Débora Racy Soares
Universidade Estadual de Campinas, UNICAMP
Essa resenha aborda a ironia e o humor na literatura não só brasileira, mas também portuguesa. Como o título sugere, ambos – ironia e humor – poderiam ser encarados como double bind, isto é, como uma espécie de duplo vínculo que ata a necessidade e a impossibilidade. Em outras palavras, entender a ironia e o humor como double bind instaura a necessidade da reflexão sobre esses conceitos e, ao mesmo tempo, reconhece a impossibilidade de apreendê-los na totalidade. É essa a sensação que nos acompanha durante a leitura de Ironia e Humor na Literatura, o mais recente livro da professora Lélia Parreira Duarte. Logo no ensaio inicial de seu livro, lançado em janeiro de 2007, a pesquisadora se apressa em nos advertir, via Muecke (1978), sobre a dificuldade em se chegar a um consenso a respeito da definição de ironia. Não esperem pois, leitores, conceitos estanques e redutores ao longo do livro. Pelo contrário, quanto mais avançamos na leitura dos ensaios da renomada estudiosa do assunto no Brasil, mais percebemos que “cada autor tem a sua própria ironia” (18). Acresça-se a esse agravante o fato de a ironia ter sido estudada sob perspectivas diferentes, o que contribuiu para uma profusão de tipos variados que passam pela ironia trágica, cômica, dramática, filosófica, de situação, socrática, retórica, verbal, de caráter, romântica, entre outras. No entanto, Lélia se atém a dois tipos especiais de ironia: a ironia retórica e a ironia romântica.Antes, porém, de adentrarmos no assunto, convém relembrar o itinerário acadêmico da autora que pode até dispensar apresentações quando a audiência é nacional. Embora tenha se aposentado como professora Titular de Literatura Portuguesa na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Lélia continua na ativa, lecionando e orientando alunos na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). Lá ela coordena uma vasta pesquisa intitulada “As máscaras de Perséfone: figurações da morte nas literaturas portuguesa e brasileira contemporâneas”. Como ela explica, o título da pesquisa “faz alusão a essa personagem mítica, porque os textos literários analisados falam dessa passagem pela morte”, porém envolvem a ironia e o humor (13). A pesquisa conta com 42 pesquisadores de 14 universidades brasileiras e estrangeiras e recebe o apoio do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), do Programa de Incentivo à Pesquisa da PUC-Minas e do Instituto Camões de Lisboa. Ela também dirige o Centro de Estudos Luso-Afro-Brasileiros (na PUC) e edita a revista Scripta. Apesar de Lélia não ser pesquisadora de um tema só, parece que todos os outros assuntos que também lhe interessam, estão, de alguma maneira, conectados com seu tema-mor: ironia e humor. Ironia e Humor na Literatura vem agora somar-se aos seus demais títulos. Para os que não se contentarem com a resenha, leiam o livro. É imperdível e ainda traz a reboque uma extensa bibliografia sobre ironia e humor, coletada ao longo da vida acadêmica da pesquisadora. Se ainda assim não se derem por satisfeitos e quiserem conhecer mais sobre o assunto, procurem alguns outros títulos da autora, como Camões & Sá Carneiro (Belo Horizonte, MG: Andrade, 1973), Outras Margens – Estudos da obra de Guimarães Rosa (Belo Horizonte, MG: PUC-Minas e Autêntica, 2001) e As Máscaras de Perséfone: figurações da morte na literatura (Belo Horizonte, MG: PUC-Minas, Rio de Janeiro, RJ: Bruxedo, 2006).
Ironia e Humor na Literatura é o primeiro de uma série de três livros a serem publicados. Nele questões gerais ligadas à ironia e ao humor são tratadas através de textos importantes da literatura brasileira e internacional. Desfilam pelo livro autores como António Vieira, Camilo Castelo Branco, Dostoiévski, Eça de Queirós, Fernando Pessoa, Fernão Mendes Pinto, Guimarães Rosa, Helvécio Ratton, Luís de Camões, Machado de Assis e Mário de Sá-Carneiro. Adiantamos que o segundo volume da série será dedicado a autores portugueses contemporâneos, como Lobo Antunes, Carlos de Oliveira, Augustina Bessa-Luís, José Cardoso Pires, Helder Macedo, Mário Cláudio, Teolinda Gersão, entre outros. No terceiro volume, Lélia promete deter o olhar à obra de Augusto Abelaira, escritor português falecido em 2004 que dizia estar a escrever sempre o mesmo romance.
Ao folhearmos Ironia e Humor na Literatura chamam atenção as últimas páginas que a autora, com modéstia, intitula “Esboço de uma bibliografia sobre ironia e humor”. Seria “esboço”, não fossem as mais de quatrocentas referências bibliográficas listadas sobre o assunto! Só por isso, o livro já seria indispensável para os que se dedicam ao estudo da ironia e do humor. Entretanto, o melhor ainda está por vir. O prazer da leitura nos acompanha ao longo dos vinte ensaios, escritos entre 1983 e 2006, e agrupados em blocos, de acordo com os temas tratados. O primeiro ensaio é inédito, enquanto os demais estavam dispersos em revistas de literatura e anais de congressos.
O ensaio de abertura do livro, “Arte & manhas da ironia e do humor”, encara a ironia como uma espécie de double bind, embora a autora não faça alusão ao termo. Em suas palavras, o paradoxo da ironia “apresenta-se simultaneamente como necessidade e como impossibilidade de relato completo da realidade” (17). É bom esclarecer que Lélia refere-se à ironia romântica que, na verdade, não se diferencia da ironia moderna, como veremos no decorrer do livro. Em sua opinião, a ironia romântica é uma estratégia ou “arte & manha” encontrada para enfrentar o paradoxo do double bind, necessário e impossível. Através dela, introduz-se na obra a figura de um eu “representante da representação”, como diz Lacan, capaz de revelar os artifícios de uma literatura que se assume anti-mimética par excellence, pois desnuda seu próprio fingimento (17). Em tempo, a ironia romântica, como explica a autora, não é da “época romântica, mas elemento constitutivo do romantismo alemão, do romantismo francês e de movimentos semelhantes” (42).
A ironia romântica, desenvolvida em torno das idéias dos primeiros românticos de Iena, cuja figura central é Schlegel, teve o mérito de problematizar a idéia de representação em arte. A estética schlegeliana, indo na contramão de Hegel, cujo idealismo foi marcado por princípios da fenomenologia, assegura uma realidade que é própria à arte, ou seja, eleva à segunda potência seu caráter ficcional, além de incluir a reflexão sobre o próprio fazer artístico no cerne do processo de composição. Em outras palavras, a ironia romântica não nos deixa esquecer de que arte é mediação, para utilizar uma palavra cara a Adorno, isto é, põe o dedo na (má) consciência e não admite qualquer naïveté ou desatenção do leitor. Portanto, salvas as divergências em torno do conceito de ironia, uma coisa é certa: “não há ironia sem ironista” (19). E acrescentaríamos, nas trilhas da ironia romântica: não há ironista sem leitor da ironia. Portanto, se o ironista é alguém que percebe e explora as ambigüidades da linguagem em suas múltiplas possibilidades de sentido, o leitor da ironia precisa ser capaz de perceber as intenções do autor. Em outras palavras: para rir da piada ou encontrar graça no texto, exige-se que o leitor estabeleça certo pacto de cumplicidade com o autor. Com uma ressalva: a cumplicidade é tão fingida quanto o próprio texto. Se o leitor precisa entrar na história do autor para entender a ironia, ao mesmo tempo, é necessário que ele saiba guardar distância e não se deixar engabelar pelo autor. Isto é, ele não pode cair no conto do vigário, mas precisa entender como ele se articula. Portanto, o leitor também caminha na corda bamba do double bind e deve ser tão astuto quanto o escritor ou tão hipócrita quanto Baudelaire e tão cheio de dores fingidas quanto Fernando Pessoa. Ele também deve retribuir a piscadela do autor, pois não deixa de ser, como um certo personagem de nossa história literária, filho de uma “pis(c)adela e de um beliscão”. Portanto, em se tratando de ironia romântica, não parece haver muito espaço para leitores ingênuos que acreditam piamente nas verdades dos textos. O rebolado irônico faz, de fato, o (bom) leitor questionar as suas próprias verdades ou aquelas estabelecidas. Talvez, por isso, a ironia romântica seja um recurso lingüístico tão sedutor, sempre a nos lembrar que as “palavras não têm um sentido fixo e único, mas podem variar conforme o contexto” (22).
Já a ironia retórica apontaria para o contrário do que é dito, revelando uma mentira em potencial implícita na linguagem. Segundo Lausberg (1972), a ironia retórica pode facilmente ser utilizada com finalidades ideológicas, pois trabalha no terreno do binarismo. Em outro momento do livro, Lélia irá demonstrar como esse tipo de ironia é recorrente nos discursos de António Vieira, que a aproveita em prol de determinados interesses, visando à manutenção do poder português. Destacamos dois blocos temáticos de Ironia e Humor na Literatura, a fim de entendermos, através de exemplos, a distinção entre ironia retórica e ironia romântica. Um deles trata de António Vieira, o outro, de Camilo Castelo Branco. No primeiro, Lélia parte da retórica de Vieira procurando demonstrar como esse “verdadeiro acrobata metalingüístico” utiliza a palavra não apenas como alethes, mas, sobretudo, como pseudes (78). O artifício da teatralidade da representação, largamente utilizado pelo padre para prender a atenção dos ouvintes, não passa ao largo das considerações da autora. Entretanto, é a utilização da ironia retórica nos sermões que prende sua atenção. Nas veredas abertas por Lausberg, Lélia explicita as oposições dialéticas de Vieira traduzidas, no discurso, em jogos semânticos de antíteses e em binarismos na organização sintática da frase. Estes binarismos que opõem homens a peixes, devoradores a devorados, clero a nobreza, índios/negros a colonos revelam estratégias de convencimento não só capazes de evangelizar e de converter cristãos e pagãos, portugueses e brasileiros, mas também de manipular amigos e inimigos, partidários de suas idéias ou ferrenhos opositores. A intenção ideológica perpassa seu discurso, sem deixar brechas para questionamentos. Como diz Lélia, “uma das grandes armas vieirianas para afirmar verdades incontestes está na arte da argumentação binária, característica da retórica que busca o poder” (91). Nesse sentido, é interessante perceber como Lélia parte dos Sermões para concluir que são “palavra(s) plena(s)”, isto é, são exemplos de um discurso autoritário, ideologicamente orientado, articulado para inibir perguntas e não deixar margem para dúvidas (90). Portanto, o “pregador da palavra plena” era também bom ironista, já que “fala(va) por vias indiretas”, “usa(va) o não para dizer o sim”, sempre tendo o cuidado de “falar claro”, apesar da ironia, para assegurar os sentidos que deveriam chegar aos ouvidos dos filhos que logo seriam de Deus (90). Em tempo: a ambigüidade não fazia parte da retórica de Vieira, pois é típica da ironia romântica que problematiza a verdade da representação, do dito, do construído, além de valorizar a capacidade de recepção do leitor. O receptor não tem voz nem vez em Vieira: sua estratégia visa a apascentar ovelhas. A serviço da Companhia de Jesus, não podia correr o risco de ter seu rebanho desgarrado. Portanto, em Vieira a palavra era ação, pois dela dependia a expansão não só do espírito, mas, principalmente, do Quinto Império.
Camilo Castelo Branco é exemplar na utilização da ironia romântica. No autor de Amor de Perdição o subentendido interessa mais do que o propriamente dito, pois é a partir da opacidade da linguagem que ele cria a dubiedade lúdica de suas narrativas. A importância do leitor é fundamental nesse tipo de ironia. O autor aposta na capacidade crítica do receptor de compreender sua mensagem no duplo registro: um que afirma e outro que problematiza o que está dito. Cabe ao leitor, como diz Castro, operar uma espécie de “interpretação corretora da desfocagem” (Narrador 59-74). É importante observar que é possível haver vários tipos de ironia convivendo em uma obra. No caso das novelas camilianas, a ironia retórica convive com a romântica e com a sátira social. Tome-se como exemplo o plano do enunciado de um texto como Amor de Perdição ou Amor de Salvação. Neles, a ironia retórica guarda uma intenção moralizante, ao expor o ridículo visando a provocar mudanças. Note-se, por exemplo, a incongruência entre o nome de uma personagem de Amor de Salvação, Mafalda e suas ações. Mafalda, como diz Lélia, é “a boa fada que recupera Afonso para a família e para a religião (e para a ideologia…)” (119).
Camilo Castelo Branco utiliza bastante em suas novelas o chamado tongue-in-cheek que, segundo Almansi (1978), seria uma forma de indicar a ambigüidade no texto, impedindo que o leitor perceba se o sentido do enunciado é positivo ou negativo. Essa indefinição dos sentidos só faz confirmar a ironia romântica, resultante da consciência da impossibilidade de fixar sentidos absolutos, além de evidenciar o texto como representação, artifício, expondo suas entranhas e colocando em xeque seus próprios enunciados. Em A queda dum anjo Camilo Castelo Branco parodia suas próprias novelas passionais, expondo a obra como tessitura, aberta à cumplicidade e (re)conhecimento do leitor. Considerada uma das narrativas mais irônicas de Castelo Branco, A queda dum anjosinaliza sua ambigüidade no próprio título. Quem, afinal, seria esse anjo? O “herói” da novela é Calisto Elói de Silos e Benevides de Barbuda. Vamos à ambigüidade de seu nome, porém notemos antes que não se trata propriamente de uma queda, muito menos de um anjo. Como explica Lélia, Calisto é “o superlativo de kalós, o mais belo; Elói é o escolhido, o eleito, além de lembrar Eloim, nome que substitui muitas vezes o de Jeová no Pentateuco e poderia ser visto como indicador de um ser em contato com Deus” (122). Silos viria do grego síros, remetendo a poema, sátira, paródia, além de referir-se à idéia de armazenamento de riquezas e erudição. De acordo com o texto, Benevides é o que vive bem; a etimologia aponta para aquele que vê bem. Barbuda remete a uma família importante. Calisto é herdeiro da fortuna (familiar), porém, em alguns momentos terá decepções, será aquele que “encalista”, ou seja, alguém que é atingido pela má sorte, na maioria das vezes, resultante de seus problemas de leitura!
O primeiro índice de ironia é o descompasso entre o nome pomposo e a caracterização do personagem, descrito como alguém com “dessimétrica saliência do abdômen”, “nariz um tanto estragado das invasões do rapé e torceduras do lenço de algodão vermelho” (qtd. in Lélia 123). Há incongruência também entre seu nome e suas ações. Por acreditar demais no que lê nos livros, Calisto sofre algumas decepções quando busca a boa água nos chafarizes de Lisboa ou quando não entende as intenções de Adelaide, por quem cai de amores e se decepciona. Após essa primeira queda ou decepção, o “anjo” se recupera nos braços da brasileira Ifigênia, a nascida com o poder. Nesse momento, Calisto começa a fazer jus ao nome, mudando de aparência para se enquadrar socialmente. A necessidade de ser socialmente aceito evidencia a corrupção dos valores ingênuos (?), diríamos, angelicais, do personagem. A sátira social de Castelo Branco reverbera a partir da atitude de Calisto que, em uma sociedade pragmática, é avaliado por sua capacidade de fingir e de enganar. Nesse sentido, a ironia romântica perpassa o emaranhado textual en abyme de A queda dum anjo. A arte como ilusão, como jogo especular confirma a idéia de reflexão infinita valorizada pelos primeiros românticos alemães. Refletir a reflexão não deixa de ser uma maneira de assumir a ironia e o humor como double bind.
Referências bibliográficas
Almansi, G. L´affaire mystérieuse de l´abominable tongue-in-cheek. Poétique. Paris, n0. 36, p. 413-426, Nov. 1978.
Castro, A. P. Narrador, tempo e leitor na novela camiliana. Coimbra: Centro de Estudos Camilianos, 1976.
Lausberg, H. Elementos da Retórica Literária. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1972.
Muecke, D. C. Irony. London, Methuen, 1978.
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