CINEMA, LITERATURA E TELEVISÃO: A HORA DA ESTRELA E OS INTERSTÍCIOS DA CULTURA VISUAL

Acir Dias da Silva
Universidade Estadual do Oeste do Paraná
 
 

O seriado “Cena Aberta: a magia de contar uma história”, dirigido por Jorge Furtado, Guel Arraes e Regina Casé, baseado no romance A Hora da Estrela, de Clarice Lispector, põe em evidência, na narrativa, alguns elementos que correspondem ao efeito de uma transfiguração da personagem Macabéia no tempo e no espaço, o  que resulta no reconhecimento do desencanto e na perda de uma “experiência autêntica” dos sujeitos contemporâneos de modo a despertá-los do “sono coletivo” em que vivem. O seriado, incorpora elementos do romance de Clarice Lispector e do filme de Suzana Amaral. Diante disso, tais referências características do cinema de poesia são apropriados  pelos  diretores do seriado apenas como recursos audiovisuais para traduzir grafias em imagens e, ao mesmo tempo, garantir coerência visual na tradução da obra, sobretudo pelas opções estéticas.

Certa vez Victor Hugo escreveu que o livro impresso assumiu o papel desempenhado pela catedral na Idade Média e tornou-se o portador do espírito do povo. Ocorre que os milhares de livros acabaram fragmentando esse espírito único, corporificado na catedral, em milhares de opiniões. A palavra quebrou a pedra em milhares de fragmentos, dividiu a igreja em milhares de livros e, mesmo assim, elementos da arte da memória inventada pelos gregos atravessaram a Antiguidade clássica, como também parte da retórica, e sobreviveram parcialmente ao desmantelamento do sistema educacional latino e, durante a Idade Média, refugiou-se nas ordens dominicana e franciscana, e, na atualidade, permanecem, de forma estilizada, na arte de contar histórias.

Convencionalmente, afirmamos que a cultura atual é a das imagens e dos sons, mas oficialmente os homens se comunicam por palavras e não por imagens. O cinema comunica aquilo que significa, pois ele próprio se assenta num patrimônio comum de signos visíveis e sonoros. Assim, a linguagem cinematográfica funda, ela mesma, a sua própria possibilidade prática de existência e esta é a sua pressuposição ao longo de uma série de arquétipos de comunicação, de figuras de linguagem, de signos e de símbolos. O efeito visual é sempre de algo real. Nesse sentido, o espírito visual transformou-se, então, num espírito legível e a cultura visual, numa cultura de conceitos. Tal fato, é claro, teve suas causas sociais e econômicas, que mudaram a face geral da vida. Prestamos, porém, muito pouca atenção para o fato de que, paralelamente, a face dos indivíduos, suas testas, seus olhos, suas bocas, tiveram, por necessidade e concretamente, que sofrer uma mudanç

 

Os gestos do homem visual não são feitos para transmitir conceitos que possam ser expressos por palavras, mas sim as experiências interiores, emoções não racionais que ficariam ainda sem expressão quando tudo o que pudesse ser dito fosse dito. Tais emoções repousam no nível mais profundo da alma e não podem ser expressas por palavras que são meros reflexos de conceitos, da mesma forma que nossas experiências musicais não podem ser expressas através de conceitos racionalizados. O que aparece na face e na expressão facial é uma experiência espiritual visualizada imediatamente, sem a mediação de palavras. (Baláz 78).

 

A cultura visual do cinema e da televisão traz uma nova e original visão do real – e, podemos dizer, um novo conhecimento sobre a que nos referimos quando dizemos real, existente, visto – diferente tanto do nosso olhar natural, quanto da sua descrição em palavras. Não importa se a história que está sendo contada é verdadeira, ou criada.  A literatura, o cinema e a televisão são sistemas integrantes do sistema cultural mais amplo, estabelecendo diversas relações com outras artes e com a memória. Essa diversidade de meio exige um leitor que não se prenda somente ao sentido literal, mas que esteja aberto a essa diversidade de suportes em que a literatura circula, bem como a possível combinação com outras artes. Nas aproximações entre literatura, cinema e televisão percebemos característica proeminente da sociedade contemporânea, a educação visual – do homem e de seus desatinos. Desta forma, tornam-se possíveis diálogos entre livro e filme, objetos de estudos. Percebe-se que passagens do romance A Hora da Estrela foram adaptadas e que outras foram acrescentadas ao filme pelo cineasta, garantindo essa aproximação e, ao mesmo tempo, possibilitando a criação de uma nova obra. Diante da possibilidade da interpretação livre, admite-se do cineasta, enquanto criador, liberdade para inverter e até para propor uma nova forma de entender certas passagens do livro.

Entre a superfície em branco da página e o espaço vazio da tela há laços mais estreitos de que muitas vezes nos é dado suspeitar à primeira vista. Enquanto a página, sobretudo do romance, existe à espera das palavras que acionarão os sentidos e se transformarão na mente do leitor em imagens, a tela oferece as imagens em movimento que serão decodificadas pelo expectador através de palavras. E, diante disso, se inscreve o exercício da tradução de linguagens:

 

A multiplicidade das línguas é, certamente, o signo de sua incompletude e de sua transitoriedade, mas o tradutor lê nela também um desejo comum de acabamento. Cada uma à sua maneira, as línguas dizem esta promessa de perfeição que as fundamenta em sua falta e em sua grandeza. (Gagmebin 24).

Diante disso, a imagem, o movimento e o som são habitualmente considerados materiais inerentes ao cinema, mas também são objetos da literatura. Não se pode negar, todavia, que, mesmo antes do surgimento dos meios tecnológicos que possibilitaram a existência do filme ou do seriado de televisao, tais elementos já integravam o fenômeno literário, graças à capacidade da linguagem em descrever e em sugerir aspectos que tocam a sensibilidade e acionam os mecanismos de nossa imaginação. No cinema, a imagem que vemos na tela também passou por um texto escrito, foi primeiro “vista“ mentalmente por um diretor e, na sequência, transformada em imagens através do roteiro e traduzida em imagens e sons.

A princípio, transpor um código de palavras para imagens não parece tarefa simples. Criar variações de uma obra original sem que, com isso, se perca sua originalidade e ser original criando variações em uma obra já existente, estas são questões que permeiam a tradução de uma obra literária para o cinema, tradução que sempre estará dividida entre criação e interpretação. Nas últimas décadas, a discussão entre fidelidades e traições perdeu importância e passou-se a privilegiar a ideia do diálogo, em razão dos inevitáveis deslocamentos que ocorrem na cultura. Para Pellegrini (19), “A fidelidade original deixou de ser o critério maior de juízo crítico, valendo mais a apreciação do filme como nova experiência”.

A adaptação de obras literárias para o cinema e, posteriormente, para a televisão –  meios que privilegiam a linha narrativa –  também não se tem feito sem conflitos. Sendo os meios de comunicação encarados, em geral, apenas como indústria, muitos veem esse processo como um mecanismo de facilitação para o grande público, em detrimento da qualidade propriamente estética da obra original. Outros defendem que, neste caso, são sempre os meios como, por exemplo, a literatura, que saem perdendo, com base na justificativa de que, pela diferença de linguagens, essas adaptações resultam em perda de qualidade de significação. Uma apaziguadora saída para o impasse pode ser tomada de empréstimo a uma teorização feita por Sebastião Uchoa Leite a respeito da tradução de textos, em que ele propõe uma tradução como recriação:

 

Cada tradução é uma variação de um mesmo objeto, não se conhecendo traduções exatamente iguais. Coloca-se então o paradoxo da tradução ser ao mesmo tempo um duplo do texto traduzido e ao mesmo tempo um texto totalmente novo. É a transcrição de um código lingüístico para outro. (Leite 10).

 

Para realizar uma tradução recriativa, o tradutor precisa antes submergir criticamente na obra a ser traduzida. Assim, além de ser um ato de recriação, a tradução é também uma leitura crítica da obra original. A própria leitura já é uma interpretação pessoal do leitor. E esta talvez seja a solução mais consensualmente aceita. Enquanto criação, a tradução pode criar variações em relação ao original e, enquanto interpretação, pode correr o risco de desvio do projeto original, pois a interpretação é uma obra aberta, que permite transformações e variedades, bem como afirma Sebastião Uchôa Leite. A enunciação cinematográfica e televisiva precisa da traição para tornar possível a peculiaridade das duas obras. A fidelidade ao texto literário deve limitar-se à proposição. Nesse processo de elaboração e de tradução, o cineasta deve saber realizar um estilo próprio, uma pessoal abordagem ao texto, uma autônoma modalidade de enunciação, em que seja compreendido o estilo do autor e o dos personagens. Diante disso, a preocupação deste trabalho está centrada nas diferenças e nas aproximações entre cinema e literatura, na leitura/releitura, na interpretação/reinterpretação da obra A Hora da Estrela. Em entrevista à revista Trópico, o diretor Walter Lima Junior relata os paradoxos da tradução literária para o cinema. Veja-se o trecho (3):

 

O cinema não é uma arte de síntese. Para chegar à tela, ele atravessa várias áreas do conhecimento humano: a literatura, as artes cênicas, a iluminação, a fotografia, a música, a compreensão do ritmo; e também a química e a física, pois lida com o laboratório. Reduzir tudo isso a uma forma é diminuir demais seu potencial.

O papel destinado ao cinema quando este se propõe fazer a transposição da obra escrita para imagens está focalizada em perceber a diferença que separa esses dois mundos, pois a sensibilidade do cineasta está centrada em manter o justo equilíbrio entre esses dois extremos: a mera ilustração ou total adesão ao texto original. Ao mesmo tempo em que o espectador tem a impressão de estar folheando as páginas do livro enquanto assiste ao filme, também poderá visualizar a história sob outro ponto de vista, o olho da câmera.

Voltando às configurações culturais das imagens e dos sons, diante disso se inscrevia uma gramática universalmente válida. Este era um princípio potencialmente mais unificador, no sentido de manter os indivíduos integrados, especialmente numa sociedade em que os sujeitos estavam propensos a se tornarem separados e isolados uns dos outros. Até mesmo a literatura do subjetivismo extremo usava o vocabulário comum e, dessa forma, se preservou da solidão de uma incompreensão definitiva. Ocorre que a linguagem visual dos gestos é muito mais individual e pessoal do que a linguagem das palavras.

 

Todavia esta linguagem da expressão facial e do gesto, embora possuindo uma certa tradição geralmente aceita, carece das regras rígidas que governam a gramática que, pelo mérito de nossas academias, são de uso obrigatório a todos nós. Não há escola que estabeleça que você deva expressar sua alegria com tal tipo de sorriso, ou o seu mau humor com aquele tipo de sombrancelha franzida. Não há erros passíveis de punição alguma, nesta ou naquela expressão facial, embora as crianças, sem dúvida alguma, realmente observem e imitem tais gestos e caretas convencionais. Por outro lado, estas expressões são mais imediatamente induzidas por impulsos internos do que as palavras. Contudo, provavelmente será a arte do cinema que, afinal, poderá unir os povos e as nações, torná-los familiarizados uns com os outros e ajudá-los no sentido de uma compreensão mútua. O filme mudo não depende dos obstáculos isoladores impostos pelas diferenças lingüísticas. Se olharmos para os rostos e gestos de cada um de nós, e os entendermos, não apenas estaremos nos entendendo, como também aprendendo a sentir as emoções de cada um. O gesto é só uma projeção exterior da emoção, é também o que a deflagra. (Baláz 80).

A cultura da palavra fez pouco uso dos poderes expressivos do nosso corpo e, por conseguinte, perdemos, parcialmente, esse poder. A gesticulação dos povos primitivos é frequentemente mais variada e expressiva do que a do europeu culto, cujo vocabulário, por outro lado, é infinitamente mais rico. As artes do cinema e da televisão permitem certa compilação de enciclopédias de expressão facial, movimento e gesto, da mesma forma que existem, há muito tempo, dicionários para as palavras. O público, entretanto, não precisa esperar pela enciclopédia do gesto nem pelas gramáticas das futuras academias: ele pode ir ao cinema e lá aprender.

Nesse sentido, veremos algumas passagens do romance, do filme e do seriado A Hora da Estrela. Veremos que tais índices em imagens e palavras estão impregnados de subjetividade e de simbolismo reveladores da nossa cultura. Para tanto, teremos como referência as definições sobre cinema de poesia e, mais adiante, os dizeres de Pasolini. Tal definição permite a identificação com as teorias literárias e a multiplicidade de matrizes teóricas do cinema. Percebe-se que o cinema de poesia está comprometido com o uso diferenciado da montagem e outros elementos construtores do tempo e da representação poética das imagens e sons.

 

Ao meu ver, o cinema é substancial e naturalmente poético, porque tem natureza de sonho, porque se avizinha dos sonhos, porque uma seqüência cinematográfica é a seqüência de uma recordação ou de um sonho. Depois disso, temos agora o cinema como um fato histórico, como instrumento de comunicação e como tal ele começa a diferenciar-se em diversas subespécies, do mesmo modo que os meios de comunicação em massa. Assim como a literatura tem uma língua para a prosa e outra para a poesia, assim acontece com o cinema. (Pasolini 39-40).

Pasolini privilegia as funções poéticas, funções que aqui correspondem àquela capacidade pela qual o meio de expressão se faz ver, e exibe estruturas de outro modo inconscientes, assim como reserva espaço para a função emotiva e também designa papel importante ao espectador. Em Pasolini, narrar era poetar, isto é, fazer poesia.

 

O cinema de poesia possui uma forma distinta da narrativa convencional. Não é na temática que se encontra a diferenciação, mas na modulação dos elementos narrativos. O filme converte-se em diálogo constante entre a subjetividade do “autor-empírico”, do “autor-modelo”, da personagem principal e dos “leitores empírico e modelo”, diálogo suscitado pela trama, mas não necessariamente desenvolvido por ela. E ainda, defende a idéia da autoria no cinema. Como o filme é o reflexo de um sistema “paranóico”, a responsabilidade recai sobre o indivíduo, não desmerecendo a equipe de filmagem, mas estabelece relações de produção que, raramente, se adequam ao sistema industrial. (Pasolini 29).

 

Dessa forma, é possível perceber que o sujeito é criador e é o responsável pela personificação da produção. Nela está exposta toda a reflexão do indivíduo sobre determinado tema, exigindo, com isso, um expectador atento e preparado para receber o filme. A participação deste é primordial para que o processo de comunicabilidade seja mantido. Sabemos que a experiência estética não se esgota em um ver cognoscitivo (aisthesis) e em um reconhecimento perceptivo (anammesis), pois o espectador pode ser afetado pelo que representa, pode identificar-se com as pessoas em ação, pode dar, assim, livre curso às próprias paixões despertadas e sentir-se aliviado por sua descarga prazerosa, como se participasse de uma cura (katharsis).

De acordo com Almeida (14-15), “Interpretar um filme somente pela mensagem implícita, visível ou dedutível pela história narrada, é também uma interpretação incompleta, um naturalismo científico, mesmo que essa interpretação venha fundamentada em teorias estéticas, sociológicas e políticas”.  A interpretação deve partir do caos aparente da imagem, encarar o mistério dos intervalos significantes e valer-se também do caos das teorias. Assim como na obra literária, o filme também se utiliza de elementos fantásticos, que são habitados por imagens inesquecíveis em movimento, e, por serem discursos em língua da realidade, trazem dela a ambiguidade, o conflito, a história. Nos pontos compensatórios da junção literatura/cinema/televisao existem movimentos capazes de promover uma profunda reflexão de nossos anseios, sonhos, ideologias e lutas, enfim, ajudando o indivíduo a compreender seu mundo nas formas  culturais e espirituais.

Assim como a obra no cinema de poesia declara-se como o local de reflexão do cineasta, que expõe seus pensamentos, acredito que o filme dirigido por Suzana Amaral, traduzido do romance homônimo de Clarice Lipector, intitulado A Hora da Estrela, encontra as definições elaboradas por Pasolini. Tais obras trazem definições subjetivas  e são repletss de simbolismo, ao mesmo tempo traduzem opções estéticas diferenciadas.  Nesse sentido, se classicamente o tempo é a condição da qualquer narrativa; esta não está presa à linearidade do discurso e preenche o tempo com a matéria dos fatos organizada em forma sequencial. No romance de Clarice Lispector, a matéria dos fatos, a ação, é vista como movimento. As formas narrativas em discurso indireto abalam as estruturas do romance tradicional. Sabemos que o conto, a lenda ou o mito, os clichês da cultura de massas são motivos e decalques em forma  visual alegorica na obra A Hora da Estrela. A forma narrativa, tão semelhante às narrações modernas do cinema e da televisao, subverte nossas noções de tempo e de espaço, algo recorrente às problemáticas do cinema de poesia.

Diante disso, o romance, o filme e o seriado, todos eles,  direta ou indiretamente, articulam as sequências temporais, não importa se lineares ou truncadas, invertidas ou interpoladas. Nesse caso, é que, no romance, as sequências se fazem com palavras e, no segundo e no terceiro, com imagens e imagens. De fato, no cinema, o tempo, que é invisível, é preenchido com o espaço ocupado por uma sequência de imagens visíveis; misturam-se, assim, o visível com o invisível. Desse modo, ele condensa o curso das coisas, pois contém o antes que se prolonga no durante e no depois, significando a passagem, a tensão do próprio movimento representado em imagens dinâmicas, não mais capturado num instante pontual, estático, como na fotografia. Assim, os domínios do percebido (o espaço imagético) e o do sentido ou imaginado (o tempo), o visível e o invisível, não se distinguem mais, pois um não existe sem o outro.

Veremos isso através de algumas cenas escolhidas para análise. Leia-se a parte da cena descrita no romance A Hora da Estrela: E lá se foram para a esquina. Macabéa estava muito feliz. Realmente ele a levantou para o ar, eufórica:

 

E lá foram para a esquina. Macabéa estava muito feliz. Realmente ele a levantou para o ar, acima da própria cabeça. Ela disse, eufórica:
– Deve ser assim viajar de avião.
É. Mas de repente ele não agüentou  o peso num braço só e ela caiu com a cara na lama, o nariz sangrando. Mas era delicada e foi logo dizendo:
– Não se incomode, foi uma queda pequena.
Como não tinha lenço para limpar a lama e o sangue, enxugou o rosto com a saia, dizendo:
– Você não olhe enquanto estiver me limpando, por favor, porque é proibido levantar a saia.
Mas ele emburrara de vez e não disse mais nenhuma palavra. Passou vários dias sem procurá-la: seu brio fora atingido. (Lispector 69-70).

Dessa forma, observa-se a descrição e a narração no romance, processo que acumulou mudanças que se vieram processando ao longo do tempo. Em razão da incorporação das técnicas visuais, fizeram isso na direção de uma crescente sofisticação das técnicas de representação (monólogo interior, fluxo de consciência, desarticulação do enredo, fragmentação, descontinuidade, desaparecimento do narrador, etc.) que, paradoxalmente, envolve uma crescente incorporação de elementos das ruínas como da linguagem, no sentido de que ela vai, aos poucos, se despindo cada vez mais de seus acessórios qualificadores (figuras, advérbios, adjetivos, etc.) para dar lugar à substancialidade absoluta de nomes e de ações, numa tentativa de imitar/representar a imagem visual na sua objetividade construída. Essas rápidas e incompletas reflexões sobre o funcionamento das categorias narrativas, na sua relação com o horizonte técnico da produção das imagens – desde as estáticas até as eletrônicas -, que criou novas formas de percepção e representação, constituem, de fato, a formalização de uma preocupação maior, de caráter ético, digamos, com relação aos caminhos que se abrem para a literatura neste novo século.

Segue a descrição desta cena no filme2 de Suzana Amaral. Vejamos:

A seguencia incia-se com uma panorâmica a partir do viaduto em perspectivas. Ao fundo percebemos que houve o encontro de duas vias. À frente, em primeiro plano, Macabéa e Olímpico estão sentados. Ela olha para chão. Ele come pipoca. Eles conversam em primeiro plano.
Olímpico:
– Viu, Macabéa. A cara é mais importante do que o corpo. Sabe por quê? Porque a cara mostra o que a pessoa está sentindo lá dentro. Por exemplo: você tem uma cara de quem comeu e não gostou. Vê se muda de expressão pelo menos uma vez na vida (Nesse momento Macabéa carinhosamente passa a mão nas pernas de Olímpico. O foco no primeiro plano mostra ele oferecendo pipoca a ela).
Macabéa:
– Sabe, ontem escutei uma música tão linda. Eu até chorei.
Olímpico:
– Era samba.
Macabéa:
– Não sei. Acho que se chamava uma-furtiva-lácrima-lácrima. Era cantado por homem que já morreu. Era assim, oh. Acho que até sei cantar essa música. Nananinã Nananinã. Nananinã. (Nesse enquanto, a câmera desliza em panorâmica de 180 graus e fecha no rosto da personagem. Olímpico dá uma bofetada no rosto dela, muda de plano, ela sentada no chão após o tombo).
Olímpico:
– Chega, levante-se. Venha.
Macabéa:
– Não foi nada. Não precisa, não.
Olímpico:
– Venha, levante-se.
Ele a puxa pelo braço. Levanta-a como se segurasse um troféu. Diz:
Olímpico:
– Ah! Vou te mostrar quem é o Olímpico, Macabéa.
Macabéa:
– Ahh! Deve ser assim viajar de avião! Ahhh!
Olímpico a gira  no ar. Ela grita. A câmera livre mostra o olhar de Macabéa sobre os escombros do viaduto da estação. Ouvimos os sons e trem passando os trilhos.

Notemos que a cena descrita no livro possue uma diferença no que se refere ao que foi filmado, mas o que importa não é a tradução literal daquilo que foi criado pelo poeta, mas, sim, o processo de sintaxe visual e sonora contruído principalmente durante a montagem. A câmera cinematográfica capta essa noção do tempo que passa. É noção inseparável da experiência perceptiva visual e sonora, a qual não mais repousa na perspectiva única do indivíduo que vê: a câmera é uma espécie de olho mecânico finalmente livre da imobilidade do ponto de vista humano, para o qual não mais convergem todos os pontos de fuga, como quando se via uma pintura ou uma fotografia. Essa fundamental conquista do cinema, que se refletirá na narrativa moderna, através das técnicas da montagem e da colagem (justaposição), foi o ápice de um longo processo de amadurecimento anterior, de mudança do conceito de tempo e da experiência da realidade, em virtude das condições econômico-sociais e culturais específicas, a partir do fim do século XIX.

As mudanças que, com o cinema, atingem a concepção de tempo, alteram também o caráter e a função do espaço, o qual perde sua qualidade estática, tornando-se ilimitadamente fluido e dinâmico, adquirindo uma dimensão temporal que repousa na sucessividade descritiva e/ou narrativa; deixando de ser espaço físico homogêneo e fixo, “pintura”, assume a heterogeneidade do movimento do tempo que o conduz. A liberdade em relação à coerção espacial e temporal é resultado de uma similaridade notável entre o filme e o próprio pensamento, em virtude do fluir veloz das imagens. Walter Benjamin (97) refletiu sobre essa problemática, no seu ensaio sobre a fotografia: A fotografia nos mostra essa atitude, através de seus recursos auxiliares: câmara lenta, ampliação. Embora entre dois fotogramas exista algo mais do que o abrir e fechar de um diagrama, não existe uma objetividade completa, pois a câmera não é neutra.” Assim como na criação literária, há sempre alguém que seleciona, recorta e combina, extraindo uma nova sintáxe do material desordenado que o mundo visível oferece. Portanto, “a técnica mais exata ainda pode conferir às suas criações um valor mágico” e, apesar de toda a perícia do olho por trás da câmera, como afirma Benjamin, cada um pode descortinar o acaso, “a realidade [que] chamuscou a imagem”.

Veja o roteiro da mesma cena no seriado Cena Aberta – a magia de contar uma história:

 CENA 40 – PARQUE. Olímpico e Macabéa no parque.Olímpico e Macabéa ficam de pé. Ele a segura pela cintura e a ergue no ar. Ela abre os braços. Ele a gira no ar.
MACABÉA
Deve ser assim viajar de avião!
Ele se desequilibra e ela cai.
Ela se ergue rapidamente.
MACABÉA
Não se incomode, foi uma queda pequena.
Ela ergue a saia para limpar o nariz, sangrando.
MACABÉA
Você não olhe enquanto eu estiver me limpando, por
favor, porque é proibido levantar a saia.
Sentam. Ele fica emburrado. (Arraes e Furtado 22).

A cena do seriado Cena Aberta, de fato, pode ser considerada uma “adaptação” com forte presença física do livro. Os diálogos são reproduzidos literalmente. Notemos que a referida cena foi ambientada à noite e não possui os silêncios e as pausas requeridas pela personagem Macabéa. A interpretação dos atores assemelha-se a caricaturas em movimento. No conjunto da obra, vale ressaltar que os depoimentos das meninas distanciaram a adaptação do jogo meramente literário, levando-o de volta às contiguidades da televisão. Os criadores partiram de trechos de entrevista de Clarice sobre a obra para inventar o seriado. Assim, a literatura ficou no meio disso tudo e ajudou a construir o projeto desenvolvido por Guel Arraes, Jorge Furtado e Regina Casé, que, ao tentar misturar elementos que poderiam ser uma “adaptação” literária, uma atração sobre como são os bastidores de um programa ou ainda um minidocumentário sobre imigrantes nordestinos, criaram-se os três simultaneamente, em doses mínimas de tempo.
Quando mostra a vida das sete candidatas ao papel da sofrida Macabéa de A Hora da Estrela, que guardam algumas semelhanças com a personagem de Clarice Lispector, Cena aberta consegue alternar livro e também a presença indireta do filme de Suzana Amaral. Lembremos que quase todas as sequências desse seriado possuem sobreposições nítidas daquilo que foi criado no cinema. O programa se propõe a fazer o making-of de si mesmo, mas faltou muito para dar uma boa ideia dos bastidores de uma gravação. Ali só se mostrou a escolha de elenco e do figurino, e um tantinho de direção de cena. Sabe-se, no entanto, que o tempo é curto na televisão e as etapas escolhidas funcionaram bem. Cena aberta conseguiu soar interessante até na hora de contar, em poucas cenas, a história escrita por Clarice Lispector, claramente mediada pela figura didática da narradora apresentadora Regina Casé. No início podia parecer um erro entregar logo de bandeja para o público o fim da trama, mas eis que o programa dá um golpe de mestre quando inventa outro desfecho para os personagens. Na verdade, não ”outro” desfecho, mas um desfecho adicional, levando os personagens a mais uma dimensão de existência. Ao mesmo tempo respeita a decisão de Clarice e não deixa o telespectador ir para a cama triste com a história. Nem triste com a televisão brasileira.

Não se quer tirar da cultura da palavra sua importância e nem substituí-la pela cultura da imagem, pois não se pode renunciar a um tipo de aquisição humana em razão de outra. Ao atingir o valor poético, o cinema e a televisão podem recuperar movimentos e expressões que talvez não foram explorados no romance e que, através dos recursos de que o cinema dispõe, podem transformar-se em algo mais revelador e artístico. O cinema transforma palavras em imagens, mas, para tal façanha, é necessária a palavra materializada em roteiro. A multiplicidade de sentidos que são apresentados, seja pela literatura, seja pelo cinema ou pela televisão, no sentido complexo do jogo de relações dos textos escritos, nesse jogo  é aparentemente substituível por imagens sem saber que marcas produzirão entre si. As relações entre cinema e a televisão nos ensinam que tais artes podem ser tão criativas e profundas quanto a literatura, mas, para tanto, é necessário olhar com sinceridade para a problemática da tradução de linguagens.No momento, o cinema e a televisão já criaram uma nova cultura: a cultura oral das imagens e dos sons. Milhões de pessoas frequentam os cinemas todas as noites e unicamente através da visão vivenciam acontecimentos, personagens, emoções, estados de espírito e até pensamentos, sem a necessidade de muitas palavras, pois as palavras não atingem o conteúdo espiritual das imagens e são meros instrumentos passageiros de formas de arte ainda não desenvolvidas. Conforme Bela Baláz (79): A mensagem imediatamente visível foi assim transformada numa mensagem imediatamente audível. No decorrer deste processo, como acontece com cada tradução, muito se perdeu. O movimento expressivo, o gesto, é a língua-mãe aborígene da raça humana.A humanidade aprendeu a linguagem rica e colorida do gesto, do movimento e da expressão facial. Essa não é uma linguagem de signos aparentemente substituindo as palavras, como seria a linguagem-signo do surdo-mudo – é um meio de comunicação visual sem a mediação de almas envoltas em carne. O homem tornou-se novamente visível e parece ter-se desprendido das páginas dos livros e dos folhetins.

 
 
Notas
 

1Sinopse: Cena Aberta parte de uma obra literária, mas não é sobre literatura. Grande sacada de Guel Arraes e Jorge Furtado, o programa usa uma história e vai buscar no mundo real o exemplar humano da personagem retratada. (Leila Reis, O Estado de São Paulo)  Episódios: A Hora da Estrela, de Clarice Lispector, com Wagner Moura, Regina Casé e Ana Paula Bouzas. Negro Bonifácio, de Simões Lopes Neto, com Lázaro Ramos e Caroline Dieckmann. As 3 Palavras Divinas, de Leon Tolstói, com Regina Casé e Luis Carlos Vasconcelos. Folhetim, baseado em Ópera de Sabão, de Marcos Rey, com Márcio Garcia, Regina Casé e Karla Tenório. Atores: Regina CaséWagner MouraAna Paula BouzasLázaro RamosCarolina DieckmannLuis Carlos VasconcelosMárcio GarciaKarla Tenório. Direção: Jorge FurtadoGuel Arraese Regina Casé.  DVD Cena Aberta – A Magia de Contar uma História, Som Livre, 2003.

2A Hora da Estrela, 1985. Direção de Suzana Amaral. Sinopse: Macabéa (Marcélia Cartaxo), uma imigrante nordestina semianalfabeta, trabalha como datilógrafa em uma pequena firma e vive em uma pensão miserável. Conhece, casualmente, o também nordestino Olímpico (José Dumont), operário metalúrgico, e os dois começam um caso e desajeitado namoro. Mas Glória (Tamara Taxman), esperta colega de trabalho de Macabéa, rouba-lhe o namorado, seguindo o conselho de uma cartomante. Macabéa faz uma consulta à mesma cartomante, Madame Carlota (Fernanda Montenegro), e esta prevê seu encontro com um homem rico, bonito e carinhoso. Baseado no romance de Clarice Lispector. Filme de estreia da diretora Suzana Amaral. Prêmio de melhor atriz no Festival de Berlim para Marcélia Cartaxo, em 1986. Duração: 96 min. Brasil:Estúdio Raiz Produções Cinematográficas. Roteiro: Clarice LispectorSuzana AmaralAlfredo Oroz. Produção: Assunção Hernandes.

 
 
Bibliografía
 

Almeida, Milton José de. Imagens e sons: uma nova cultura oral. 3.ed. São Paulo: Cortez, 2004.

Arraes, Guel  e Jorge Furtado. Roteiro A Hora da Estrela. Porto Alegrue: Casa de Cinema de Porto Alegre. Disponível em: <http://www.casacinepoa.com.br/port/roteiros/horaestr. txt>.

Baláz, Bela. “O homem visível.” In: XAVIER, Ismail. A experiência do Cinema. Rio de Janeiro: Graal, 1983.

Benjamin, Walter. Obras escolhidas I– Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994.

Gagnebin, Jeanne Marie.Historia e narração em Walter Benjamim. São Paulo: Perspectiva, 1994.

Lima, Walter Junior. “A sombra da televisão”. São Paulo: Revista Trópico. Disponível  em: <http://p.php.uol.com.br/tropico/html/textos/2498,1.shl>. Acesso em: 29 out. 2005.

Lispector, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1993.

Pasolini, Pier Paolo. Empirismo hereje. Lisboa: Assírio Alvin, 1982.

Pellegrini Tânia. In: Literatura, cinema e televisão. São Paulo: Editora Senac, 2003.

Savernini, Érika. Índices de um cinema de poesia: Píer Paolo Pasolini, Luís Bunel e krzysztof Kiéslowski. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004.

Xavier, Ismail. A experiência do cinema. Rio de Janeiro: Graal, 1983.

 
 
Filmografía
 

A hora da Estrela. Direção: Suzana Amaral, Raiz Produções Cinematográficas, 1985.

Cena Aberta: a magia de contar uma história. Direção: Guel Arraes, Jorge Furtado, Regina Casé; Casa de Cinema de Porto Alegre, 2005.

 
 

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