Cacaso: Liberta Poesia

Débora Racy Soares
Universidade Estadual de Campinas – FAPESP
 
 
Durante os anos setenta do século XX no Brasil produziu-se um tipo de poesia que ficou conhecida como “marginal do mimeógrafo”. O rótulo, em si, já é problemático e contribuiu para criar certos equívocos críticos que merecem ser desfeitos. Um deles diz respeito ao propalado antiintelectualismo que teria atingido essa geração. O outro problema concerne à visão de conjunto de certa vertente crítica que, indiscriminadamente, julga uma geração in totum. Em 1975, portanto no calor da hora do movimento que também era chamado de alternativo, Heloisa Buarque de Hollanda organiza 26 Poetas Hoje – antologia que viria a se tornar uma referência importante para os estudiosos dos poetas de setenta. Diante do então propalado “vazio cultural” – expressão do jornalista Zuenir Ventura que na época fazia menção à repressão cultural decorrente do governo de exceção – 26 Poetas Hoje surgiu para contrariar as expectativas reinantes. Além de sistematizar uma amostra da produção poética que vinha sendo feita no Brasil, desmistificando a idéia de “vazio cultural”, esta antologia reuniu poetas díspares, com entonações e tendências distintas que estavam a produzir sob rótulo único. Apesar de alguns pontos de contato como a crítica à ditadura, a despretensão literária, a opção pela linguagem coloquial, aliada a altas doses de humor e de ironia, esses 26 poetas selecionados estavam unidos por uma vontade maior: cantar seu momento. Portanto, a preocupação central dos poetas era resistir em versos, mais do que propriamente atingir o panteão dos imortais e garantir um lugar na tradição literária brasileira. Em linhas gerais, os chamados poetas “marginais” resgatavam a dicção oral e dessublimada – conquistas do movimento modernista de 1922 – como forma de contestar a hegemonia das vanguardas poéticas anteriores, principalmente a tradição construtiva Concretista e a dicção elevada e classicizante da geração de 45, ambas sentidas como opressoras. Longe de ser apenas uma atualização das idéias difundidas pelos primeiros modernistas – Oswald de Andrade, Mário de Andrade e Manuel Bandeira – a retomada do coloquial e da informalidade, juntamente com o repúdio às formas clássicas como o soneto e a valorização do verso livre, ganham outro sentido em um contexto de repressão. No limite, os poetas queriam libertar as palavras das amarras das formas tradicionais e da própria idéia canônica de poesia. Por outro lado, a conscientização sobre a situação vigente, mediada pela linguagem poética, dilatava a possibilidade de compreensão do cotidiano.

A recepção da antologia – cujo interesse de publicação partiu, sintomaticamente, da Labor, uma editora espanhola recém-chegada ao país – foi cercada por querelas. O meio acadêmico mais conservador entrou em rebuliço, tendo sido taxativo em seu julgamento: “aquilo não era poesia, era um material de interesse apenas sociológico” (26 Poetas 261). É importante entender que na época da publicação da antologia, o ambiente intelectual brasileiro bipartia-se entre críticos de interesses variados. De um lado, havia os que valorizavam as relações entre arte e sociedade como Antonio Candido e Roberto Schwarz e recuperavam a teoria crítica dos filósofos da Escola de Frankfurt. Do outro, estavam os apreciadores da estética construtiva e da poesia Concreta dos irmãos Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari. Esse último tipo de vertente teórico-crítica, que tende a conceber a produção literária ignorando as relações de produção, ainda encontra eco entre alguns acadêmicos, ao lado de outras abordagens epistemológicas que procuram superar as antigas dicotomias.

Felipe Fortuna é um dos críticos atuais que questionam a vitalidade dos poetas “marginais”, argumentando que eles sofriam de “inanição intelectual”, além de praticarem uma poesia “ignorante”, cuja “momentaneidade” poderia “condenar”, por sua qualidade, “uma literatura” (“O que ficou” 1-2). O poeta Paulo Leminski que produzia em meados de setenta, mas não simpatizava com os “marginais”, também criticava seus contemporâneos cuja poesia considerava “infanto-juvenil” e “tecnicamente inferior” à de seus “antecessores” (“O que ficou” 2). Ambos, Fortuna e Leminski, teceram considerações gerais e condenaram os poetas “marginais” por produzirem “uma poesia extremamente datada” (“O que ficou” 2). Outros críticos, acostumados a pensar por dicotomias que valorizam o esteticismo e a poesia em oposição à participação e à sociedade, acabam sendo tendenciosos em suas análises. Ao ficarem paralisados em suas próprias categorias estanques e redutoras, não conseguem alcançar uma visada dialética. Portanto, algumas características dos poetas “marginais”, como a linguagem coloquial, aparentemente espontânea e não-literária, serão sentidas por alguns críticos como afronta à alta literatura. Esse tipo de raciocínio, ao operar através de dicotomias pré-estabelecidas – alta literatura x baixa literatura, literário x não-literário, eterno x datado, canônico x não-canônico – costuma “desqualificar” os poetas “marginais”. Logo, não causa espanto que esses poetas sejam acusados de “anti-literários”, “anti-convencionais”, “acríticos” e produtores de um “subproduto” sem “qualidade poética significativa” (“Poesia ruim” 48-9). A “indiferenciação generalizada” que acomete certos críticos desemboca em opiniões totalizantes e problemáticas, pois coloca todos os “gatos” no mesmo “saco”, dando a impressão de que estamos diante de um “saco de gatos”, sem considerar que nem todos são “pardos” (Não quero 29, 154). Em outras palavras: dispensa-se o mesmo valor ou importância, isto é, são colocados no “mesmo saco” poetas completamente diferentes entre si. Portanto, a melhor forma de desfazer alguns equívocos críticos é estudar cada poeta, individualmente. Há um enorme trabalho a ser feito nesse sentido. As distensões críticas mencionadas contribuem para entender os impasses analíticos suscitados pela geração “marginal”, além de sinalizarem o esgotamento daquelas velhas dicotomias que, às vezes, ainda orientam alguns pesquisadores. Diante dessa produção sui generis percebemos a insuficiência da visada crítica ancorada em binarismos redutores e vislumbramos a possibilidade de repensar o conceito de literatura. Em um determinado momento, as categorias de crítica e análise tradicionais parecem não dar conta dos produtos literários que vão surgindo. Desse modo, um corpus tão instigante como a poesia dos anos setenta constitui um verdadeiro desafio aos críticos que, vagarosamente, começam a se debruçar sobre essa geração. Em tempo: a tendência de certa vertente crítica a associar marginalidade institucional a marginalidade literária é não só equivocada como pode ser desmistificada através da leitura atenta dos poetas.

É fundamental constatar que alguns poetas contemporâneos estabelecem um importante diálogo com os poetas “marginais”, deles se aproximando especialmente no que concerne à valorização da experiência e à desrepressão da linguagem. Ironia à parte, o fato é que os alternativos, então considerados “anti-literários”, exerceram forte influência na produção literária das novas gerações e não deve tardar para que eles se tornem uma espécie de “cânone marginal”. Outro fato notável é que a maior parte da produção poética produzida de forma independente durante a década de setenta foi publicada através de editoras consagradas, em meados de oitenta. O que para muitos foi considerado uma afronta aos princípios da geração, não só contribuiu para a divulgação dos poetas em âmbito nacional como também facilitou o acesso às obras, cujas primeiras edições mal ultrapassavam os quinhentos exemplares.

O poeta que nos interessa nesse artigo, Antônio Carlos de Brito (1944-1987), mais conhecido pelo pseudônimo Cacaso, começa a chamar a atenção não só dos críticos de poesia, mas também dos interessados em Música Popular Brasileira (MPB). É que Cacaso, além de ter publicado seis livros de poesia e de ter se destacado como um dos principais teóricos de sua geração, ao lado de Heloisa Buarque de Hollanda, também foi exímio compositor. Canções como “Lero-Lero”, em parceria com Edu Lobo e “Dentro de Mim Mora um Anjo”, composta com Sueli Costa tiveram grande repercussão na década de oitenta e hoje são consideradas exemplares na MPB. Como poeta publicou seis livros: A Palavra Cerzida (1967), Grupo Escolar (1974), Beijo na Boca (1975), Segunda Classe (1975) com Luís Olavo Fontes, Na Corda Bamba (1978) e Mar de Mineiro (1982). O primeiro livro foi o único publicado através de uma editora, a José Álvaro, além de ter contado com um prefácio elogioso do importante crítico José Guilherme Merquior. Cacaso confessa – em nota introdutória do segundo livro – ter ficado um tempo sem escrever porque estava desconfiado da poesia. Na verdade, a passagem do primeiro livro para o segundo, Grupo Escolar, é marcada não só por rupturas estéticas, mas por um novo olhar em relação ao modo de produção poética. Em meados de setenta, Cacaso reúne quatro poetas “marginais” com a intenção de lançar uma Coleção de poesia. Foi assim que em 1974 surgiu a Coleção Frenesi, financiada por Zelito Viana e através da qual Cacaso publicaria seu Grupo Escolar, ao lado de Roberto Schwarz (Corações Veteranos), Francisco Alvim (Passatempo), Geraldo Carneiro (Na Busca do Sete-Estrelo) e João Carlos Pádua (Motor). Beijo na Boca, Segunda Classe e Na Corda Bamba sairiam pela Coleção Vida de Artista, juntamente com A Vida Alheia de Eudoro Augusto, América de Chacal e Aqueles Papéis de Zuca Sardan. A Coleção Vida de Artista, diferentemente da Frenesi, contou com recursos dos próprios integrantes. Sua principal característica era o carimbo de um balão na capa de seus livros. Em 1982 Cacaso resolve bancar seu último livro, Mar de Mineiro, publicado fora do âmbito das Coleções de setenta. O interesse que a produção de Cacaso vem despertando atualmente só faz confirmar sua importância e, de certa forma, contribui para quebrar o silêncio que se instaurou em torno de sua geração. Não há dúvida de que a atenção que as editoras têm dado a esses poetas ultimamente ajuda, sobremaneira, a despertar interesse entre pesquisadores. Ricardo de Carvalho Duarte (Chacal), Carlos Saldanha (Zuca Sardan), Zulmira Ribeiro Tavares, Afonso Henriques Neto, Ricardo Ramos, Charles Ronald de Carvalho, Bernardo Vilhena, Vera Pedrosa são alguns poetas importantes que sequer contam com fortuna crítica significativa. Acredito que grande parte do desinteresse pelo estudo desses poetas provenha de desconhecimento, pois nossos compêndios historiográficos dificilmente abrangem a produção literária dos últimos trinta anos. Há também que combater certas idéias estigmatizadas e reducionistas que, às vezes, insistem em se manifestar no meio acadêmico. Uma delas diz respeito à crença de que as produções culturais do período da repressão (1964-1985) só ganhariam quando compreendidas do ponto de vista histórico, mas perderiam o alcance estético. Essas hipóteses têm contribuído para desviar o interesse crítico pela produção literária dessa geração. Ademais, é preciso entender que ambos os valores – histórico e estético – não se opõem, antes se complementam. Como já mencionamos, certas tendências críticas conservadoras que insistem em pensar por dicotomias, se podem prestar um desfavor a essa geração também devem ser prontamente combatidas. É somente através do diálogo, do cruzamento de visadas entre o histórico e o estético que o horizonte de leitura pode ser ampliado. Seguindo esse raciocínio, seria possível reconstruir, via leitura, a memória subjetiva de um tempo. Tempo de “Rotina” que expõe o perigo iminente através da voz dos animais, como uma fábula sem moral:

RotinaUma comissão de urubus inspeciona
O pasto desde ontem. Foi cascavel novamente.(Lero 73) 1

Vejamos o sentido do enjambement no final do primeiro verso. Inspeciona é verbo transitivo direto, portanto exige um complemento. Em um primeiro momento não sabemos muito bem o quê ou quem a “comissão de urubus” inspeciona. É como se o sentido do verbo inspecionar fosse ampliado, sugerindo que a inspeção transcende “o pasto”. A inspeção é geral, e o “pasto” é apenas um lugar particular que também é inspecionado. O advérbio “novamente” assegura, sem grandes expectativas de mudança – do ontem para o hoje do poema – a Rotina. Sabemos que o urubu se alimenta de carne em putrefação, sugerindo algo recém-morto, em processo de decomposição. Urubu, no sentido figurado, remete a uma pessoa que usa roupa preta – estando ou não de luto – e também a uma situação difícil: escovar ou lavar o urubu significa estar desempregado. Essa pequena fabulação alegórica em versos sugere mais do que aparenta quando a interpretamos à luz do momento de produção.

A produção poética dos anos setenta feita de forma independente, à margem do sistema editorial, ficou conhecida como “marginal do mimeógrafo”. Em termos materiais, os livros geralmente tinham acabamento precário e eram feitos artesanalmente, em mimeógrafos ou ofsete.2 Alguns livros também eram manuscritos e ilustrados pelos próprios autores. Zuca Sardan é exemplar nesse sentido, juntamente com Chacal que distribuía seus poemas em folhas soltas dentro de um envelope pardo. Como explica Cacaso, a definição de marginalidade em poesia é controvertida. Em relação aos anos setenta, marginal é o autor que foi “barrado” nas editoras e “acab(ou) editando e até distribuindo” seus livros por conta própria, com recursos próprios (Não quero 12). É certo que houve um boom poético nessa época no Brasil, o que criou uma espécie de transbordamento produtivo impossível de ser absorvido pelo “nosso restrito e restritivo sistema editorial” (Não quero 12). O mais interessante, contudo, é entender que esse excesso de poesia produzida no país surge como resposta criativa a uma determinada situação política que reprimiu a criação e a liberdade de expressão dos artistas. Desse modo, a sobrevivência da poesia passaria a depender, sobretudo, da iniciativa dos poetas que, levados a “imaginar saídas”, “experimentar procedimentos” e “ampliar seus contatos”, assumiriam todas as etapas de produção de seus livros (Não quero 19). O descompromisso em relação às esferas institucionais, associado à visada crítica e ao desejo de (auto) conhecimento, tinha, mormente, valor político de resistência. As edições coletivas, através das Coleções, não eram apenas uma forma de solucionar o problema editorial, mas devem ser entendidas como uma resposta direta aos obstáculos conjunturais que dificultavam a criação. Logo, “todos”, “sem qualquer combinação prévia”, estavam a “compor juntos” um verdadeiro “poemão”, isto é, um grande poema coletivo a mil mãos (Não quero 82).

Cacaso atenta para o fato de terem circulado no país, durante a década de setenta, “livros de poesia marginal” e “livros marginais de poesia” (Não quero 13). Alguns equívocos críticos podem ter derivado da ausência de discernimento entre essas duas expressões, contribuindo para aumentar a polêmica em torno da produção poética dessa geração. Em português escorreito, marginal significa não só o indivíduo que vive à margem, em dissonância com os valores de sua época, mas também pode significar vagabundo, mendigo, delinqüente ou fora-da-lei. Portanto, é preciso perceber que o “saco de gatos” geracional continha tanto livros produzidos à margem como poesias escritas à margem e que os termos nem sempre eram equivalentes. Afinal, quem é marginal: o livro, a poesia, ou ainda, o poeta? E mais importante: marginal em relação a quê?

Reiteramos que Cacaso entende marginalidade em relação à forma alternativa de produção dos livros de poesia. Já a poesia, quando é marginal, geralmente assume uma “forma de receituário de vida, com formulações explícitas do que deve ser e não ser na vida e na arte; uma ética diminuta que o poema realiza e registra, como se fosse o melhor veículo para a divulgação de um programa de vida” (Não quero 13-14).

Certa vertente crítica que costuma acusar essa geração de antiintectual, confundindo esse termo com outro que lhe é caro – “inanição intelectual” – certamente não esclareceu que esse pretenso antiintelectualismo está diretamente relacionado ao modo de publicação à margem do sistema editorial. Estar à margem, no limite, é poder contestar idéias pré-estabelecidas e hegemônicas sobre poesia, literatura, sem precisar depender delas para promover livros. Esclarecendo: antiintectual talvez tenha muito mais a ver com a autonomia de visão levada a sério pelos poetas de setenta do que com a falta de qualidade que uma dada vertente crítica costuma atribuir a suas poesias. De acordo com os dicionários de língua portuguesa, antiintelectual é aquele que não adota um ponto de vista intelectual ou, antes, não adere a um determinado ponto de vista considerado intelectual em uma dada época. Pode se referir também a alguém que é hostil aos intelectuais. Essa segunda acepção tampouco faz sentido se lembrarmos que tanto Cacaso como Roberto Schwarz eram professores universitários respeitados no mundo acadêmico. Outros poetas como Francisco Alvim e Zuca Sardan seguiam a carreira diplomática, enquanto Geraldo Carneiro, Chacal e João Carlos Pádua eram estudantes universitários. Em termos de configuração poética, estamos diante de poetas que reconhecem a tradição literária e estabelecem interessantes diálogos com escritores canônicos como João Cabral de Melo Neto, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Cecília Meireles e Oswald de Andrade. Portanto, a independência de visão, a renúncia ao controle editorial e o desinteresse em idéias conservadoras sobre literatura e poesia, só fazem enaltecer a (pa)lavra poética dessa geração.

A controvérsia suscitada por esses poetas, que dela estavam conscientes, recai sobre a questão do valor literário e da interferência dos modelos canônicos na avaliação das produções literárias. De fato, uma das motivações desses poetas era problematizar em versos o peso do cânone, muitas vezes sentido como opressor à liberdade criativa. Os interesses envolvidos na manutenção de um modelo canônico também eram questionados, à medida que procuravam apreender os jogos de poder implícitos no fazer literário. Em outras palavras: ser marginal às editoras e, em alguns casos, ao sistema literário canônico, era uma maneira de contestar as regras da poética – e da política editorial – quando elas pareciam escapar às mãos dos poetas. É certo que o controle da produção literária pelos aparelhos do Estado era um agravante que os poetas tentaram driblar quando optaram pela impressão alternativa de seus livros. Porém, como dizia Cacaso, “marginalidade’” nunca foi “opção” e deve ser entendida como uma resposta a um quadro de época (Não quero 14). É sintomático perceber que ele faz essa declaração em uma entrevista concedida ao jornal Movimento em julho de 1976. Esse jornal compunha uma das publicações da imprensa alternativa que fazia oposição ao regime ditatorial. Para dizer com clareza: a crítica desferida por Cacaso ao sistema editorial e à sua “propalada sede de lucros” encobre a verdadeira intenção de sua fala, sugerida, nas entrelinhas, pela necessidade de continuar escrevendo apesar das condições exteriores (Não quero 13). Em 1974 o poeta já chamara a atenção para o fato de a produção alternativa ser “uma resposta política ao conjunto de adversidades reinantes” e reconhecera a importância vital de se manter a criação cultural como resistência aos “esquemas paralisantes” (Não quero 54).

Vejamos agora dois poemas de Cacaso: “Poética” e “Política Literária”, sendo aquele do livro Mar de Mineiro (1982) e este de Grupo Escolar (1974).

POÉTICAAcademia Brasileira de Letras de Fôrma
Academia Brasileira de Letras de Câmbio(Lero 25)

O título grafado em letras maiúsculas reafirma a importância do substantivo. Observemos seus sentidos: 1. poética é uma parte dos estudos literários que investiga os processos que dizem respeito às normas versificatórias dos textos; 2. arte de fazer versos; 3. tratado de versificação e de poesia; 4. sistema poético de um escritor, de uma época, de um país. O primeiro e o último sentido, particularmente, nos interessam. Embora a norma se imponha com maiúsculas – com magnitude, com força, com grandeza- é justamente ela que será contestada no nível semântico do poema. Ainda em relação ao título, se cada poeta funda sua poética, os tratados de poesia não deveriam servir como modelos ou “fôrmas” indispensáveis. Além disso, o apego a determinados modelos atemporais da arte de versejar pode soar anacrônico. Cacaso se apropria da ironia para atacar a Academia Brasileira de Letras, uma instituição tradicional, fundada em 1897, que tem como finalidade cultivar a língua e a literatura nacional.3 Ao se apropriar da locução letra de fôrma – na década de setenta havia o acento diferencial entre fôrma e forma – o poeta amplia os sentidos do substantivo. Letra de forma é a letra impressa em maiúsculas, tal como o título do poema: POÉTICA. O acento diferencial que hoje não mais existe remete à fôrma, mutatis mutandis, de fazer poesia. Fôrma é o objeto utilizado para dar forma a alguma coisa, modelar. Portanto, está feita a crítica: a poética entendida enquanto fôrma de modelar, feita para agradar a determinados gostos, se converte em pura mercadoria, em letras de câmbio, cujo valor é determinado pelo mercado editorial.

Há ainda outro sentido possível para os dois primeiros versos, sugerido pela leitura sem pausa: a Academia Brasileira de Letras deforma, isto é, desfigura, descaracteriza ou, em sentido lato, corrompe, muda para pior. Mercado, diga-se de passagem, regido pela lógica do “$enhor”, como sugere em outro poeminha:

A palavra do $enhorNo princípioa
era
a Verba(Lero 31)

A crítica aberta às instituições, nesse caso a Igreja, fica manifesta no verso final. A conhecida passagem do primeiro livro da Bíblia é evocada e sugere que, nos tempos modernos, o Verbo divino, a palavra de Deus ou o próprio Deus correm o risco de serem reduzidos a interesses meramente monetários. Portanto, o problema econômico atinge não apenas a poética, mas também toda palavra… divina.4

Passemos agora ao poema “Política Literária”, em que Cacaso parodia o poeta modernista Carlos Drummond de Andrade (1902-1987):5

Política LiteráriaO poeta concreto
discute com o poeta processo
qual deles é capaz de bater o poeta abstrato.Enquanto isso o poeta abstrato
tira meleca do nariz.(Lero 149)

A crítica dirigida aos poetas de vanguarda está presente não só nesses versos, mas também nos escritos em prosa de Cacaso. Em seu ensaio fundamental – “Atualidade de Mário de Andrade” (1978) – estabelece um contraponto entre os escritores de 1922 e os de 1945. Para isso parte de O Banquete, livro da fase final do escritor modernista. É nele que Mário discute a questão do engajamento em arte, em continuidade às idéias difundidas na Semana de Arte Moderna de 22. Ao longo de seus escritos teóricos Cacaso estabelecerá um diálogo importante com Mário de Andrade, incorporando muitas de suas idéias ao longo de sua trajetória intelectual. A necessidade de pesquisa, a participação e a disponibilidade criativa nortearão os rumos de Cacaso, assim como a crítica à literatura “apêndice da vida oficial” (Não quero 157). Nossa literatura, na opinião de Cacaso, demonstra certa propensão ao oficialismo paternalista que lhe dita a “duração e as regras do jogo” (Não quero 157). Sua opinião converge com a de Mário e de outros críticos do modernismo no que concerne à tendência academizante de nossa literatura. É nesse sentido que ambas as literaturas – a dos modernistas e a de Cacaso – foram elaboradas visando à desoficialização. Portanto, a crítica aos padrões estabelecidos – o que não significa, necessariamente, ruptura com esses padrões – será problematizada em versos por poetas modernistas e por boa parte dos poetas alternativos dos anos setenta.

Mário defende em O Banquete o direito de errar como princípio da arte, em contraposição ao academicismo beletrista de estufa que, pisando sempre em terreno firme, promove uma espécie de ciclo vicioso perigoso, impeditivo para qualquer inovação artística. Dessa forma, se as heranças estéticas do modernismo são exaltadas por Cacaso, as propostas da geração de 1945 são vistas como involução, por recaírem no “tradicionalismo técnico” (Não quero 161). Contrária à poética de “inovação participante do modernismo”, a geração de 45 irá cultivar a bela forma, cortando nexos vitais com a experiência cotidiana (Não quero 162). O posterior movimento das vanguardas, sobretudo o Concretismo, irá abolir o fundamental direito de errar modernista em detrimento da especialização técnica, manifesta em pirotecnia lingüística. É justamente essa “recaída” que o poema concreto traz à baila e que Cacaso não perdoa (Não quero 164).6 Em “Política Literária” o poeta utiliza-se da paródia drummondiana com intenções irônico-corrosivas. É como se o movimento de vanguarda e seus desdobramentos, “concreto” e “processo”, resultassem em mera “abstração” sem importância. O rebaixamento desses movimentos atinge o auge no verso final: a imagem escatológica “tirar meleca do nariz” denuncia o pretenso alheamento desses poetas que, em torno de disputas inúteis, estão a girar em volta do próprio umbigo. Poesia tautológica como já assinalou Cacaso em outro poema. Em tempo: Cacaso reconhece o mérito de alguns poetas de 45, como João Cabral de Melo Neto e Ferreira Gullar, cuja tendência participante teria impedido que sucumbissem à “recaída” academizante.

Para Cacaso o direito de errar é um trunfo modernista que deve ser cultivado, pois possibilita o engajamento da forma como “pressuposto da liberdade” (Não quero 160). Nesse sentido, o verso livre cultivado pelos modernistas será a forma eleita por Cacaso. Quanto às acusações de que a irregularidade métrica dessa forma facilitaria o fazer artístico, o poeta rebate: “dificilmente a falta de talento se realiza em verso livre” (Não quero 160). Livre não é só o verso que não respeita a regularidade métrica, mas também o poeta que impregna seus poemas de cadências pessoais. Como diz Mário de Andrade, o verso livre “é um movimento interior do poeta” (Andrade 85). É através dele que Cacaso fundará seu “Signo” transfigurado:

Eu já não sei de quem falo eu já não sei
de quem calo.
Na travessia da noite meu corpo se transfigura
peixe
metade cavalo. Lá estou eu.
Como achá-lo?(Lero 102)

Palavra poética que põe em prática a liberdade criativa, figurada em constantes metamorfoses e reinvenções de si. O estranhamento de si compõe o signo anfíbio – peixe-cavalo – e confirma seu dinamismo produtivo. A necessidade de pesquisar – são várias as formas que a poesia de Cacaso assume – e a disponibilidade de espírito permitem não encontrar, ou antes, não reconhecer o poeta lá naquele lugar em que era esperado. Ele até está lá, porém a travessia, através do signo, o transfigura, o torna outro. Lá onde ele será sempre outro, irredutível a qualquer definição, a poesia está liberta.
 
 
Notas

1Lero-Lero intitula a coletânea da produção poética completa de Cacaso. O poema “Rotina” pertence ao livro Na Corda Bamba. Utilizaremos Lero-Lero como referência para a citação das páginas, pois as primeiras edições dos livros não apresentam páginas numeradas.

2Mimeógrafo é um equipamento que produz cópias a partir de uma matriz perfurada (estêncil) afixada em torno de pequena bobina de tintagem interna e acionada por tração manual ou mecânica.

3A idéia de fundar uma Academia Brasileira de Letras (ABL) surgiu em fins do século XIX. Afonso Celso Júnior e Medeiros e Albuquerque pretendiam criar uma academia nacional nos moldes da Academia Francesa. José Veríssimo que editava a Revista Brasileira apoiou a idéia e as primeiras notícias sobre os preparativos para a fundação da nova instituição saíram em dezembro de 1896 na Gazeta de Notícias e no Jornal do Commercio. No dia quinze de dezembro Machado de Assis foi aclamado presidente da Academia. Porém, seria somente em vinte de julho de 1897 que a Academia seria inaugurada. Nesse ínterim, foram definidos os quarenta membros participantes. No discurso inaugural Machado de Assis enfatizou o principal objetivo da ABL: conservar a unidade literária da federação, independentemente das escolas literárias ou das transformações civis.

4Em seus primeiros escritos sobre a origem da linguagem, Walter Benjamin entendia que a palavra poética guardava semelhança com a palavra divina no que ela tem de primeiro, de fundador. O poeta, ao nomear, ao criar verbos, funda seu reino poético como se fosse um deus diminuto.

5Eis o poema de Drummond:

Política Literária
A Manuel BandeiraO poeta municipal
discute com o poeta estadual
qual deles é capaz de bater o poeta federal.Enquanto isso o poeta federal
tira ouro do nariz.

6Cacaso explica: o poema é concreto quando “seu significante assum(e) o caráter icônico, de aparência imediata, das artes visuais” (Não quero 164).
 
 
Bibliografia

Andrade, Carlos Drummond de. Antologia Poética. Rio de Janeiro: Record, 1987.

Andrade, Mário de. O Banquete. São Paulo: Duas Cidades, 1977.

Brito, Antônio Carlos de. Beijo na Boca. Rio de Janeiro: Vida de Artista, 1975.

____________________. Grupo Escolar. Rio de Janeiro: Frenesi, 1974.

____________________. Lero-Lero. Rio de Janeiro: 7 Letras, São Paulo: Cosac & Naify, 2002.

____________________. Mar de Mineiro. Rio de Janeiro, 1982.

____________________. Na Corda Bamba. Rio de Janeiro: Vida de Artista, 1978.

____________________. Não quero prosa. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, Rio de Janeiro, RJ: Editora da UFRJ, 1997.

____________________.A Palavra Cerzida. Rio de Janeiro: José Álvaro, 1967.

Brito, Antônio Carlos de e Fontes, Luís Olavo. Segunda Classe. Rio de Janeiro: Vida de Artista, 1975.

Fortuna, Felipe. “O que ficou da poesia marginal?” Disponível em <http://acd.ufrj.br/pacc/literaria/oqueficou.html>. Consultado em 18/07/2007.

Hollanda, Heloisa Buarque de. (Org.) 26 Poetas Hoje. 2ª. Edição. Rio de Janeiro: Aeroplano, 1998.

Simon, Iumna Maria e Dantas, Vinícius. “Poesia ruim, sociedade pior”. Novos Estudos CEBRAP, no.12, São Paulo, 1985, 48-61.

 

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