cócoras sem saber se se fixa na câmera ou no seu interlocutor que nesta hora lhe diz: “Agora podemos ter uma entrevista. Você pode me perguntar as mesmas coisas de antes”. Hesitante por um momento, sem ter se recuperado do susto, o repórter resolve desligar a câmera.

Assim como em Blow up (Antonioni 1966), The Passenger evoca a temática do que pode ser visto e do que é simplesmente sugerido. Há algo que acontece fora da tela, além dos limites do quadro, enquanto as imagens desfilam aos olhos do espectador no primeiro plano. Nesta tentativa de entrevista entre um homem religioso que não vê sentido nas perguntas do repórter e um herói (este, um repórter e documentarista, portanto alguém domesticado pela civilização do olhar) que vê sua objetividade sendo colocada em xeque, instaura-se o silêncio. Há, nas pausas, no aparente enfado sugerido pela gestualidade do curandeiro, no movimento de uma câmera que muda de foco sem ser desligada dando a idéia de um tempo que se esgarça, que é regido por outro ritmo, a sensação de fastio. O que faz com que cada um preencha, a seu modo, o quanto possível, o vácuo produzido pelo encontro entre esses dois mundos, duas forma de valoração e de medida de tempo. O que separa estas personagens do filme de Antonioni produz no espectador uma certa desolação, um vazio. Nada mais sobre esta cena é dito em todo o filme. O Saara não é simplesmente o cenário desta parte da história. Como em Lawrence da Arábia, o deserto é a principal personagem que contracena com o herói. O outro, o que vem da imensidão das areias, que têm a mesma vastidão mítica do oceano que abriga Moby Dick, faz com que as narrativas de algum modo se encontrem e se traduzam entre si. O tempo é completamente diferente. Há uma outra dimensão, épica, mítica, no filme de Lean que toca no tema da Primeira Grande Guerra mas de modo diferente do que o faz a História oficial.

O homem moderno – ou, como quer Eliade, o homem não religioso – é resultado da Revolução Francesa, da Revolução Industrial, dos progressos das técnicas de linguagem, das técnicas de transporte, das de produção, da comunicação de massa, dos movimentos feministas, movimentos pacifistas, ou seja, do que se passou historicamente. Ele é filho da História com H maiúsculo. Ao contrário, para o pensamento mito-poético, o homem caça, procria, planta, constrói sua moradia ou parte como nômade de acordo com o vôo de um pássaro ou ouvindo o aviso das águas por que foi assim que aconteceu num passado ancestral, genético, tempo em que não havia tempo. A narrativa histórica é essencialmente interpretação. Ela é passível de análise e pode ser modificada não apenas de acordo com as descobertas arqueológicas, por exemplo, mas também segundo as ideologias. Enquanto que a sobrevivência do homem moderno, produto do curso da História Universal, não depende diretamente de que ele a conheça e a narre em sua inteireza e verdade – até por que a verdade é uma verdade representativa, consensual – a do homem religioso está intimamente ligada à permanente reatualização de sua narrativa. Para o homem religioso, as narrativas míticas não apenas relatam o começo fulcral que deu origem ao que ele é hoje, mas garantem que este momento germinal possa ser indefinidamente resgatado.

As narrativas míticas não são mecanismos que os homens criaram para entender os começos, para explicá-los. A proximidade com o Fiat lux, com a palavra geradora, palavra que instaura, ultrapassa o desejo de compreensão. A narrativa mítica quer a experiência direta com este começo arquetípico. Narramos para nos tornar co-participantes do ato criador. Narramos para que o ato narrativo seja um ato de co-responsabilidade taumatúrgica de fabricação do real. Narrar imprime ação ao que foi nomeado. Com os mitos, narramos também para nos igualar aos deuses. “O homem primitivo não mira a natureza com os olhos de um naturalista que deseja classificar as coisas para satisfazer sua curiosidade intelectual”, diz Ernst Cassirer (127). Enquanto o pensamento analítico pretende descrever e explicar a realidade classificando-a e sistematizando-a, a visão mítica é sintética e totalizante. Ela não se coloca livremente diante do conteúdo da percepção para analisá-lo por meio de uma reflexão consciente. O homem primitivo não expressa seus afetos com símbolos abstratos, mas de modo imediato e concreto.

Em O homem que confundiu sua mulher com um chapéu, quando Oliver Sacks se questiona sobre que qualidades da mente, que tipo de índole dá aos doentes mentais “essa pungente inocência, transparência, integridade e dignidade” ele responde prontamente “se tivermos de usar uma única palavra aqui, ela terá de ser ‘concretude’”. E continua: “o mundo dessas pessoas é vívido, intenso, detalhado e contudo simples, precisamente por ser concreto” (194). Segundo o neurologista, essa concretude tão discriminada pelos seus colegas é “um caminho para as emoções, a imaginação e o espírito” (196). Vale ressalvar que não nos propomos a comparar categorias tão distintas como crianças, selvagens e doentes mentais. Contudo, existem “importantes afinidades” como ressalta Sacks, entre o que Piaget revelou sobre a mente humana, Lévi-Strauss sobre a mente do selvagem e o mundo dos doentes mentais e é sobre elas que queremos nos debruçar no que diz respeito à narrativa.

Segundo Sacks, existem duas formas de pensamento: o esquemático e o narrativo. O primeiro, também chamado de conceitual ou paradigmático, é responsável pela percepção de padrões e resolução de problemas. É o que nos faz atravessar uma rua com segurança e aprender noções como esquerda e direita, cima e baixo. É o pensamento paradigmático que nos permite poder voltar para casa depois de uma volta no quarteirão ou conferir o troco. Já a narrativa está relacionada com as emoções, com nossa capacidade simbólica e poética. Com vocação à concretude, a narrativa vem primeiro, tem “prioridade espiritual”, diz Sacks (204). É por isso que crianças muito pequenas podem compreender temas complexos como morte, vida, traição, amor, vingança e perdão quando apresentados em forma de parábolas.

Narrar não se limita à transmissão de informações. A atividade narrativa é essencialmente intertextualidade, interação e polifonia. Deste modo, a idéia de autoria é relativizada. Embora reveladoras de valores, desejos e medos individuais, as narrativas não se constituem em atividade monológica. Ao contrário, são um dos mais eficazes instrumentos de sociabilidade. É inerente ao jogo narrativo o desejo de compartilhar. A construção narrativa pressupõe dialogia. Nessa arena, como sublinha Bakhtin, todo signo é duplo. O narrador está sempre se mirando no olhar do seu interlocutor. Mesmo no sonho, segundo Bakhtin, o evento lingüístico é a atualização entre sujeitos históricos e sociais. Quando falamos, levamos sempre em conta a palavra do outro, que está presente na nossa, que a condiciona. As experiências (ou fantasias) individuais tornadas públicas requerem certa sintonia entre aquele(s) que as fabrica(m) e o(s) que as recebe(m). É preciso a cooperação do ouvinte para que o narrador obtenha êxito.

Em Grande sertão: veredas, Riobaldo, herói e narrador do romance, pede ao seu interlocutor: “o senhor escute, me escute mais do que eu estou dizendo; e escute desarmado” (Rosa 86). Ele quer ser escutado além do que sua fala diz. Sua narração não se fia na memória, mas também no que inventa “O que sinto, e esforço em dizer ao senhor repondo minhas lembranças, não consigo; por tanto é que refiro tudo nessas fantasias” (219). Depende da interação com seu interlocutor o sentido de sua história, que se confunde com o sentido de sua vida: “O senhor pense, o senhor ache. O senhor ponha enredo.”. (234). Ele não quer apenas a atenção do outro, seu julgamento. A narrativa de Riobaldo é um vetor de organização do seu pensamento. “Ai, arre, mas: que esta minha boca não tem ordem nenhuma. Estou contando fora, coisas divagadas”. Quando, então, pergunta: “no senhor me fio?” (19).

Mas esta dependência entre narrador e ouvinte tem sua sombra. Ao mesmo tempo em nos oferece o conforto da partilha, em que nos faz comungar com o outro suas experiências ou suas fantasias – que ecoam um pouco como se também fossem nossas – também atordoa pelo medo do isolamento. É o que conta Primo Levi quando aprisionado em Auschwitz. Nos sonhos – que soube depois terem sido também sonhados por muitos dos seus companheiros – era recorrente a alegria do retorno. Mas esta felicidade intensa era ameaçada drasticamente pela falta de ouvintes interessados em compartilhar com ele as suas experiências. Entrevistado entre 1982 e 1986 por Ferdinando Camon, Primo Levi confessa:

Allora, nel Lager, facevo spesso un sogno: sognavo che tornavo, rientravo nella mia famiglia, raccontavo e non ero ascoltato. Colui che mi sta davanti non mi sta a sentire, si volta e se ne va. Ho raccontato questo sogno, in Lager, ai miei amici, e loro hanno detto: ‘Capita anche a noi’ (Autoritratto 50).

O que aturdia Levi? Os horrores que ele testemunhou nos campos de concentração eram insuficientemente plausíveis para serem contados? (se lembrarmos das lições de Pirandello, a ficção não pode ser fiel à realidade sob pena de não ser convincente). Ou estariam as pessoas fugindo da manutenção de uma memória que, para desespero do sonhador, queria ser evitada? N´O Narrador, o também judeu W. Benjamin especula: “Não é verdade que no final da guerra as pessoas voltaram mudas dos campos de batalha?” (1992:28).

É esse laço de aceitação, de confiança mútua que precisa se instaurar quando a performance – no sentido mesmo do jogo – tem início e que continua ecoando quando ela se desfaz que, do mesmo modo que atraía as pessoas ao redor de uma fogueira, as leva hoje às salas de cinema ou aos cultos religiosos. A enunciação, a dramatização, o ato de contar uma história, uma parábola, imprimem uma suspensão temporal. Obrigam o receptor a ingressar numa outra qualidade de tempo, um tempo extraordinário. Quando devolvidos à roda da vida, fica a percepção de que algo foi alterado. Como numa fotografia, o fato, quando vira narrativa, é congelado para ser melhor apreciado.

Em Temps et récit, Paul Ricoeur diz que o que importa na experiência narrativa é o caráter temporal da experiência humana. Apoiado em Agostinho, Ricoeur diz que a especulação sobre o tempo é uma ruminação inconclusa. Se nos reportarmos ao livro XI das Confissões Agostinho se pergunta: “Afinal o que é o tempo. Se ninguém me pergunta sei; se alguém me pergunta e quero explicar não sei mais”. É quando o tempo passa que podemos medi-lo. Mas como fazê-lo se o futuro ainda não é, o passado não é mais e o presente não tem extensão? É no trânsito, na passagem, que medimos o dilaceramento do presente. A partir daí, Ricoeur propõe sua tese que fundamenta a relação entre tempo e narrativa: “le temps devient humaine dans la mesure où il est articulé de manière narrative” (17). [O tempo torna-se humano a medida em que é articulado de forma narrativa]. Ou seja, o mundo exibido por qualquer obra narrativa é sempre um mundo temporal. Assim, a narrativa só é significativa na medida em que desenha traços da experiência temporal.

Não narramos o costumeiro, narramos o que foge do esperado. Narramos o novo, o diferente. “Eu passeava tranqüilamente como faço todas as manhãs quando, de repente, Ana apareceu com uma criança no colo…”. Segundo Lebov/Waletzky, o episódio inesperado é um dos cinco elementos que constituem a estruturação da sintaxe narrativa. (Apud Michael Hanke). Quando contamos uma história o que nos interessa é o que escapa às nossas expectativas, o que foge das ações cotidianas. Levando em conta esse elemento da sintaxe narrativa proposta por Labor/Waletzky, entendemos a importância do acaso na fabulação narrativa.

De acordo com o Vocabulaire Technique et critique de la Philosophie de André Lalande, o que chamamos de acaso é um evento ou concurso de eventos que não apresentam um tipo determinação que nos pareça normal. O verbete de Lalande refere-se ainda à definição de Cournot em sua Théorie des chances et des probabilités que afirma que o acaso não se caracteriza como um evento produzido pela combinação ou encontro de fenômenos que pertencem a séries independentes na ordem de casualidade. Contingência, destino, sorte ou fado, ensinam as ciências empíricas que a idéia de acaso diminui a medida em que consideramos um maior número de repetições. De todo modo, o que chamamos de casualidade está ligada à idéia de ritmo, de regularidade. Assim como dizemos que algo é feio ou bonito, ruim ou bom, interessante ou banal, o que chamamos de acaso é resultado de um julgamento de valor declarando o que é razoável uma vez que a regularidade pressupõe a existência de uma normalidade, de um ritmo ideal.

Se o acaso é o concurso de feitos independentes racionalmente uns dos outros, a narrativa seria uma tentativa de evidenciar o elemento espontâneo e assim de lidar, de algum modo, com o inesperado. Neste jogo não interessa à narrativa eliminar a ordem randômica do universo. Se narrar é uma forma de elaboração dos acasos, de manipulação dos “ruídos”, o bom narrador é aquele que reconhece que são estes ruídos que tornam complexa a narração, permitindo a sobrevivência das histórias.

Antecipando questões que Umberto Eco na década de 1960 vai tratar em seu Opera Aperta, Walter Benjamin, em “O narrador”, vai buscar em Heródoto o espírito que alimenta a verdadeira narrativa. No capítulo XIV da obra Histórias, Heródoto conta a história do rei egípcio Psamenita que aprisionado pelo rei persa Cambises vê toda a sua família e séqüito desfilarem de forma humilhante na sua frente. A imobilidade e silêncio do rei é interrompida não quando vê sua filha em trajes de criada ou seu filho sendo levado para execução, mas quando diante de si na fila dos cativos passa um velho criado. Neste momento, o rei bate com os pulsos na cabeça num gesto de profundo desespero. Teria Psamenita um afeto especial pelo seu escravo? Estaria aquele escravo representado todo seu povo? Ou ainda o sofrimento desmedido paralisa os indivíduos que só conseguem expressá-lo quando ele arrefece? Heródoto nada esclarece, “seu relato é o mais árido possível”, diz Benjamin. “Por isso essa história do Egito antigo ainda consegue suscitar admiração e reflexão” (36). Benjamin a compara com os grãos de cereal que, encerrados sob as câmaras das pirâmides, ainda conservam, através dos séculos, sua força germinativa.

É este não dizer, não explicar, que irmana o Saara de Lawrence com o sertão de Guimarães Rosa: “Vou lhe falar. Lhe falo do sertão. Do que não sei. Um grande sertão! Não sei. Ninguém ainda não sabe”, assume Riobaldo (79). Silêncio que está nas histórias de Sherazade, mas que também pode definhar em mudez, pesadelo de Levi e de tantos que viveram o inenarrável. Os caminhos se bifurcam e voltam a se encontrar. Cada história engendra outra história. Polifônico, o relato evoca outros textos, que vão além dos textos.
 
 
Bibliografia

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